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Livro Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade, Verbicaro Soares & Cruz ,


O s últimos anos foram marcados por incertezas, em especial os de 2022 e 2022, com o surgimento de uma doença até então desconhecida, que trouxe impactos diversos nos âmbitos socioculturais, econômicos, políticos e etc. A humanidade teve que se adaptar ao novo normal das relações humanas: aprender com as medidas impositivas de isolamentos sociais, buscas alternativas para a comunicação, preocupações extremas com a higiene e com o contato com outras pessoas.


Frente a essas realidades de um período de pandemia de Covid-19 distintos questionamentos somaram-se às incertezas estruturais de diversas sociedades pelo mundo, em especial no que diz respeito aos Direitos Humanos, interpretados como um conjunto de normas e medidas que visam proteger o homem e suas relações com os demais. Com base nesse entendimento, se nota um desrespeito quanto a uma eficaz regulação e real proteção de inúmeras pessoas. Muitas das mesmas que sofrem em situações de exclusão social e vulnerabilidade, como por exemplo: as mulheres e as pessoas LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros).


É viável destacar que as manifestações de práticas preconceituosas e discriminadoras que ocorrem todos os dias contra essas pessoas visibilizam problemas antigos, enraizados nas sociedades por séculos, como a própria heteronormatividade impositiva, subjugação e inferiorização de gênero, patriarcados estruturais e etc. Para a busca pela igualdade são necessários maiores esforços para identificações dos problemas apresentados e para a implementação de ações concretas que viabilizem mudanças de paradigmas e um real respeito à dignidade humana.


Nesse sentido, o Laboratório de Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Roraima, no desenvolvimento de suas atividades de ensino, pesquisa e extensão aprimora o desenvolvimento de estudos científicos com o objetivo de gerar discussões não apenas no âmbito acadêmico, mas estender os debates para a sociedade em geral. Sendo assim, a presente obra literária intitulada Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade tem por objetivo aproximar os questionamentos de diferentes autores em um enfoque multidisciplinar, tanto no Brasil como em um contexto internacional.


No primeiro capítulo, Douglas Verbicaro e Maria Clara de Oliveira analisam a série "O Alienista", que faz referência a questões de gênero e sexualidade aliado a um enredo de investigação criminal no século XIX em Nova York. Explorando, assim, as questões abordadas na obra, como: igualdade de gênero e sodomia, relacionando tais assuntos ao contexto serializado e ao factual. Neste estudo os autores exaltam a importância do usufruto da arte para sensibilizar a população e para contribuir com o debate acadêmico.


No segundo capítulo, Dennis Verbicaro e Lays Soares Rodrigues analisam uma abordagem sobre o panorama de transição da pós-modernidade para a denominada "hipermodernidade" e a consequente transformação do consumo na maior força propulsora da sociedade contemporânea. Ademais, os autores demostram, que a perda de legitimidade do Estado de mal-estar social e o agravamento da vulnerabilidade comportamental do consumidor, compreendido como categoria, estão diretamente relacionados com o crescimento exponencial das práticas abusivas e fortalecimento da posição jurídica e econômica do fornecedor.


No terceiro capítulo, Marilia da Silva e Ricardo Botelho explicitam o tema do Federalismo, visibilizando que desde a sua instituição, em 1889, o Brasil tem experimentado um ciclo de instabilidade político-administrativo que incide no reto funcionamento do corpo estatal. Os autores destacam que, embora a Federação tenha sido fruto de cristalina inspiração norteamericana, cuja natureza é dualista, o Federalismo brasileiro impôs a descentralização das partes, estabelecendo-se, assim, três ordens: federal, estadual e municipal, as quais, em tese, sentamse no mesmo plano. No entanto, ainda assim, o centralismo é a característica mais forte do Federalismo nacional.


No quarto capítulo, María Ángeles Bustos e José Luis Álvarez ressaltam que a liberdade sexual é, e tem sido uma questão de um enorme impacto social, e cujo problema reside em grande parte na necessidade de promover o estabelecimento de garantias adequadas pelo Estado de Direito, a fim de combater as múltiplas manifestações que a discriminação na orientação sexual gera na sociedade. Os autores explanam que nos últimos anos, as autoridades públicas, tanto a nível europeu como nacional na Espanha, começaram a tomar inúmeras ações para combater a discriminação e promover o tratamento igualitário, mas ainda há muito a ser feito e um longo caminho a percorrer.


No quinto capítulo, Julieta Cano explana sobre os argumentos dos professores de direito, por ocasião do debate pela lei de interrupção voluntária da gravidez perante o Congresso da Nação Argentina, que foi aprovado pelo Senado em 30 de dezembro de 2022, por meio da Lei 27.610. Antes da votação, cada Câmara recebeu especialistas de diferentes disciplinas, a favor e contra o aborto, e a partir de suas intervenções puderam se valer de elementos argumentativos para embasar a decisão. Assim, nesta investigação a autora analisa argumentos de professores de direito, para serem agentes chaves na socialização dos futuros advogados na Argentina.


No sexto capítulo, Andrezza Menezes e Priscilla Rodrigues discorrem sobre a violência doméstica contra mulheres indígenas. Demonstrando ser uma realidade cruel e silenciosa, sobretudo em Roraima, espaço em que se circunscreve pesquisa. Nesse sentido, a partir da abordagem interseccional e da standpoint theory, as autoras buscam demonstrar como essa violência se dá de maneira complexa, uma vez que, engloba o entrecruzamento de outros fatores de opressão que não apenas o gênero, além de fatores culturais específicos.


No sétimo capítulo, Clara de Oliveira e Douglas Verbicaro enfocam nas questões relacionadas à discriminação de raça, gênero e orientação sexual, buscando propor uma relevante discussão social sob a perspectiva das manifestações artísticas. Os autores demostram que todos os pontos se interligariam na origem que é o preconceito, baseado por desconhecimento ou fatores socioculturais históricos que impedem que as pessoas sejam tratadas de forma igualitária.


No oitavo capítulo, Adriano Cardoso e Tânia Zimmermann refletem sobre questões de feminilidades e sexualidade expressas em grafitos escolares, coletados durante os anos de 2022 e 2022, em uma escola pública no Noroeste paulista. No estudo os autores utilizaram elementos da Análise de Discurso, especificamente Análise Crítica do Discurso (ACD) que contribuiu para se pensar o conjunto da produção escrita e das imagens presentes nos grafitos, permitindo examinar os aspectos linguísticos, imagéticos com aspectos socioculturais.


No nono capítulo, Gabrielle Pereira e Sandra Lurine Guimarães explicam como está sendo realizada a inclusão das mulheres trans nas ciências esportivas, visando entender se o sexo biológico é o único que importa na hora de decidir se a mulher trans poderá ou não competir junto com as mulheres que nasceram biologicamente no sexo feminino.


No décimo capítulo, Wesley de Mello Aguiar discorre sobre os efeitos da constituição da entidade familiar paralela nos direitos previdenciários, a partir do comentário ao julgado do Supremo Tribunal Federal ao Recurso Extraordinário n. 1.045.273/SE. Os direitos previdenciários do cônjuge ou companheiro sobrevivente devem ser reconhecidos, independentemente da preexistência jurídica de casamento ou união estável do de cujus separado de fato anteriormente.


No décimo primeiro capítulo, Amanda Barros e Douglas Verbicaro tratam da inserção das mulheres nas Forças Armadas Brasileiras, com foco no Exército Brasileiro, onde os autores partem de uma análise histórica para fundamentar e demonstrar que, apesar de já haver a participação feminina nos quadros do Exército, esta participação não é igualitária.


No décimo segundo capítulo (último), Silvia Rafaela Demétrio e Douglas Verbicaro trazem em sua investigação o contexto da homossexualidade dentro das Forças Armadas Brasileiras, enfocando a vigência de preceitos normativos que perpetuam práticas discriminatórias para os militares homossexuais.


Desta forma, finalizamos na expectativa de dias melhores para os temas enfrentados nessa obra científica, em destaque nos estudos sobre Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Os obstáculos que dificultam o efetivo trato igualitário entre os cidadãos pelo mundo devem ser combatidos e, também, devem ser criadas alternativas de sensibilização para a inclusão de pessoas excluídas historicamente em distintas sociedades. Os desafios motivam a perpetuações de novas discussões em favor da integração de mulheres e pessoas LGBTs na busca pela expressão livre de suas humanidades em dignidade, sem sofrer preconceitos ou discriminações.


Dr. Douglas Verbicaro Soares (ICJ/UFRR) Dr. Rivetla Edipo Araujo Cruz (NEAP/UFPA)


O mundo, a cada dia que se passa, está dando mais impressão de rapidez e aceleramento. Preconceitos e discriminação estão sendo de pouco a pouco diminuídos e essa difusão da igualdade está se tornando cada vez mais comum. O que faz todos pensarem é se, no futuro tempo histórico essas relações estarão cada vez mais estreitas, as desigualdades menores e o convivo social cada vez mais pacífico. .


Dessa forma, a prática de assistir uma série como "O Alienista" representa uma oportunidade para o debate social em temas sensíveis, como por exemplo: gênero e sexualidade. Com base nesse contexto, o presente estudo buscou relacionar a utilização das artes como um importante instrumento de sensibilização social, onde uma conjuntura fictícia remota poderá ser utilizada na atualidade para visibilizar problemas antigos: preconceitos e discriminações no âmbito dos temas enfrentados no presente estudo.


Para a estrutura do estudo, se optou por levantamento bibliográfico e documental, com abordagem qualitativa em um método dedutivo, buscando respostas em diversas áreas: artes, história, direito, entre outras. A investigação apresenta distintas seções: A primeira versa sobre a utilização da obra artística "O Alienista" para falar sobre temas sensíveis. A segunda seção aborda a reivindicação pela igualdade de gênero. Já a terceira engloba uma explicação sobre a sodomia, seguida das considerações finais e referências.


Foram realizadas algumas perguntas para o estudo: É importante usar uma série para sensibilização social? Qual a mensagem sobre gênero na obra? O que é sodomia?


A série "O Alienista"


A série norte-americana: The Alienist, que estreou no mercado de telecomunicações no ano de 2022, em 2022 vem liderando na plataforma digital NETFLIX . Fato que trouxe um debate viável para os dias atuais: a discriminação de gênero e sexualidade. Sem comentar que a obra artística enfatiza o surgimento de estudos prévios para a caracterização da criminologia e práticas forenses, portanto sendo viável sua abordagem para também conhecer essa ciência associada ao estudo do Direito.


É importante aclarar que a obra serial "O Alienista" explicita um período único da história da humanidade: O desenvolvimento da cidade de Nova York no final dos anos de 1800 (ESTADÃO, 2022), mas especificamente ambientada no ano de 1896, que retrata um drama histórico policial. Como personagens principais: um médico Laszlo Kreizler, um desenhador de um jornal, John Moore, um comissário das instituições de segurança pública da cidade, Theodore Roosevelt e uma jovem e primeira mulher secretária a desenvolver um trabalho para a polícia de Nova York, Sara Howard . Com essas características visibilizadas, os personagens convivem com a incidência de diversos crimes, visibilizando problemas estruturais e discriminatórios sobre gênero e sexualidade, em especial em uma sociedade heteronormativa dominante.


Por esta razão, a presente investigação objetiva visibilizar por meio das artes (VERBICARO SOARES; HERRERO UÑA, 2022, p. 26), nesse caso a série "O Alienista", uma sensibilização para o entendimento dos principais temas enfrentados, em destaque sobre gênero e igualdade sem discriminações . Destarte, visibilizar os obstáculos existentes sobre a temática de gênero em um determinado período histórico, mesmo sendo fictício, permite que uma sociedade possa refletir sobre práticas de preconceito e discriminação perpetuadas entre os tempos, seja por questões de gênero ou sexualidade.


A reivindicação pela igualdade de gênero É imperioso destacar que a série "O Alienista" traz muito temas importantes, em destaque a forma como o roteiro artístico procurou instigar a reflexão dos telespectadores sobre o desenvolvimento de uma personagem: Sara Howard, que tem, claramente, essa contribuição para a história, como uma verdadeira quebra de paradigmas. Ela é a única mulher que trabalha na polícia e como uma secretária para o comissário Theodore Roosevelt, o qual a designa para a missão de resolver um caso de assassinatos em série junto com o Dr. Kreizler e John Moore.


Uma curiosidade é que Sara é inspirada em Isabella Goodwin, que foi na realidade a primeira mulher detetive no mundo. Goodwin (THE NEW YORK TIMES, 2022), foi contratada pelo Departamento de polícia de Nova York como alguém que limparia celas e supervisionaria presos. Todavia, em 1912, quando notícias de um roubo ao banco dominaram os jornais nacionais, trazendo vexame aos policiais, o departamento pediu que ela se infiltrasse como empregada em uma pensão para encontrar evidências para incriminar o suspeito Eddie Kinsman. Entre cozinhar refeições e limpar o chão, ela conseguiu coletar informações que levaram o aprisionamento do suspeito.


De acordo com o senso comum, Sara é uma mulher solteira e jovem que não deveria estar trabalhando em um lugar tão "agressivo" quanto um departamento de polícia. Ela, muitas vezes, é provocada e questionada por ter esse "status" e é evidente que, em muitos momentos, ela surpreende os colegas de equipe.


Além disso, vale ressaltar que a série se passa no final do século XIX, um momento em que estavam havendo muitas transformações no mundo, sejam elas políticas ou ideológicas. No entanto, é possível ver na série que questões de gênero ainda não eram tão aceitas e tão fortes, quanto iriam ser poucos anos mais tarde no surgimento da corrente ideológica feminista.


Portanto, Sara é uma personagem essencial na história, uma vez que levanta pontos de discussão muito importantes e atuais. O primeiro a ser levantado é o papel da mulher da sociedade . Como dito anteriormente, a considerada primeira onda feminista ocorreu por volta do final do século XIX , ficando muito mais forte em meados do século XX, em que começaram a surgir debates acerca do papel social da mulher, que estava inserida no mercado de trabalho em razão da guerra. Simone de Beauvoir foi uma das escritoras que consolidou essa reflexão. Em seu livro O segundo sexo:


Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino .


No entanto, o questionamento sobre a inclusão da mulher na sociedade e seus direitos já eram questões que existiam e que incomodavam muitas mulheres . No fim do século XVIII, em 1792, Mary Wollstonecraft reivindicou mudanças na Constituição francesa recém-promulgada na época, que não incluía as mulheres na condição de cidadãs: É, então, um afeto por todo o gênero humano que faz minha pena escrever rapidamente para apoiar o que acredito ser a causa da virtude; e a mesma razão me leva a desejar de modo sincero ver a mulher em uma posição a partir da qual avance, em vez de ser refreada, para o progresso desses gloriosos princípios que dão substância à moralidade. De fato, minha opinião sobre os direitos e deveres da mulher brota com tanta naturalidade de tais princípios fundamentais que me parecem quase impossíveis que algumas das mentes abertas, responsáveis por dar forma a sua admirável constituição, não concordem comigo .


É plausível enxergar que nos protestos feministas, sempre há críticas na separação binária de gênero. Mulheres que gostariam de discutir assuntos que eram destinados apenas para homens, numa tentativa desesperada de também se fazer presente. Surge, então, o questionamento do "feminino" e "masculino" e os papéis de gênero. Por esta razão, a explicitação histórica da série logra sensibilizar seus telespectadores em questões sobre igualdade de gênero e não discriminação entre homens e mulheres.


A sodomia.


A expressão sodomia foi utilizada até o século XIX como a palavra pejorativa para designar as relações entre pessoas do mesmo sexo, com um forte apelo de estigma. O termo é associado ao do relato do Antigo Testamento no Livro do Gênesis, em especial sobre a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra pela suposta ira divina . De acordo com religiões cristãs, os sodomitas seriam os praticantes de atos sexuais contra a natureza humana, assim, todo e qualquer ato sexual que não tivesse como fim a procriação era tido por sodomia, sendo um pecado frente a Deus.


Essa concepção foi difundida principalmente durante a Idade Média pela teologia moral cristã, em que a relação sexual conjugal com o fim de procriação era vista como natural . Se espalhando pela Europa, a sodomia foi tipificada por Estados católicos e não católicos, transformando, desta maneira, o que era considerado pecado também em crime. A sodomia, até meados do século XIX, era um crime contra o Estado, configurando um pecado crime. Tais considerações são necessárias, pois a série se passa em meados do ano de 1896. . Nesse sentido, têm-se:


Para ser mais bem castigado esse delito, ele deveria ser relaxado aos Inquisidores Apostólicos do Tribunal do Santo Ofício, por breve do papa Gregório XIII. Considerava-se tão horrendo o crime da sodomia que não se ousava pronunciar seu nome e Deus havia destruído cinco cidades, duas delas somente por serem vizinhas de onde se tinha cometido o crime da sodomia, tamanha sua ira com quem o cometesse. Era tão horrendo que parecia feio até mesmo ao Demônio e quem o cometesse, estava carecido de razão, infeliz e esquecido de sua própria salvação. Fazia-se a distinção entre dois tipos de sodomia, a sodomia própria, praticada homem com homem ou homem com mulher e a sodomia imprópria, praticada entre duas mulheres. Se fosse provada a culpa do denunciado, prendiamse somente os que houvessem cometido a sodomia própria .


Analisando o discurso medieval ao longo do tempo, a ciência adota a ideia e formula uma nova forma de pensar criando o conceito do "homossexual", vindo a ser regra o "heterossexual". Assim, têm-se:


A ciência, ao assumir o papel de arauto da verdade do sexo, se colocou a construir toda uma discursividade legitimada pelo seu status racional e científico em torno das anormalidades sexuais, discurso este que fortalecia a centralização da heterossexualidade como a verdade, como a norma. A norma é gabarito de inteligibilidade que sujeita o anormal, que faz com que incida sobre ele a sujeição de seu corpo .


A partir de tal construção, se faz necessário lembrar a razão de ter havido movimentos e lutas contra o pensamento social enraizado sobre os sodomitas, que na sociedade moderna, são chamados de homossexuais. A luta para ser considerado normal em uma que os vê como anormais. Em pleno 1896, podemos ver na obra claramente o quanto os "normais" da série veem as vítimas como próprias aberrações ou doentes.


No contexto da série, ficou claro não só que a sociedade repugnava tanto os locais quanto as pessoas que fugiam ao padrão de gênero valendo registrar como funcionavam essas organizações coletivas de resistência da comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros). Dessa forma, o fato de as vítimas serem meninos travestis torna evidente que a motivação está diretamente ligada à sodomia.


Como naquela época, as leis de então puniam e perseguiam severamente as pessoas transgênero. Nesse caso, se um homem fosse visto na rua com roupas de mulher, sendo o caso da vítima principal, era irrelevante o fato de serem presos ou mesmo linchados. Logo, existiam locais específicos que serviam para a prostituição e contrabando, eles também funcionavam como refúgio para os.


Vale ressaltar que as investigações da série estão cercadas de indiferença, LGBTfobias e receio de atingir a elite, que fazia vista grossa para os crimes. Dessa forma, a polícia na obra fictícia preferia ignorar os assassinatos e atrasar investigações, atingindo apenas pessoas vulneráveis e não alcançando pessoas ligadas ao poder. Tendo em vista que a realidade vivida pelos jovens que se prostituíam fica claramente marginalizada na série.


Apesar de não aprofundar na questão LGBT, o seriado já merece relevância por abordar a questão. Em face de tal fato, é importante ponderar sobre em que momento se inicia a luta por direitos nos Estados Unidos (GOMES; ZENAIDE, 2022, p. 4), que é apenas no século seguinte ao retratado na série, o XX. Em meados de 1950, surge a Mattachine Society, uma organização política que buscava integrar os homossexuais na sociedade Nos anos 60, a militância em prol dos direitos LGBT se expande influenciando país americanos e Europeus. O grande marco da década acontece em junho de 1969, quando ocorre a Revolta de Stonewall. Na cidade de Nova York, o bar The Stonewall Inn era geralmente frequentado por gays, lésbicas e travestis que eram expulsos do estabelecimento, sofrendo repressão policial sempre que havia batidas. No dia do ocorrido, os homossexuais se voltaram contra os policiais os trancando dentro do bar, atirando pedras e incendiando o bar. O confronto durou 3 dias e marcou o movimento LGBT que se espalha pelo mundo.


É importante notar que a Revolta acontece no mesmo palco em que é contada a história da série: na cidade de Nova York. Tem-se, dessa forma, um claro contraste entre os "anormais" marginalizados na série, ressaltando que esta é uma luta que perpassa séculos, e os que não aguentam mais ser reprimidos pela sociedade heteronormativa, em busca do simples direito de poder frequentar um bar.


Considerações finais.


Contemplados os pontos discutidos, faz-se uma reflexão sobre o caráter atual da série. A história se passa no final do século XIX, e aborda temas que, hodiernamente, são extremamente discutidos, como: as causas LGBTs e as reivindicações por direitos iguais. É clara a intenção do roteiro em contribuir com um debate que é mais forte recentemente, enfatizando questões que são antigas.


Conforme foi exposto, o seriado retrata uma sociedade heteronormativa dominante, pautada em certo fanatismo religioso e um pensamento engessado. Tal abordagem está totalmente correta, pois se trata da realidade da Nova York de 1896. Pode-se observar a referência histórica do início das reivindicações de mudanças, as quais são descritas no decorrer das cenas e no desenvolvimento dos personagens.


Como é evidente na história da Idade Contemporânea, durante esse período após 1896 até o presente, houve o surgimento de novas correntes de pensamento que lutaram para se destacar. Ademais, aconteceram guerras que chocaram a sociedade mundial e surgiu, por exemplo, a Organização das Nações Unidas -ONU na tentativa de instaurar a paz e defender os Direitos Humanos.


Logo, a sociedade, juntamente com o Direito, passou por grandes transformações, sejam elas ideológicas ou territoriais e, inclusive, tecnológicas. Essas notáveis reformas são responsáveis pela construção histórica que resultou no contexto atual. No entanto, mesmo com todas essas transformações, ainda se testemunham comportamentos, atitudes e pensamentos muito parecidos, ou iguais, com os representados na série. De modo preocupante, a realidade brasileira indica que o país possui um alto índice de violência contra as mulheres e um dos mais perigosos para as pessoas LGBTs.


Portanto, as questões colocadas e os crimes noticiados nos jornais fictícios, também aparecem nas páginas de notícias online dos dias atuais. Para mais, destaca-se, à vista dessa ponderação, a relevância da obra para fins de estudo e soma à discussão social, em especial na tentativa de sensibilização em termas de gênero, sexualidade e Direitos Humanos. CARVALHO, Nathalya. Análise do processo de formação do Direito Contemporâneo. 2022. Disponível em: . Acesso em 22 set. 2022.


GOMES, José Cleudo; ZENAIDE, Maria de Nazaré Tavares.


A trajetória do movimento social pelo reconhecimento da cidadania LGBT. #Tear -Revista de . Disponível em: . Acesso em 03 set. 2022.


JUSTIFICANDO.


A história da primeira onda feminista. 2022. Disponível em: . Acesso em: 03 set. 2022.


LA VANGUARDIA. 'El Alienista': A veces una serie sólo necesita asumir que no quiere revolucionar el medio. 2022. Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2022.


NAPOLITANO, Minisa Nogueira. A Sodomia Feminina na.


Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil. Revista História Hoje. São NETFLIX. Séries. 2022. Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2022.


OLIVEIRA, Manoel Rufino. Interdisciplinariedade e Estudo Criminológico Da Violência Homofóbica: Tensões Entre Criminilogia E Teoria Queer. Revista Eletrônica de Direito Penal e Política Criminal -UFRGS. Vol. 4 nº1, 2022. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2022.


THE NEW YORK TIMES. Overlooked No More: Isabella Goodwin, New York City's First Female Police Detective. 2022. Disponível em: . Acesso em: 03 set.


VERBICARO SOARES, Douglas. 10 canciones brasileñas: ejemplos para la concientización social en el país sobre la homosexualidad. In.: Revista Direitos Culturais. Santo Ângelo, VERBICARO SOARES, Douglas. CRUZ, Rivetla; UÑA, María Ángeles. O uso da arte para sensibilizar e educar em tempos de pandemia (COVID-19). In.: Adair Adams; Fábio César Junges; Mário José Puhl; Tiago . Educação em tempos de pandemia: experiências, desafios e perspectivas. Cruz VERBICARO SOARES, Douglas. La libertad sexual en la sociedad: especial referencia a la homosexualidad en las Fuerzas Armadas Brasileñas. Salamanca, España. Tesis Doctoral. Universidad de Salamanca -USAL: Programa de Doctorado Pasado y Presente de los Derechos Humanos, 2022.


Considerações iniciais.


A sociedade contemporânea tem vivenciado crescentes e intensas transformações, nos mais variados aspectos, que impactam diretamente na forma como se desenvolvem as condições de vida das pessoas, bem como suas relações, interesses e valores.


O intenso fluxo informacional, o ritmo frenético do cotidiano, a ampliação do alcance da influência midiática, e, principalmente, a valorização do consumo: todos esses foram fatores cruciais na estruturação de um novo cenário, em que o consumo se elevou como a maior força propulsora dessa nova era, a qual podemos chamar de "hipermodernidade".


A era hipermoderna é marcadamente paradoxal, na medida em que possibilitou a coexistência de valores completamente antagônicos. Essa conjuntura reflete diretamente no posicionamento do homem contemporâneo, que, diante de tantos avanços e da exigência de que se acompanhem todos eles sob pena de exclusão social, se vê nulificado e inevitavelmente absorvido pela lógica predatória do mercado.


Assim, é fundamental que se busque compreender a forma pela qual essa nova realidade se estruturou, para que então se descubra a razão que levou o consumo a assumir um papel central na sociedade atual, aprofundando o individualismo entre os homens e, por via de consequência, agravando a vulnerabilidade do consumidor a um nível jamais imaginado.


Numa realidade em que todos os elementos sociais foram "hiper-intensificados", já não se fala mais em consumo, mas sim em um "Hiperconsumo" que, para se manter, precisa de "hiperconsumidores", convencidos de que a aquisição dos bens e serviços divulgados pela indústria cultural de massa é uma verdadeira necessidade para se manter nessa sociedade dinâmica.


O próprio capitalismo se sofisticou, assumindo uma função moduladora da estética, o que levou à produção industrial de símbolos de consumo supostamente garantidores de um novo e idealizado modelo de qualidade de vida, que proporcionaria ao sujeito novas emoções, experiências e, também, lhe proporcionava um sentimento de pertencimento social, incapaz de ser alcançado através das relações interpessoais autênticas. E foi justamente para atender à sedução de uma falseada felicidade artificial, que o consumidor se vê obrigado a concentrar todos os seus esforços em tornar sua vida economicamente produtiva, seja no trabalho, seja no âmbito das relações familiares, ou mesmo na artificialidade de sua vida social, de modo a melhor otimizar seu já escasso tempo para ser bem-sucedido na satisfação das inúmeras necessidades de consumo, forjadas pela indústria cultural, que, agora, serve maciçamente ao consumo.


Nesse ritmo frenético, não há tempo para aprofundar os laços familiares ou de amizade, muito menos para cultivar sentimentos gregários ou de articulação política. O consumidor "hipermoderno" está só e acredita que apenas nessa solidão individualista e não menos egoísta conseguirá abraçar todas as experiências que o assédio predatório de consumo lhe prometeu.


O problema é que esse distanciamento da vida política e desinteresse pelas questões relativas à coletividade, aliado ao maior afastamento do Estado, inicialmente visto como o grande protagonista na efetivação das políticas públicas de afirmação das desigualdades jurídicas em favor do consumidor e, mais recentemente, incapaz de funcionar como um mediador responsável nesse processo, acirram, ainda mais, o desequilíbrio econômico do consumidor diante dos agentes de mercado e o colocam numa posição de vulnerabilidade agravada.


Diante deste cenário, o presente artigo, através do método dedutivo e de pesquisa bibliográfica nacional e estrangeira, tem por objetivo fazer um diagnóstico sócio filosófico do consumo na "Hipermodernidade", para, num segundo momento, demonstrar que a perda de legitimidade do Estado de mal-estar social e o agravamento da vulnerabilidade comportamental do consumidor, aqui compreendido como categoria, estão diretamente relacionados com o crescimento exponencial das práticas abusivas e fortalecimento da posição jurídica e econômica do fornecedor.


Exige-se, portanto, uma substancial revisão do modelo individualista de atuação política do consumidor, pautado numa sobrevalorizada liberdade negativa, para que haja um reposicionamento de sua capacidade deliberativa, através da ocupação qualificada dos espaços políticos de insurgência social diante dos abusos do poder econômico.


O empoderamento cívico do consumidor seria a melhor a resposta à crise do "Estado Providência", do "Estado Paternalista", ou mesmo do "Estado Mediador", impondo uma reflexão mais profunda acerca do discutível "bem-estar" que aquelas diferentes acepções de Estado se propuseram a garantir, bem como da necessidade premente de modulação das expectativas de consumo indefinidamente crescentes a partir de bases mais racionais, sendo o despertar para um sentimento de participação e de responsabilidade individual e coletiva, um importante ponto de partida nesse contexto.


A participação na vida pública engrandece o espírito humano, favorece a criatividade, produz autonomia e gera um bem-estar generalizado e, em outras palavras, faz do consumidor um cidadão consciente de sua responsabilidade para com o grupo e confiante de que a ocupação sistemática desses espaços políticos lhe permitirá influir, substancialmente, no processo de criação e aperfeiçoamento das normas de consumo.


pós-modernidade à "hipermodernidade": a paradoxalhipersociedade dos dias atuais Para a sociedade de consumo atual, o termo "pósmodernidade" já parece inapropriado para descrever todas as inovações e peculiaridades verificadas no cotidiano. A intensa velocidade do fluxo informacional, a preocupação com o futuro, o consumo exacerbado, o poder das mídias sociais: todas essas são características indissociáveis do homem contemporâneo.


Segundo , um termo mais consentâneo para designar a realidade hodierna seria "Hipermodernidade". Como corolário da terceira fase da modernidade, essa nova era é evidenciada por uma sociedade marcadamente fluida, líquida, e essencialmente paradoxal.


Nesse sentido, a valorização do presente e o individualismo característico da pós-modernidade continuam existindo, mas passam a conviver com uma postura mais responsável e mais preocupada com o futuro. E é nesse contexto de coexistência de valores antagônicos que surgem os paradoxos da "Hipermodernidade", conforme observa.


Eis apenas uma amostra dos paradoxos que caracterizam a "Hipermodernidade": quanto mais avançam as condutas responsáveis, mais aumenta a irresponsabilidade. Os indivíduos hipermodernos são ao mesmo tempo mais informados e mais desestruturados, mais adultos e mais instáveis, menos ideológicos e mais tributários das modas, mais abertos e mais influenciáveis, mais críticos e mais superficiais, mais céticos e menos profundos.


Com efeito, ao se analisar o panorama de transição da era clássica para a modernidade, é possível identificar uma tendência de emancipação com relação aos valores tradicionais da época. Ocorre que, paralela a essa inclinação liberatória, houve uma ampliação do poder estatal, o que fez com que aqueles anseios permanecessem, em grande parte, num plano sobretudo teórico, num processo de desencantamento com o mundo, em que se passou a ter a convicção de que as muitas promessas da modernidade não foram cumpridas.


Apenas com a pós-modernidade foi que essa ruptura, de fato, aconteceu, verificando-se, a partir de então, o delineamento da figura de um indivíduo mais voltado para o presente, menos subserviente e mais hedonista. Nesse contexto, o consumo de massa e os valores por ele difundidos podem ser apontados como fatores cruciais na passagem da modernidade à pós-modernidade, ocorrida na segunda metade do século XX .


Atualmente, embora os elementos da pós-modernidade não tenham simplesmente desaparecido, o que se percebe é que o surgimento de novos valores, preocupações e situações fez com que o termo pós-moderno passasse a ser insuficiente para descrever essa sociedade de excesso em que vivemos.


Contudo, não houve um rompimento com relação aos ideais pós-modernos, mas sim o estabelecimento de novas convicções e estilos de vida, que passaram a coexistir com os anteriores. É justamente nesse ponto de convergência que residem os paradoxos da sociedade hipermoderna: o espírito essencialmente libertário e hedonista dos tempos pós-modernos passa a ser latente, e não mais evidente, enquanto uma responsabilidade hesitante advém. Para Lipovestky, o "narciso", isto é, o homem dos dias de hoje, passa a vivenciar contradições.


Narciso maduro? Mas se ele não pára de invadir os domínios da infância e da adolescência, como se se negasse a assumir a sua idade adulta! Narciso responsável? Pode-se realmente pensar isso quando os comportamentos irresponsáveis se multiplicam, quando as declarações de intenção não se concretizam? O que dizer dessas empresas que falam em códigos de deontologia e que, ao mesmo tempo, demitem em massa porque antes maquiaram os livros contábeis; desses armadores que evocam a importância de respeitar o meio ambiente enquanto seus próprios navios efetuam descargas selvagens de poluentes; desses empreiteiros que exaltam a qualidade de suas construções muito embora elas desabem ao menor abalo sísmico; desses motoristas que dizem respeitar o código de trânsito e falam ao celular enquanto dirigem? Narciso eficiente? Que seja, mas ao custo de distúrbios psicossomáticos cada vez mais frequentes, de depressões e estafas flagrantes. Narciso gestor? É de se duvidar, quando se observa a espiral de endividamento das empresas. Narciso flexível? Mas se é a tensão nervosa que o caracteriza no âmbito social quando chega a hora de perder certos benefícios adquiridos! A "Hipermodernidade" simboliza o surgimento de uma nova modernidade, como uma espécie de "aprimoramento" daquela vivenciada anteriormente, conforme assevera Lipovestky.


Tudo se passa como se tivéssemos ido da era do pós para a era do hiper. Nasce uma nova sociedade moderna. Trata-se não mais de sair do mundo da tradição para aceder à racionalidade moderna, e sim de modernizar a própria modernidade, racionalizar a racionalização .


Assim, é que uma nova realidade se estrutura, sem, porém, abandonar completamente a anterior. Observa-se, então, uma mutação incompleta, posto que a etapa hipermoderna não se inicia a partir de uma tabula rasa, mas sim em um panorama repleto de vestígios do status quo ante, que ensejam os paradoxos .


Como um dos principais aspectos da "Hipermodernidade", pode-se indicar a mudança do panorama social e da relação dos indivíduos com o presente. Esse presente já não é mais vivenciado de forma plena e despreocupada. A constante inquietação com o que o futuro reserva esvazia o otimismo do carpe diem e a confiança no porvir.


Manifestando-se como mais um dos paradoxos contemporâneos, a visão do futuro passa a estar associada à oportunidade de avanços e mudanças positivas, mas, ao mesmo tempo, se anunciam ameaças de catástrofes ambientais, terrorismo e conflitos mundiais. Desse modo, o homem passa a conduzir o presente voltando-se para o futuro, com a adoção de uma postura mais previdente, quanto à subsistência das gerações ulteriores, passando-se a falar, inclusive, na ideia de um "pacto entre as gerações".


Destarte, a nova percepção do futuro é marcada pelo abandono das utopias coletivas, mas, ao mesmo tempo, observa-se a intensificação da adoção de condutas preventivas.


A impotência para imaginar o futuro só aumenta em conjunto com a sobrepotência técnico-científica para transformar radicalmente o porvir: a febre da brevidade é apenas uma das facetas da civilização futurista hipermoderna. Enquanto o mercado estende sua "ditadura" do curto prazo, as preocupações relativas ao porvir planetário e aos riscos ambientais assumem posição primordial no debate coletivo. Ante as ameaças da poluição atmosférica, da mudança climática, da erosão da biodiversidade, da contaminação dos solos, afirmamse as ideias de "desenvolvimento sustentável" e de ecologia industrial, com o encargo de transmitir um ambiente viável às gerações que nos sucederem. Morrem as utopias coletivas, mas intensificam-se as atitudes pragmáticas de previsão e prevenção técnico-científicas.


Por outro lado, toda essa preocupação com o amanhã tem sido responsável pelo aumento expressivo dos distúrbios psicossomáticos, originados a partir de um sentimento generalizado de medo e vulnerabilidade. Medo de eventuais catástrofes, medo do desemprego, medo de doenças, medo de não atender aos padrões impostos.


Evoluir a todo custo e a todo instante passa a ser uma obrigação do homem contemporâneo: o homem estagnado está fadado ao fracasso. Consequentemente, a insatisfação é permanente, e é a insatisfação que acaba sendo o combustível dessa sociedade marcada pela brevidade.


Não seria desarrazoado afirmar que a "Hipermodernidade" instaurou uma espécie de "mal-estar difuso", em que os seres humanos renunciam às relações interpessoais autênticas em prol de um modelo artificial da felicidade, que se reveste de uma aparência de bem-estar, mas que, no seu íntimo, esconde sentimentos de frustração, raiva, medo e ansiedade.


Nesse contexto, o "Hiperconsumo" pode ser apontado como a pedra angular do cenário hipermoderno. Todos os planos e aspectos da vida parecem ter sido dominados por essa lógica, em que a incessante aquisição de bens materiais passa a ser enxergada como uma maneira de os indivíduos compensarem suas carências e frustrações. O "hiperconsumidor" procura a felicidade não mais no "ser", e sim no "ter", e a partir do momento em que a felicidade é associada a fatores exclusivamente tangíveis, o seu locus passa a ser as vitrines das lojas. Cada elemento ali exposto é, então, vislumbrado como um refúgio em meio ao vazio em que a "hipersociedade" se vê mergulhada.


Assim é que a felicidade deixa de ser algo transcendental e passa a ser consumível. O prazer que o consumo proporciona se transforma em sinônimo de felicidade, de modo que quanto mais prazer no ato de consumo o ser humano é capaz de obter, mais "feliz" ele é. A parte se confunde com o todo, e o prazer, que antes era concebido apenas como um dos fatores propícios à felicidade, é elevado à categoria de verdadeiro arquétipo da felicidade.


Exsurge, então, um consumo emocional, caracterizado por uma infindável busca pelo bem-estar através daquilo que se compra. A partir do momento em que sentimentos tão importantes são reduzidos a uma perspectiva tão simplista e frívola, as enfermidades típicas dos tempos contemporâneos vêm à tona, como a fragilidade dos laços afetivos, o abandono familiar, a solidão, a depressão, os transtornos bipolares e consumistas (FERREIRA; CARVALHO; SANTOS, 2022, p. 52).


É imperioso reconhecer que vivemos numa sociedade doente, cujos indivíduos, deprimidos, em pânico, ou apenas ansiosos, sequer conseguem compreender a gravidade do seu diagnóstico, enquanto que outros, inclusive, já perderam a capacidade de irresignação, pois se acostumaram com a indolência e a terceirização de suas escolhas.


Nesse cenário de tantas desordens, o modelo ideal de felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, e, para tanto, precisa ser mensurável através de objetos e signos de conforto, isto é, com base em critérios visíveis, suscetíveis de serem percebidos pelos outros .


A felicidade não precisa mais ser sentida, e sim provada, ao mesmo tempo em que a liberdade para assumir as verdadeiras preferências é balizada pelos padrões "mínimos" de validade, instituídos e reforçados pela indústria cultural de massa. Por conseguinte, o indivíduo tem receio de se relacionar e expor aquilo que verdadeiramente é, passando a se esconder em grupos virtuais voláteis e transitórios, em que ninguém é obrigado a dizer a verdade e todos fingem ter uma vida perfeita.


Nessa vida "perfeita", é proibido expor fracassos, até mesmo porque a autoestima pessoal depende da aprovação dos "estranhos". Há, pois, um interesse recíproco em rivalizar com o outro as conquistas e realizações, jamais as frustrações.


O consumo exacerbado nunca fez tanto sentido como na sociedade hipermoderna, porquanto nela encontra o alicerce necessário para se intensificar cada vez mais, alimentado pela permanente insatisfação de seus membros. Esse comportamento é decorrência lógica das necessidades e padrões impostos a todo momento pela indústria cultural de massa.


Com efeito, o consumo é parte fundamental do cotidiano humano, sendo possível afirmar que hoje todos ostentam a qualidade de consumidor. O consumo se imiscuiu na rotina diária dos indivíduos, desde as necessidades mais básicas (utilitaristas) às mais supérfluas, passando todos a depender do consumo, e o ato de consumir passa a se tornar um traço característico do ser humano, um atributo indissociável do sujeito. Nessa conjuntura, as linhas claras que separam o necessário do supérfluo passaram a ser tênues, de modo que já não é mais tão simples distinguir entre o que se compra em razão do que se precisa ou do que se deseja.


Em um passado não tão remoto, os meios e as possibilidades de compra eram bem mais restritos, de sorte que quando se falava em compras, logo se vinha à mente objetos e comodidades materiais. A materialidade era atributo do consumo, e o imaterial estava fora do alcance.


Hoje, porém, se vive o tempo da fluidez: a sociedade e seus valores abandonaram sua imanente solidez em prol de um dinamismo próprio das coisas líquidas. Esse movimento impactou os mais variados aspectos sociais, inclusive o consumo, que passou de sólido para líquido.


A era da liquidez, marcada pela falta de profundidade das relações e fugacidade, criou o ambiente ideal para o surgimento de novas necessidades e possibilidades de consumo, de maneira que os próprios indivíduos vivenciam um processo de "comodificação", transformando-se em mercadorias, na medida em que passou a ser possível comprar não apenas utensílios, mas receitas de vida .


Os indivíduos, ávidos para atender aos padrões impostos e melhorar cada vez mais sua imagem, compram fórmulas para saber o modo ideal de ser, de se comportar e de viver, terceirizando suas escolhas. Dessa forma, a contratação de profissionais como coaches e personal stylists tornou-se corriqueira e, para muitos, necessária, uma vez que, diante de tantas opções de escolha e da ânsia de se alcançar determinado status, sem correr o risco de errar, muitos preferem buscar uma orientação supostamente profissional, pois o resultado dessa escolha poderá vir a ser determinante para o sucesso social.


Verifica-se, pois, uma manifesta padronização do consumo, cuja inobservância tende a fazer com que o indivíduo "desapareça", sendo simplesmente ignorado pelos demais, justamente por não ter conseguido acompanhar a exigência predatória da moda e dos novos símbolos de consumo que surgem diariamente. Para ser "notado", ou para ter algum "valor social", o indivíduo precisa consumir e, mais além, mostrar aos outros que não apenas consome, mas que o faz com rapidez, voracidade e sem nenhuma culpa.


Diante da inegável primazia da lógica consumista, é forçoso questionar se todas as esferas da vida foram reduzidas ao ato de consumir. A despeito de todas as evidências que apontam nesse sentido, a resposta é que ainda existe um núcleo intangível de valores que, felizmente, resistem ao mundo do consumo.


A "Hipermodernidade" não é sinônimo de niilismo moral. Muito pelo contrário, certos valores como o respeito e a tolerância se solidificaram, os direitos humanos são cada vez mais protegidos, e a verdadeira afetividade é mais valorizada do que nunca. Devido à efemeridade ínsita a era do hiper, esse núcleo de valores passa a ser ainda mais sublime, sobretudo em um tempo marcado por tantas relações superficiais e descartáveis.


Embora, à primeira vista, o que acaba de se afirmar possa parecer contrário ao que fora exposto até então, a verdade é que se trata de mais um dos paradoxos dessa "hipersociedade" em que se vive.


O consumo, em sua acepção mais pura, talvez seja tão antigo quanto a sociedade. Ao se conceber o consumo como a aquisição de bens e serviços com vistas à satisfação das necessidades humanas, se chegará à conclusão de que se trata de uma prática secular e inerente à vida em comunidade.


Não obstante, o sentido do consumo sofreu inegáveis transformações nos últimos tempos, de modo que, dentre as várias acepções que lhe podem ser atribuídas, a que prevalece na era do hiper é aquela que o eleva ao extremo. O significado contemporâneo do consumo é inédito e multifacetado, pois passou a englobar tantas possibilidades que restringi-lo à satisfação das necessidades humanas passou a ser uma forma meramente rudimentar -e até mesmo inadequada -de descrever esse fenômeno.


O consumismo dos dias de hoje não mais se limita à satisfação das necessidades, mas também e, principalmente, dos desejos:


O consumismo de hoje, porém, não diz mais respeito à satisfação das necessidades -nem mesmo as mais sublimes, distantes (alguns diriam, não muito corretamente, "artificiais", "inventadas", "derivativas") necessidades de identificação ou a autossegurança quanto à "adequação". Já foi dito que o spiritus movens da atividade consumista não é mais o conjunto mensurável de necessidades articuladas, mas o desejoentidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e essencialmente não referencial que "as necessidades", um motivo autogerado e autopropelido que não precisa de outra justificação ou "causa". A despeito de suas sucessivas e sempre pouco duráveis reificações, o desejo tem a si mesmo como objeto constante, e por essa razão está fadado a permanecer insaciável qualquer que seja a altura atingida pela pilha dos outros objetos (físicos ou psíquicos) que marcam seu passado .


A intrínseca volatilidade dos desejos vai ao encontro dos valores típicos da sociedade líquida, tornando-se o fator que propulsiona e alicerça a dependência consumista. A superficialidade hoje vivenciada faz com que os indivíduos vejam a satisfação dos seus desejos como uma forma de se libertar do inevitável vazio instaurado, mas o efeito é justamente o contrário: uma vez que os desejos são fluidos e transitórios, a plena satisfação não consegue ser alcançada, e então o ciclo recomeça, impelido pela esperança de que essa satisfação um dia ocorra.


Desse modo, vislumbra-se a consolidação de um consumo de signos, detentor de uma linguagem própria, necessária para que os indivíduos estabeleçam relações entre si, uma vez que o homem se relaciona na medida em que consome. Os bens de consumo funcionam, nesse cenário, como um canal de comunicação necessário entre as pessoas, apto a identificar afinidades porventura existentes, eis que a lógica predominante é a de que pessoas que consomem as mesmas coisas têm as mesmas predileções, e, portanto, pertencem à mesma "tribo".


Nesse contexto em que o consumo se tornou algo tão complexo, devido às inúmeras acepções e peculiaridades que assumiu, questiona-se: por que se consome? Considerando que hoje o consumo é voltado para a satisfação de desejos, e não mais somente de necessidades, o ser humano consome por uma questão de autossatisfação hedonista ou em virtude de uma necessidade de diferenciação e, consequente, aceitação social?


Desse modo, tão complexas quanto o consumo contemporâneo são as causas que o promovem. Há uma inegável inclinação emotiva e hedonista no consumo, que, para Lipovetsky, faz com que os indivíduos consumam, antes de tudo, mais para sentir prazer do que para rivalizar com os demais, buscando tornar sua vida mais "produtiva". 1 Nesta perspectiva, o próprio luxo estaria mais relacionado com a satisfação que proporciona do que com o status .


De fato, hoje, mais do que nunca, se percebe uma íntima relação entre o consumo e o hedonismo, na medida em que a felicidade é equiparada ao prazer, e o prazer ao consumo. Assim, numa realidade onde todos têm o dever de ser felizes, o consumo aparece como um meio supostamente eficaz para se alcançar essa finalidade. É por essa razão que hoje se consomem não apenas objetos, mas também experiências e sensações.


Diante das frustrações e inquietações do cotidiano, o consumo aparece como um refúgio, amparado na crença de que quanto mais se consome, mais próximo da felicidade se estará. E é nesse sentido que a perspectiva hedonista do consumo se fortalece e difunde a ideia de que o consumo pode ser uma forma de se atenuar as infelicidades e, ao mesmo tempo, de se recompensar os esforços individuais através do raciocínio "compro porque mereço".


Paralela a essa visão hedonista, há, no consumo, uma acepção social, evidenciada pela sua capacidade de comandar o processo de estratificação da sociedade. Assim, pode-se dizer que há, ao lado do "consumo emocional", um "consumo social", porquanto os bens consumidos possuem o condão de determinar a posição do indivíduo na sociedade, ou mesmo de diferenciá-lo em relação aos demais.


A lógica social do consumo pode ser analisada a partir de dois aspectos fundamentais. Primeiramente, como processo de identificação e de comunicação, estruturado em um código constituído por práticas de consumo que equivalem a uma espécie de linguagem e de identidade pessoal, conforme abordado anteriormente. O segundo aspecto fundamental consiste exatamente na questão da diferenciação social, em que os bens se apresentam como verdadeiros valores estatutários no seio de uma hierarquia .


Vive-se naquilo que ) chamou de "Mundo Invertido", em que o verdadeiro é apenas um momento do falso, pois numa sociedade confessional como a atual, não basta apenas adquirir os mutantes símbolos de consumo da indústria cultural, mas revelar a "feliz" aquisição aos demais, preferencialmente nas redes sociais e condicionar o bem-estar à quantidade de "amigos" virtuais que aprovaram aquele momento.


O consumo, portanto, para ter um valor intrínseco para o sujeito, seja por seu caráter hedonista de autossatisfação pessoal, seja como "remédio" para as doenças da alma pós-moderna, fonte de reconhecimento social, ou mesmo quando a justificativa para o consumo seja puramente utilitarista (adquirir algo de que se precisa), dever ser "espetacularizado", naquilo que ) chama de afirmação da aparência em negação da própria vida.


Cuando la necesidad es soñada socialmente, el sueño se hace necesario. El espectáculo es el mal sueño de la sociedad moderna encadenada, que no expresa en última instancia más que su deseo de dormir. El espectáculo vela esse sueño.


Em outras palavras, vive-se numa realidade em que o assédio de consumo "hipnotiza" os homens, deixando-os adormecidos para as relações pessoais autênticas, forjando momentos artificiais de uma felicidade ilusória, pautada na premissa de que o consumo é o termômetro do poder social. Quanto mais se consome, maior o status alcançado na sociedade pós-moderna.


Todavia, apesar do prestígio social, este consumidor está só e infeliz, mas sua alienação é tão grande, que muito dificilmente alcança a percepção de que vive num mundo sombrio, impessoal e que resume a relevância do sujeito à sua capacidade econômica, apenas.


É inegável a total pertinência da definição de Vargas Lhosa (2013, p. 123-124) para a banalização da cultura pós-moderna:


A raiz do fenômeno está na cultura. Ou melhor, na banalização da cultura imperante, em que o valor supremo é agora divertirse e divertir, acima de qualquer outra forma de conhecimento ou ideal. As pessoas abrem um jornal, vão ao cinema, ligam a tevê ou compram um livro para se entreter, no sentido mais ligeiro das palavras, não para materializar o cérebro com preocupações, problemas, dúvidas. Só para distrair-se, esquecer-se das coisas sérias, profundas e inquietantes e difíceis, e entregar-se a um devaneio ligeiro, ameno, superficial, alegre e sinceramente estúpido.


O consumo, portanto, se tornou esse grande refúgio em homenagem ao ócio, ao prazer e à realização social, pois quanto mais distraído de suas responsabilidades diárias e pesados compromissos familiares e profissionais, maior será a propensão ao consumo e maior será a vulnerabilidade do consumidor assediado, pois verá no ato de consumir a expressão legítima de uma fuga à dura realidade dos papéis socais que se vê obrigado a seguir.


A busca frenética pelos bens de consumo é a busca, na verdade, por uma pseudo liberdade, que mascara uma real infelicidade do indivíduo e seu crescente mal-estar pessoal e social.


Contra a letargia individualista em prol de uma democracia moral: o assédio de consumo se beneficia da inação cívica do consumidor.


É preciso difundir a ideia de que a autoestima do indivíduo não está no seu poder de compra, ou na submissão aos apelos publicitários do mercado e que uma eventual decisão estritamente utilitarista quanto às suas necessidades de consumo não o excluirá da vida social, ou será motivo de constrangimento e depreciação financeira.


Ao contrário, revelará que ainda há espaço para uma vontade livre e espontânea do consumidor, a despeito da coação econômica do mercado e do comprometimento da subjetividade individual pelo assédio de consumo. E será justamente essa vontade livre, consciente e responsável que terá o condão de reposicionar a autoestima cívica do consumidor, agora compreendido como cidadão, num patamar político mais elevado, permitindo-lhe influir (e acreditar no poder transformador de sua influência) no processo deliberativo para o aperfeiçoamento das normas de consumo, objetivando a revisão dos parâmetros éticos de atuação dos agentes econômicos, melhor corrigindo as distorções apelativas de um modelo predatório pautado no consumo compulsivo.


Através das inúmeras ferramentas jurídicas previstas na Lei 8.078/90 (CDC), das quais destacam-se: a) a participação qualificada no âmbito da Política Nacional das Relações de consumo, através de Conselhos, Audiências Públicas e mesmo no processo de definição das políticas para o consumo; b) exercício da legitimação extraordinária das Associações Representativas de Defesa do Consumidor; e c) reconhecimento do poder normativo autônomo no âmbito das Convenções Coletivas de Consumo, o consumidor, agora visto como categoria politicamente organizada, poderá exercer e cobrar um maior controle da atividade empresarial, exigindo a elevação dos padrões de qualidade e segurança dos produtos e serviços colocados no mercado.


Haverá uma espiral virtuosa que vai desde a educação para compreender os diferentes graus de comprometimento empresarial para com os deveres impostos pela lei, passando pelo nivelamento das escolhas do consumidor a partir de parâmetros rigorosos que passem a considerar, por exemplo, a maior projeção de durabilidade de bens de consumo, a credibilidade institucional da marca para com o atendimento às demandas dos consumidores e a transparência na oferta.


O empresário que não se antecipasse às predileções do consumidor, ou aquele que não reconhecesse ou valorizasse a opinião do consumidor, estaria fadado ao insucesso. A educação, nesse sentido, envolve uma obrigação recíproca entre consumidores e agentes econômicos.


O acesso à informação, por sua vez, seria o ponto de partida para o próprio exercício da liberdade de escolha, pois define os conceitos de vício e defeito na responsabilidade civil, além de se revelar como aspecto determinante para a caracterização da oferta e publicidade ilícitas.


Ademais, observa-se que a Política Nacional das Relações de Consumo por vezes é confrontada com novos desafios e necessidades dos consumidores, obrigando uma permanente atualização do microssistema normativo de proteção ao consumidor, de modo a oxigenar os métodos de solução de conflitos.


Os apelos de consumo padronizados e que simulam um modelo de vida ideal e fantasiado merecem uma melhor regulação, ou seja, o consumidor precisa de melhores instrumentos para se contrapor às ofertas da indústria cultural, que impõem um modelo de comportamento através de práticas pré-contratuais desleais ilustrativas de um verdadeiro assédio para o consumo padronizado, irresponsável e danoso à sociedade como um todo.


A oferta e a publicidade agressivas, portanto, são capazes de criar um verdadeiro estado de danosidade no mercado e o estímulo ao inalcançável e falseado padrão de qualidade de vida acaba por tornar a sociedade doente. Em outras palavras, o consumidor se vê atingido, agora, em sua incolumidade e dignidade a partir de um verdadeiro dano existencial.


A indústria cultural dita modelos de comportamento préestabelecidos, define quais serão as novas necessidades de consumo em escala global, interfere no senso estético, informa aquilo que deverá ser adquirido para se alcançar um pseudo status social e até mesmo para a realização pessoal.


O consumidor está sendo doutrinado a ter seus hábitos de consumo decididos por terceiros, uma espécie de servidão voluntária, em que se revela mais cômodo aceitar os padrões impostos pela indústria cultural, a ter que fazer escolhas por si próprio. A abordagem utilizada é agressiva, fruto de um verdadeiro assédio, subjugando a capacidade de escolha e reflexão do consumidor, obrigando-o a decidir por impulso e de acordo com standards estéticos pré-estabelecidos.


O apego a uma individualidade artificial, que sugere uma responsabilidade apenas para consigo mesmo, é uma ideia difundida pelos atuais e cada vez mais persuasivos modelos de convencimento publicitário de massas, em detrimento da singularidade individual de cada um.


Em outras palavras, a lógica do mercado atual suscita, como dito por Zygmunt Bauman (2011, p. 63) a "descartabilidade" dos homens a partir da própria superficialidade de suas predileções, em regra forjadas pelo próprio mercado.


A sociedade de consumo acostumou-se com o obsoletismo planejado, pois a ideia de durabilidade de bens de consumo não agrada ao mercado, que sempre almejou a circulação contínua de bens e, nos últimos anos, também se incorporou aos hábitos do consumidor de um modo geral, na medida em que sua insatisfação pessoal com a vida ou mesmo suas carências emocionais e sociais podem ser facilmente compensadas pela satisfação e prazer de comprar. A ideia aqui não é satisfazer uma necessidade real de consumo, normalmente associada à utilidade daquele bem para uma finalidade específica, mas sim uma necessidade aparente, às vezes relacionada à autoafirmação do sujeito, concebida pela criatividade publicitária, que cumprirá uma finalidade ilusória e, naturalmente, passageira.


O convite à educação cívica nada mais é que uma provocação dirigida ao indivíduo, precisamente, ao cidadão e, coletivamente, à sociedade. Há uma provocação baseada na ideia de que o estado de apatia política que graça na sociedade hipermoderna tem alimentado e, às vezes, fortalecido as próprias vicissitudes do sistema político, as desigualdades entre os homens, a violação aos direitos humanos e, em última análise, favorece o agravamento da vulnerabilidade comportamental do consumidor diante das técnicas predatórias do segmento empresarial pautadas no assédio de consumo.


Ao romper com o individualismo das democracias liberais, fortemente influenciadas pela ideia de prudência cívica, onde impera um sentimento de indiferença, justamente para não comprometer a liberdade negativa (tão preciosa no modelo econômico capitalista), pode-se visualizar as virtudes do instinto de sociabilidade, único capaz de confrontar para corrigir as mazelas da democracia, a saber: falta de compromisso e credibilidade na representação política, supervalorização da regra da maioria e a discriminação por ela produzida e da própria acomodação "incômoda" da cidadania, que faz dessa passividade um importante mecanismo de alienação e dominação econômica.


Num mundo globalmente capitalizado, o indivíduo se tornou refém de seus impulsos materialistas, que, sobrevalorizados pelos meios de publicidade e convencimento em massa, são vendidos como verdadeiras necessidades de consumo, supostamente fundamentais para o bem-estar físico e, sobretudo, psíquico.


A sociedade de consumo evoluiu de tal maneira que, conquanto haja normas tão avançadas no reconhecimento dos direitos transindividuais do consumidor, é muito mais fácil e convidativo optar por uma estratégia de atuação pulverizada na esfera individual de interesses em busca de recompensas econômicas imediatas.


Não há medo de se recorrer ao Judiciário para propor uma demanda de consumo, exigindo obrigações, impondo deveres ou, até mesmo, pedindo indenizações com duplo caráter repressivo e compensatório em face de eventuais danos produzidos por produtos ou serviços viciados ou defeituosos. Contudo, na esfera coletiva, via de regra, haverá uma tímida articulação política quanto às medidas preventivas e repressivas que pudessem impingir ao segmento empresarial mudanças mais sensíveis em seu modo de atuação no mercado.


Há um constante desafio de se aproximar a democracia de um conceito de sociedade pluralista:


Pero en una sociedad compuesta por grupos relativamente autónomos que luchan por su supremacía, por hacer valer sus intereses contra otros grupos, podrían encontrar jamás realización una tal norma, un tal principio? Aparte el hecho de que cada grupo tiende a identificar el interés nacional con el del proprio grupo, existe algún criterio general que pueda permitir distinguir el interés general del particular de éste o de aquel grupo, o de la combinación de intereses particulares de grupos que se ponen de acuerdo entre sí a despecho de los otros? El que representa intereses particulares tiene siempre un mandato imperativo. Y dónde podemos encontrar un representante que no represente intereses particulares? .


Pela leitura do trecho acima, percebe-se que Bobbio vê com certa desconfiança a ideia de uma representação política isenta de influências particulares e interesses pessoais, pois além da pressão exercida pelos grandes grupos econômicos e hegemônicos no meio social, há a tentação natural do político ceder às tentações do poder político que ele próprio vê como absoluto, até porque a sociedade não se vê obrigada a fiscalizá-lo.


Desse modo, há várias promessas não cumpridas pela democracia com estrita vinculação com a relação de consumo: a) dificuldade de estabelecer uma sociedade plural; b) dificuldade de se divorciar dos interesses particulares; c) incômoda persistência das oligarquias econômicas; d) dificuldade de ocupar todos os espaços em que se exerce o poder que toma decisões vinculantes em nome de todo grupo social (espaço limitado); e) cidadão não educado: falta de exercício da prática democrática do cidadão .


Compete à sociedade civil e à opinião pública o papel de inquisidoras das mazelas do sistema democrático, como garantia do seu próprio aperfeiçoamento, porquanto serão realizadas, com a participação cívica, as mudanças que o próprio sistema necessita para desenvolver melhor suas metas. Reside, também, aí a importância da desobediência civil. É uma espécie de alarme de segurança que deve disparar quando algo na democracia está errado ou funciona mal.


Ao ser indagado sobre a melhor forma de governo, disse que não saberia responder, mas dizia que a democracia seria a pior, pois "todos sem ser todos decidem". Isso quer dizer que se o sistema democrático se incumbiu de afastar o indivíduo das decisões coletivas (não se pode esquecer que, muitas vezes, esse afastamento é voluntário e cômodo do ponto de vista de uma liberdade negativa que se mostra mais importante que os compromissos cívicos e com a ideia de solidariedade), pois não é o cidadão quem decide por ele, embora essa realidade acabe sendo obumbrada pela ilusão demagógica de perfeição vendida por aqueles que se beneficiam de um sistema democrático falho.


Ao se conceber a política como a formação discursiva da vontade comum, então, a representação só tem sentido como uma questão técnica, como um mecanismo para suprir a impossibilidade fática da participação igual e efetiva na tomada de decisões .


Não se pode reduzir o político ao poder administrativo, ou seja, ao Estado. Deve-se repensar o papel desenvolvido e que podem desempenhar a sociedade civil e a opinião pública, como canais de participação nesta formação democrática de vontade coletiva, através de um discurso permanente que garanta ouvir todas as vozes que foram marginalizadas durante a afirmação do monismo estatal na produção jurídica, o que seria extremamente importante dentro dos novos espaços políticos de deliberação previstos na Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), conforme já destacado acima.


A opinião pública deverá ser entendida como uma rede de comunicação de conteúdos e tomadas de posição e de opiniões, que constitui a voz da sociedade civil e que tem por finalidade canalizar os problemas que afligem a sociedade, para que cheguem ao conhecimento do legislativo e favoreçam as melhores soluções .


Cada homem tem a propriedade de sua própria pessoa e de seu próprio trabalho. No primeiro caso, o homem não poderá ser arrancado, contra sua vontade, deste estado d'alma para ser submetido a um poder político ou de qualquer outro tipo sem o seu consentimento. No segundo caso, o fim dominante e principal do agrupamento humano em comunidades sob a direção de um Governo é a presunção de sua proximidade. Nenhuma vontade geral pode transgredir esse imperativo principal, eis que o primeiro objetivo dos homens é o de desfrutar de seus bens em paz e segurança.


Da mesma forma, o povo, iludido com um pseudo crescimento econômico e uma tênue melhora no seu poder aquisitivo, já sente tentadora sensação de acomodação. Em outras palavras, a letargia política é cativante, desde que protegido o senso de individualidade do homem, que é mais importante do que sua própria cidadania.


A cidadania moderna foi menos fruto de uma conquista popular, quanto o resultado da penetração gradual das classes sociais intermediárias no jogo político. A concessão do sufrágio universal não representou mais do que uma forma sutil de desqualificar a sublevação popular nas cidades. Pode-se dizer que foi uma inteligente receita contra a revolução. A cidadania sem voto é uma cidadania platônica, portanto, perigosa para a manutenção do status quo, na medida em que pode se tornar um ideal a ser alcançado, despertando a população de sua letargia e comodismo ante a precária representatividade que lhe é apresentada.


Há um fortalecimento de uma cidadania individualista, o que daria ensejo, inclusive, a uma espécie de "vulnerabilidade política do consumidor". Os direitos humanos são um presente do Estado ao povo, para melhor lhe convencer de sua legitimidade.


Para Roberto , ainda que se possa dizer que todas as sociedades humanas têm uma ideia de indivíduo como fato inevitável resultante da mesma natureza humana, nem todas fazem dele um elemento determinante de sua visão de mundo, subordinando todo o resto ao seu desejo e bem-estar. Nesse último caso, que foi e continua a ser o mais comum, segundo DaMatta, a noção de pessoa prevalece sobre a de indivíduo, porquanto nela se compreende não só uma unidade isolada e autossuficiente, percebida como demasiada abstrata, senão como uma entidade humana real, definida concretamente pela função que ostenta na comunidade. Nas sociedades predominantemente holistas, compreendida a brasileira de influência católica, a pessoa se transforma em ser social em razão de sua linhagem, seu clã, sua família, seu meio social e as relações que daí derivam .


Por exemplo, quando um indivíduo anglo-saxão pergunta ao seu interlocutor: quem você pensa que é? O brasileiro replica: você sabe com quem está falando? . Suas concepções íntimas só reconhecem a pessoa e ignoram o indivíduo, a não ser como noção retórica ou para indicar com o dedo até o excêntrico inclassificável. Assinalam a cada um uma posição fixa na sociedade e associam ao desejo de individualizarse com a renúncia, na linha hindu de salvação individual pelo ascetismo, ou até mesmo com uma atitude anormal. Por outra parte, a referência ao individualismo e à cidadania evoca no Brasil uma espécie de expulsão mal-intencionada até o anonimato das massas. O indivíduo não é nada, pois só importam as relações pessoais e os benefícios daí resultantes, a nível econômico, político e social.


"Aos inimigos a lei e aos amigos tudo". Isso significa dizer que não há igualdade jurídica no espaço social e que o império da lei e a rigidez burocrática só valem para confundir aos adversários e o povo pobre e, em virtude da qual, a hierarquia e o patrocínio clientelista aportam as verdadeiras chaves do jogo político.


É fácil notar o acentuado individualismo clientelista nas sociedades atuais, no sentido de que o indivíduo cria uma espécie de redoma de contenção para proteger seus interesses pessoais e domésticos, sendo estes últimos aqueles que tocam a nossos familiares e amigos. Neste particular, precisa é a observação de Esperanza , que assinala:


Nadie busca la verdad, ni siquiera acerca de sí mismo y sus necesidades más profundas. Por no hablar de las necesidades de los demás. El sentido de la empatía y el de la imparcialidad están totalmente atrofiados. Ayudo a lo mío y a los míos, y a los demás sólo en tanto en cuanto de ello se derivan ventajas sociales que repercutan claramente en mi interés.


Deve-se romper com a democracia prudencial que relega o indivíduo à ignorância, por seu próprio egoísmo de pedir ao Estado apenas que reconheça e respeite seu modo de vida escolhido. O caminho a ser seguido é o da democracia moral.


Na democracia prudencial, cada indivíduo se ocupa de seus assuntos particulares e individuais, e dos intersubjetivos só na medida em que seja preciso para proteger seus privilégios .


Por ejemplo, si soy rico me interesa unirme con otros ciudadanos para contribuir con más impuestos a mejorar la suerte de los demás, o tal vez sólo en la medida en que se conviertan en potenciales consumidores de los productos que vendo en el mercado.


Por razones prudenciales puedo oponerme a las bolsas de pobreza que generan inseguridad, delincuencia, etc., pero, en la medida en que el dolor o la miseria ajenano me rocen, me resultan totalmente indiferentes .


Para a democracia moral, ao contrário, é muito importante o desenvolvimento da noção de empatia, como um sentimento moral, pois:


Mediante la sympatheia o empatía entramos en contacto a través del desarrollo del sentimiento moral con un mundo rico de seres humanos variados y distintos de mi comunidad y de otras comunidades que me ayudan a agrandar mis horizontes personales. Mediante la empatía los otros se hermanan con nosotros y las fronteras que el tiempo o el espacio, la clase social, la diferencia cultural, etc., había colocado entre los humanos se debilitan .


Com o desenvolvimento dessa empatia, deixaremos de lado nossos interesses pessoais, e passaremos a nos sensibilizar com os demais, rompendo bloqueios sociais como classe, espaço e diferenças culturais.


Na democracia prudencial, os outros são vistos como competidores na luta por bens materiais de todos os tipos. Qualquer ato espontâneo de afeto é visto como excessivo .


Na democracia moral, ao contrário, se priorizam os desejos qualificados, ou seja, aqueles referentes à melhora pessoal, intelectual, física, afetiva, que são preferíveis aos desejos materiais e de comodismo pessoal que alimentam a indolência. Isso, naturalmente, não exclui os desejos de curto alcance, desde que estejam relacionados com a concretização daqueles qualificados, o que não significa uma vida ascética, ou seja, desprovida de prazer.


A democracia moral é niveladora por excelência, ou seja, não existem indivíduos inferiores, nem superiores. Todos vivem numa igualdade material, senão plena e ideal, pelo menos mais próxima do equilíbrio que favorece o desenvolvimento de todos os indivíduos indistintamente, sendo a vontade e o esforço individuais os principais fatores de eventuais discriminações. Isso significa dizer que compete à democracia favorecer o crescimento pessoal e social de todos, muito embora nem todos estejam interessados nesse desenvolvimento, sendo aqueles que aceitam o convite, naturalmente, os que desempenharão as melhores funções e que usufruirão de um maior número de benefícios, sem que isso venha a caracterizar desigualdade social.


A vontade do indivíduo é muito importante nas democracias morais, na medida em que as ações impostas contra a vontade geram uma espécie de dependência infantil, que, ao longo do tempo, agravará a imaturidade dos indivíduos. Na realidade, a ideia de que os representantes políticos decidam pelo grupo é agradável, seja porque não se acredita no poder de mudança da vontade individual, seja porque os membros do grupo estão ocupados com os prazeres materiais da vida capitalista, ou mesmo interessados em resolver os problemas que, direta ou indiretamente, comprometem sua harmonia pessoal, equilíbrio familiar e social. Será este cidadão mais egoísta que feliz? Será que a ideia de felicidade já está tão deturpada que se confunde com a de egoísmo? esclarece que a moralidade não nos ensina a sermos felizes, mas somente a sermos dignos de felicidade. É fácil concordar com essa conclusão, na medida em que a razão se torna prescindível se os sentimentos, por si só, inclinam o homem a atuar moralmente. Muitas vezes o atuar conforme a moral induz a comportamentos que afastam o homem da felicidade, desde que sua consciência se dê por satisfeita com esse esforço para ser uma pessoa melhor.


A maioria dos seres humanos desperdiça seu tempo e sua experiência alimentando suas frustrações e lamentações, acreditando que, com isso, conseguirá alguma mudança, ou aplacará seu sofrimento. A segunda alternativa talvez seja verdadeira, pois se transfere a responsabilidade de seus insucessos a terceiros, à religião e ao próprio acaso (quando se toma como referência a ideia de sorte ou azar), mas à mudança jamais, porque essa pressupõe uma ação efetiva rumo à emancipação, o que está muito distante do atual estado letárgico da sociedade.


Generalmente vivimos amargados pensando que somos las víctimas de un sistema que trata mejor a nuestros contrincantes que a nosotros mismos. Nosotros y nuestros hijos nos merecemos todo lo mejor, nosotros e nuestros hijos somos los mejores. Así, en lugar de mejorarnos, realmente perdemos nuestra vida y nuestras energías en lamentaciones.


En contra de los que suponen que la felicidad es un don, comparto la idea de Russel de que la felicidad es una conquista y que para ello se requiere especialmente inteligencia, simpatía y cordialidad .


A felicidade e a virtude são fundamentais para o desenvolvimento da empatia, que leva os indivíduos a cultivarem princípios universalizantes e normas de conduta que incentivem e se pautem na ideia de solidariedade. Entretanto, se o padrão de felicidade do sujeito estiver distorcido a partir de um modelo individualista e alimentado pelo consumo como vício, o consumidor estará, cada vez mais, distante da real felicidade, pois cultivará sentimentos artificiais em prazeres voláteis e imediatos e que acabam por precarizar as relações interpessoais autênticas.


A liberdade do homem está na capacidade de não apenas perseguir, mas de também construir suas próprias metas. O fato de indivíduos de culturas distintas valorarem coisas diferentes não prova que sejam distintos entre si, mas que simplesmente se encontram em etapas diferentes de seu desenvolvimento, o que lhes fez eleger metas, valores e prioridades diferentes em sua existência. Isso é o relativismo ético.


Así, hoy en día es del todo frecuente afirmar que el ser humanos es egoísta y competitivo, cuando éstas son más bien las características de nuestro entorno sociopolítico.


En sociedades capitalistas de mercado libre prácticamente sin restricciones, donde todo se obtiene mediante la su competencia, los seres humanos se vuelven realmente lobos los unos para los otros. Sin embargo, en sociedades donde las aristas más hirientes del capitalismo se han suavizado, las personas pueden llegar a disfrutar las unas con los éxitos de las otras. Por supuesto que existen seres humanos en las sociedades que conocemos que basan su felicidad particular en situarse por encima de los otros, es decir, en tener poder y habilidad suficiente para contar con la mayor cantidad posible de "servidores" en uno u otro sentido .


Foi o próprio capitalismo que ensinou que a competitividade e o individualismo seriam os melhores caminhos para o sucesso. Como consequência, o homem desenvolve uma obsessão para ostentar o poder e o prestígio social, em detrimento dos interesses dos mais débeis e frágeis, que passarão a lhe servir não como algo digno de reprovação moral, mas natural e inerente ao jogo social em que uns, necessariamente, serão melhor sucedidos que outros e estes, por sua vez, deverão se resignar ao seu estado de servidão e subserviência.


Los placeres de éxito personal, el llegar a ser alguien en la vida, el contar con el reconocimiento público, o, en otro orden de cosas, despertar admiración por la rara habilidad de destacar en las cosas más variadas, desde ser una buena cantante de ópera, una excepcional sex-symbol o un coleccionista de obras de arte, habilidad para marcar goles o estafar al físico, etc., son algunas de las metas. Vivimos en una sociedad realmente curiosa en la que los seres humanos parecen buscar compulsivamente el éxito y el aplauso social .


O triunfo pessoal na vida se torna a única batalha pública do indivíduo, já que as demais cederam espaço à moral socrática de autorrespeito e êxito de si mesmo. A participação na vida pública se resume a uma meta pífia de satisfação pessoal.


Kant, como muchos, piensa equivocadamente que la felicidad personal sólo se consigue en la persecución de los fines propios, cuando desde Platón a Mill ha sido demostrado fehacientemente que la mejor, más profunda, más honda felicidad privada es la que se deriva de nuestra cooperación generosa en los asuntos públicos. Por lo demás, tener que decirse uno a sí mismo "soy un indigno" es una de las formas más claras de decirse uno a sí mismo que ha fracasado en el nivel más profundo de su personalidad y es, por consiguiente, su conducta causa no tan sólo de horror moral, sino de infelicidad desgarradora .


De acordo com essa perspectiva, de que a moral está diretamente atrelada à verdadeira felicidade, pode-se concluir que todo aquele que vive convulsionado pelo gigantismo de seu individualismo, aprisionado, ou corrompido de alguma maneira, não é apenas um parasita social que causa dano ao seu entorno, mas, sobretudo, é um ser humano moralmente enfermo com incapacidade para desfrutar dos prazeres verdadeiros e profundos. É possível reconhecer que haveria, em razão dessa acomodação cívica e desse individualismo acentuado, uma vulnerabilidade política do consumidor, que o impediria de perceber a realização pessoal de servir ao próximo e vivenciar o crescimento e a harmonia do grupo social.


O autorrespeito, o amar-se, o sentir-se autossatisfeito são alguns dos modos mais apropriados para recuperar a saúde moral e transformar o homem em uma pessoa que goza e produz o gozo na convivência social. Entretanto, se a ideia de autossatisfação for alimentada apenas pelo consumo e pela obsessão de viver uma vida produtiva, no sentido do indivíduo se autoproporcionar um sem número de experiências e prazeres para melhor aproveitar a efemeridade da vida, haverá, por consequência, um grave efeito colateral, uma espécie de depressão pelo comprometimento de sua autoestima e real compreensão de que sofre e que está só numa sociedade confessional, em que os amigos são apenas virtuais, assim como os sentimentos de empatia e acolhimento social.


Ilude-se aquele que acredita que a diferenciação e o reconhecimento social vêm do pseudo status proporcionado pelo consumo, até porque é absolutamente impossível alcançar o falseado padrão de qualidade de vida proposto pelo capitalismo predatório.


Nas democracias prudenciais, em que há um grande apego aos prazeres materiais, não existem modelos éticos, mas apenas estéticos, ou seja, qualquer um que tenha grandes posses e sucesso profissional se converte a um modelo a ser imitado.


O autorrespeito não deriva da gratificação de atender às sanções externas, mas do reconhecimento íntimo da própria valia moral .


Assim sendo, diante da ausência do direito ao desenvolvimento livre, que gera a liberdade crítica, viver-se-ia num mundo empobrecido, onde a permissividade e a letargia se apropriam do universo em nome de uma pseudo liberdade .


Uma das principais causas da falta de desenvolvimento da empatia dos seres humanos reside na falsa sensação de felicidade derivada do gozo pacífico de suas possessões materiais, ou seja, aquilo que fora apropriado mediante seu trabalho, astúcia, intrigas e usura. Segundo , esse é o espelho fiel da democracia prudencial de Locke.


A competitividade humana por possessões no mundo atual torna cada vez mais difícil reconhecer que a verdadeira felicidade estaria no desfrute solidário dos bens. É importante sentir-se como os outros, o que não ocorre pela escassa imaginação que precisa ser estimulada.


A liberdade negativa se opõe à ideia de coletivização, pois é muito mais fácil para o indivíduo exigir que apenas lhe deixem em paz. A cidade feliz é a cidade verdadeiramente justa, pois é a cidade em que todos vivem e gozam harmonicamente. A democracia, portanto, produz uma ficção mais ou menos inevitável de que cada indivíduo conta exatamente igual ao outro, como se todas as pessoas fossem igualmente válidas, o que, do ponto de vista de uma igualdade substancial, não se confirma no plano fático .


Considerações finais.


Os imensuráveis avanços trazidos pela globalização vieram acompanhados de uma profunda transformação na sociedade. No panorama pós-moderno, houve a edificação de uma sociedade de consumidores, em que o consumismo passou a representar uma inafastável premissa para a aceitação e reconhecimento sociais.


Entre a era moderna e a pós-moderna houve uma verdadeira ruptura paradigmática, caracterizada pelo abandono de todos os freios institucionais que impediam a emancipação individual. O consumo, que até então se limitava à classe burguesa, tornou-se acessível às massas, resultando na edificação de uma "comunidade de consumidores" e na consequente transformação do homo faber -famosa expressão concebida por Hannah Arendt para designar o homem típico da era moderna, que se dedicava exclusivamente à produção -para o homo economicus, que se volta não só para a produção, como também para o consumo.


Não obstante, o ritmo frenético da era contemporânea situou a pós-modernidade no passado, não devido à ocorrência de uma nova ruptura, mas sim no sentido de indicar que as transformações até então vivenciadas foram elevadas a um nível hiperbólico, ensejando o surgimento de uma terceira fase da modernidade: a "Hipermodernidade".


Destarte, a indústria cultural relegou a cultura ao âmbito de produtividade do sistema capitalista, promovendo o esfacelamento da independência dos mecanismos de produção da obra de arte e do senso estético, integrando-a ao funcionamento da ordem posta. Com isso, a criação de necessidades de consumo obedece a critérios de mercado e acaba por impor predileções e forjar padrões de comportamento uniformes, neutralizando o potencial crítico do indivíduo, tornando-se a manifestação da lógica do mercado, com a dissolução da oposição entre cultura e mercado e a intensificação de seu uso como mecanismo psicotécnico de manipulação das massas. Consequência desse processo foi a homogeneização crescente dos indivíduos, exatamente análoga à ocorrida com os produtos da indústria cultural.


Na sociedade hipermoderna, todas as mudanças trazidas pela pós-modernidade foram potencializadas, o que fez com que tudo adquirisse um novo sentido. Assim, todas aquelas transformações pós-modernas passam a conviver com outras perspectivas e valores, numa ótica paradoxal de valores invertidos, antagônicos, e essencialmente fluidos.


Essa modernidade líquida e paradoxal tem um ritmo próprio e intenso, e, ao mesmo tempo, impossível de ser acompanhado. Esse descompasso instaurou um verdadeiro vazio no homem, criando um ambiente propício para que o consumo se estabelecesse como uma forma supostamente eficaz de suprir as frustrações e angústias.


Trata-se, na realidade, de uma satisfação que jamais será atingida e é justamente esse o objetivo. A indústria cultural de massa, por intermédio de suas técnicas de manipulação, cria e forja necessidades a cada instante e os consumidores, ávidos por preencher o vazio constante, sucumbem às promessas de uma felicidade descartável.


Cada bem consumido corresponde não mais apenas a uma dada utilidade, mas sim à adesão de determinados valores, de sorte que todas as escolhas passam a ser condicionadas socialmente, e, o consumidor, fica cada vez mais vulnerável, daí porque é possível reconhecer uma vulnerabilidade comportamental agravada.


Há, pois, uma "mercantilização da vida", sendo que o mais alarmante não é a expansão da lógica consumista em si, mas sim a volatilização dos indivíduos, a fragilização de suas personalidades e a desestabilização emocional.


Nesse panorama essencialmente paradoxal, exsurgem os desafios contemporâneos à tutela consumerista, que precisa, mais do que nunca, se adaptar a essa nova realidade, conscientizando o consumidor do seu papel e possibilitando a recuperação da sua autoestima cívica, pela ocupação dos espaços políticos de deliberação criados pelo CDC e, sobretudo, pelo desenvolvimento gregário de pertencimento à categoria de consumidores.


A sabedoria do homem consiste no domínio de sua liberdade. Conhecer seus caminhos e eleger quando transitá-los. Não se pode virar as costas às questões de grupo, sobretudo quando inserido na categoria dos consumidores, nem tampouco viver à mercê de uma consciência individual excludente, pois muitas vezes impregnada de preconceitos e valores nem sempre nobres, que sugerem, inclusive, uma nova espécie de vulnerabilidade: a política. É preciso, portanto, criar laços sociais, desenvolvendo a capacidade de conhecer e valorizar o outro, satisfazendo-se através de um prazer político solidário.


Sob o viés de uma democracia participativa e partindo de um novo conceito de cidadania instrumental, o consumidor deve intervir no processo deliberativo e debater as principais questões da relação de consumo, organizando-se para proteger os seus interesses, devendo compreender as virtudes da participação social e confiar que a sua atuação coletiva é capaz de produzir maiores benefícios aos consumidores coletivamente considerados em comparação ao que se conseguiria através de ações individuais pulverizadas. O novo status político do consumidor o elevará a uma condição de maior empoderamento no mercado, a partir do fortalecimento de um interesse comum pelo sentimento de empatia social e que dotará a categoria de consumidores de confiança e legitimidade para participar ativa e permanentemente de um processo político-deliberativo com vistas a aprimorar a tutela jurídica dos agentes econômicos do mercado. As 07 (sete) Constituições elaboradas no curso da história do Brasil apresentam-se como rupturas do regime anterior, seguidas de centralizações estatais, que conduzem à concentração decisória de matérias políticas, administrativas e jurídicas.


BREVE ANÁLISE ANATÔMICA DO FEDERALISMO BRASILEIRO.


O Corpo Estatal, no entanto, naturalmente deve-se amoldar às peculiaridades do próprio sistema que o mantém. O sistema nervoso do corpo humano, por exemplo, é o responsável por controlar as ações voluntárias e involuntárias. Em termos de estado, o sistema é quem determina o limite e o alcance de atuação de cada ente e órgão que o compõe; no caso do federalismo brasileiro, reparte-se as competências entre os três diferentes entes: união, estados e municípios.


A forma do estado, outrossim, deve ser anatomicamente compatível não apenas com seus órgãos públicos, mas, especialmente, com os indivíduos e as organizações sociais de toda ordem: associações, coletivos, igrejas, etc. Observa-se, porém, que no Brasil as Instituições Públicas não lidam tão bem com tais instituições intermediárias: ora mostram-se muito repressivas, ora lenientes.


Em especial, citam-se as mudanças legislativas feitas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), órgão de cúpula do Poder Judiciário, à revelia do inerte, e também disfuncional, Poder Legislativo. Contudo, tal como respirar pela boca pode ser aprazível no momento de cansaço, a longo prazo acarreta quadros clínicos graves.


Nesse contexto, perscrutam-se as peculiaridades do federalismo brasileiro e algumas disfuncionalidades federativas.


As peculiaridades do Federalismo brasileiro e os elementos comuns do Federalismo.


Afirma-se, sabiamente, que "o ideal federativo é no Brasil tão antigo quanto a reivindicação de independência" (FERREIRA FILHO, 2022, p. 52). O apontamento guarda consonância com a realidade, especialmente ao se considerar o Ato Adicional à Constituição de 1824, que ampliou consideravelmente a descentralização, atribuindo "forma jurídica à província, dandolhe autonomia dentro do seu território e respeitando o que fora reservado exclusivamente ao império" (CORREA, 2022, p. 155).


Consigna-se, porém, que não se busca, em breves linhas, esculpir um conceito de federalismo, mesmo porque, embora seja matéria há muito estudada e discutida, não há um consenso geral, tampouco uma Teoria Geral do Federalismo, e, apesar dos esforços, "sequer resultaram em uma definição clara e comumente usada do termo" . É possível, contudo, pincelar características gerais a um federalismo saudável e eficiente.


É notório na história humana que as várias formas de organização social e política constituem um verdadeiro reflexo da própria natureza humana que, a depender do momento histórico, ora centralizou, ora descentralizou suas decisões administrativas, políticas e jurídicas. É nesse sentido que Durkheim, clássico sociólogo, dividiu as complexidades da organização comunitária em duas: as solidariedades mecânicas e orgânicas. Naquelas, os indivíduos estão mais interligados; nestas, diferem-se bastante uns dos outros; a primeira é mais familiar e coesa; a segunda, muito complexa e atomizada .


Ocorre que, independentemente da complexidade social experimentada -seja qual for o ponto referencial para se determinar se uma sociedade é ou não complexa em relação a outra, o regionalismo sempre foi figura enaltecida desde a antiguidade, razão por que a premissa federalista se mostrou tão bem-sucedida em qualquer forma de governo. A esse fenômeno dá-se o nome de Princípio da Subsidiariedade, o qual será comentado em tópico específico.


Modernamente os ensaios federalistas (federalist papers) são, talvez, o conjunto de textos mais consultados quando se objetiva refinar a arquitetura de um determinado estado. Os textos consistiram, em verdade, numa adaptação das antigas experiências grega, romana e inglesa, aprimorando-as para um novo arranjo social.


O ato de estudar antigos regimes ou, ainda, regimes contemporâneos, o que ocorre, por exemplo, no direito comparado, é uma prática antiga já feita, inclusive, na Roma Antiga que, em certo tempo, a fim de remodelar as leis ali existentes, selecionaram comissários para examinar as repúblicas mais bem constituídas, a exemplo do primeiro Decenvirato, em 451-454 a.C, cujos comissários visitaram Atenas, que, à época, vivia o auge sob Péricles .


Mais do mais, a arquitetura de estado norte americana irradiou pelos rincões do mundo. Assim, ao se falar em federalismo brasileiro, a visitação aos textos federalistas é um trânsito necessário, tal qual aquele enfrentado por Dante Alighiere que, para encontrar sua amada Beatriz, passou antes pelo inferno e pelo purgatório.


A noção elementar de federalismo impõe-nos que a "federação é sinônimo de associação de partes" . Logo, no Brasil reside a peculiar união do todo já reunido, isto é, nunca existiram partes antes separadas e independentes que, em nome de uma identidade de um projeto nacional comum, reuniram-se, abrindo mão de sua independência -característica esta nunca experimentada por nenhum estado-membro ou município do Brasil -e conservando sua autonomia.


Houve, portanto, a partir da República, uma federação outorgada. Esta passou a ser um fato, ao menos formal, com a publicação do Decreto nº 01, de 15 de novembro de 1889 que, sob o governo provisório, outorgou as formas de estado e governo, respectivamente, federalista e republicana.


Em seguida, o Decreto nº 802, de 04 de outubro de 1890 traçou linhas gerais a fim de organizar a seara estadual, convocando assembleias legislativas e, dentre outras medidas, investindo autoridades locais, isto é, os governadores, com a atribuição de decretarem e promulgarem as Constituições dos Estados.


Aos Não se trata de mera metonímia -valendo-se da expressão utilizada pelo Ex-Ministro Cezar Peluso -a noção de uma justiça estadual, tampouco ela se circunscreve a uma relação vertical cuja subordinação é natural; é, sim, uma repartição constitucional de competência, cuja expressão local possui competências próprias e naturais, e não mera concessão de um ente central ou uma atribuição fictícia cedida pelo Monarca residente em Brasília.


Em ambientes cuja opacidade afugenta o bom discernimento, rememorar alguns ensaios federalistas constitui verdadeiro clarão de luz, com intensidade para dissipar a névoa que encobre a boa vista. Ambos, Federalistas e Antiferedalistas, embora grupos opostos na discussão sobre o tamanho da União, partiam de uma premissa comum: a existência de um ente federal que unisse as ex-colônias e as respeitasse nos seus limites.


A noção de uma competência natural dos estados-membros é visível na própria retórica de Alexander Hamilton, considerando que para ele "os governos estaduais, por suas constituições originais, possuem uma soberania completa" (HAMILTON, 2011, p. 289-290), de modo que havia "uma probabilidade maior de invasões da autoridade federal pelos membros, do que da dos membros pela autoridade federal" (IBIDEM, p. 290).


Tem-se essa impressão porque além de o ente federal ser novo, quando comparado aos já existentes estados, "os poderes legados no Governo Federal pela Constituição proposta são poucos e definidos. Os que irão permanecer nos Governos dos Estados são numerosos e indefinidos" (MADISON, 2011. p. 424).


Nota-se que Hamilton utilizou no original o termo sovereignty, isto é, soberania, característica, no entanto, reservada ao ente que representa todos os membros federados que, no caso do Brasil, é a República Federativa do Brasil (RFB), nos termos do art. 18, caput, da Constituição Federal.


Na hipótese de uma invasão por parte da União sobre os Estados-membros, hastear-se-iam bandeiras de alertas e "planos de resistência seriam planejados" (MADISON, 2011, p. 432), por parte dos estados-membros.


Certamente se à época da convenção que discutiu a Constituição proposta dos EUA, algum dos founders afirmasse que a justiça estadual existe, ao lado de uma justiça federal, por "mera figura de linguagem", haveria uma dispersão em massa de Estados que há pouco haviam lutado por sua independência.


Anna Gamper afirma que "a distribuição de competências e a participação das unidades federadas junto ao nível central de legislação são os dois mais essenciais elementos de um estado federalista" .


Em suma, se há um elemento que caracteriza o instituto federalismo, certamente é a prática de descentralização a partir da autonomia dos entes federados que, no mesmo plano, sentam-se e decidem-se sobre suas questões locais, abrindo-se mão do poder decisório, porém, em questões que repercutem nacionalmente e a todos interessa.


O princípio da subsidiariedade e as facções de James Madison.


É uma verdade da natureza humana o fato de o indivíduo sê-lo mais afeto ao que lhe é mais próximo e comum ao que é mais distante e inverossímil. Imagina-se, por exemplo, um chefe autoritário, cujo mister consiste em centralizar toda e qualquer decisão, avocando para si funções que pertencem aos seus subordinados e impondo-os expedientes de trabalho que ignoram a realidade de cada setor. No longo prazo, a equipe não nutrirá sequer um resquício do espírito de iniciativa, e a insatisfação com o chefe crescerá.


É possível aplicar o mesmo raciocínio à vida privada de um indivíduo que vive em sociedade. Pensa-se, por exemplo, que esse indivíduo tem família, amigos e vizinhos, bem assim uma naturalidade e nacionalidade definidas. Agora, esboça-se, em termos práticos, que seu nome é Marcos, pai de Júlia e esposo fiel de Carol; tem dois melhores amigos, Roberto e Rafael, que, também, são seus vizinhos e frequentam o mesmo bar. Acrescenta-se, por fim, que Marcos é natural de Roraima e é, consequentemente, brasileiro.


Fosse imaginar em um nível de estima pessoal, isto é, amor ou apreço, é possível afirmar que o Marcos mais se preocupa com Carol e Júlia, esposa e filha, respectivamente, que com Roberto e Rafael, seus melhores amigos; assim como valoriza mais estes a dois desconhecidos. É quase certo, também, que Marcos prefere que asfaltem sua rua, por onde transita todos os dias, a rua de um bairro distante, trajeto nunca utilizado por ele, embora padeça do mesmo problema que o seu.


Nota-se, portanto, certa gradação de preferência. A mesma lógica se aplica em termos de Estado. Antes, indivíduos se arranjam em família, posteriormente em comunidades que, em certo ponto, tornam-se cidades e, por fim, estados que, em conjunto, formam um país. Cada nível complementa o anterior, observando-se, porém, uma ordem "de baixo para cima", começando do local e indo para o geral.


No fim, respeitando esse comportamento da natureza humana, empoderam-se as pessoas e as comunidades, tornando-as agentes ativas no progresso de sua comunidade. Não há, destacase, um cidadão/morador da União, mas, há, sim, um cidadão brasileiro, morador de Boa Vista -Roraima. Nisso se define o princípio da subsidiariedade.


Roberto Campos, um dos constituintes, em passagem lapidar, aduz que o aludido princípio se expressa em dois sentidos, espacial e funcional:


Num sentido espacial, o governo federal só deve fazer o que não pode melhor ser feito pelo estado; este se absterá do que melhor pode ser feito pelo município; e o município evitará tarefas de que podem se incumbir os cidadãos. Num sentido funcional, a intervenção do Estado no domínio econômico seria supletiva, excepcional e temporária .


Feita essa breve reflexão, impõe-se elucidar como, diferentemente da revolução francesa, cujo resultado foi um período de terror e uma posterior centralização de poder em Napoleão Bonaparte, os EUA lograram, num espaço territorial imenso, um federalismo republicano que dura incólume com o passar do século.


A resposta mais breve, talvez, esteja na teoria das facções elaborada por James Madison e apresentada no ensaio federalista nº. 10, cuja premissa parte da ideia de que os indivíduos tendem a agrupar-se em facções. Em outras palavras, seria o que C.S Lewis chama de Círculo Íntimo.


Para Madison, suprimir a formação das facções, permitindose o surgimento de grupos homogêneos, significaria o fim da liberdade; tentar impedir a aspiração desses grupos à hegemonia sobre os interesses das minorias a partir de sua extinção, seria como acabar com o risco de fogo através da eliminação do próprio ar.


A proteção, portanto, vem do sistema republicano, baseado no princípio da representação, e o "seu alargamento por via federal [. ] são a dupla salvaguarda de que nenhuma facção, ligada a nenhum interesse particular [. ] se poderá impor esmagadoramente sobre as minorias e os indivíduos" (HAMILTON; MADISON; JAY, 2011, p. 32).


Em síntese, quanto mais grupos plurais existirem, mesmo que amplamente antagônicos entre si, maior é a chance de uma sociedade prosperar e mais difícil é a sua conversão em tirania, seja da maioria ou da minoria. E todos devem participar, direta ou indiretamente, nas decisões que inferem de algum modo no curso do país. Não se pode olvidar, afinal, que o pluralismo é um dos fundamentos da república (Art. 1º, inciso V, da CF/88).


Essa tese consiste numa tradução ontológica da natureza federalista que, repisa-se, parte do local para o geral.


A separação dos Poderes.


A sistematização, como hoje é conhecida, da tripartição dos poderes consagrou-se a partir de Montesquieu. No entanto, desde os socráticos já se continha in nuce a ideia de dividir os poderes.


Veja-se, pois, na República de Platão, o registro do diálogo que Sócrates travou com Trasímaco e Glauco, no qual dissertou sobre as formas de governo existentes. Tem-se, por exemplo, Trasímaco, em um dos diálogos, afirmando que "dentre os Estados, há os que vivem sob o regime da monarquia, outro da democracia, e outros da aristocracia" .


Em síntese, Platão, discípulo de Sócrates, observou, a partir dos estudos sobre as cidades-estados, a existência de ciclos de organização de governo, e dividiu-as em dois grupos: a forma pura e a forma impura. Participam desta a anarquia, a oligarquia e a tirania. Compõe aquela, porém, a democracia, aristocracia e a monarquia.


Os pensadores posteriores a Platão criam que deste ciclo apenas três poderes eram legítimos: a monarquia, a democracia e a aristocracia, os quais viriam a ser, com a sua efetiva sistematização, o executivo, o legislativo e o judiciário, respectivamente.


Posteriormente, a Inglaterra, sob os auspícios de Locke, formulou a primeira construção sistemática de uma teoria de separação de poderes em Legislativo, Executivo e Federativo .


De conseguinte, Montesquieu justificou a divisão das funções estatais nos seguintes termos:


Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de Magistratura, o Poder Legislativo é reunido ao Executivo, não há liberdade. Porque pode temer-se que o mesmo Monarca ou o mesmo Senado faça leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Legislativo e do Executivo. Se estivesse junto com o Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário: pois o Juiz seria Legislador. Se estivesse junto com o Executivo, o Juiz poderia ter a força de um opressor. Estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse estes três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções púbicas; o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares .


Modernamente, porém, não se adotou, pois, uma separação absoluta entre as funções públicas, na qual, em tese, inadmitiria qualquer tipo de interação entre os poderes e impediria, inclusive, uma margem de atuação num campo reservado a outro.


A corroborar nesse sentido Hans Kelsen:


A significação histórica do princípio chamado 'separação de poderes' encontra-se precisamente no fato de que ele opera antes contra uma concentração que a favor de uma separação de poderes .


No contexto dos federalistas norte-americanos, a ambição neutraliza a ambição. Da própria premissa se extrai, pois, que a separação dos poderes não é absoluta, mas, antes, admite-se margem para fiscalizarem-se mutuamente e integrar-se.


Princípio da separação dos Poderes no Brasil.


A Carta Imperial de 1824 inaugura a forma explícita do princípio da separação dos poderes, o que se convencionou nas Constituições Brasileiras subsequentes à exceção da Constituição de 1937.


A Constituição Imperial incorporou à clássica tripartição uma quarta função -o Poder Moderador (art. 10) -exercida pelo monarca, Chefe do Executivo, a qual se destinava a assegurar o equilíbrio e harmonia entre os poderes.


A primeira Constituição da República (1891), a seu turno, consagra o formato tradicional tripartite (art. 15) e, acompanhando o modelo norte americano, adotou o presidencialismo como sistema de governo.


Em 1934, a Carta Política, destoando de suas predecessoras, menciona a expressão "coordenados" (art. 3º) em vez de "harmônicos" referindo-se à relação entre legislativo, executivo e judiciário.


Conforme aduzido, a Constituição de 1937 silencia no que tange ao princípio da separação dos poderes, cuja menção expressa é retomada em 1946 (art. 36), reatando-se a tradicional previsão da harmonia e independência entre funções do Estado, no que foi seguida pelas constituições posteriores.


A Constituição Cidadã de 1988 refirmou sua sujeição ao princípio, aduzindo que "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário" , o qual alçou status de cláusula pétrea, a rigor do art. 60, § 4º, III, da CF/88.


Assim, o Poder Legislativo se encarrega da função legiferante e fiscalizatória, sendo regulado pelos dispositivos contidos no at. 44 ao 75 da Constituição. O Executivo é incumbido da atribuição de administrar (arts. 76 a 91, CF/88); e, por fim, o Judiciário é responsável por julgar, encontrando guarida nos artigos 92 a 135 da CF/88.


A despeito das competências estarem bem delineadas, repisa-se, não se trata de uma estrutura rígida e estanque, de modo que é possível a delegação de determinadas atribuições, além do que os poderes exercem, de forma atípica, funções naturalmente estranhas ao seu próprio poder. A exemplo disso, cabe citar o processamento e julgamento de impeachment do Presidente da República pelo Poder Legislativo, conforme determina o artigo 52, inciso I, da Constituição Federal.


Nesse sentido, pois, reside a independência e harmonia, eis que as competências que cabem a cada um dos poderes provêm da Constituição Federal, prescindindo de anuência dos demais poderes para serem exercidas não sendo, contudo, absolutas. Ao lado disso é que se configura o sistema de freios e contrapesos, como mecanismo de equilíbrio e controle recíproco dos poderes.


Um exemplo constitucional pátrio e marco histórico na configuração deste sistema é o controle da atividade típica do Legislativo pelo Poder Executivo através do veto, instrumento por meio do qual o Presidente da República nega, total ou parcialmente, sanção à elaboração legislativa (art. 66, § 1º, CF/88). Em contrapartida, o Congresso Nacional, mediante quórum de maioria absoluta de seus membros, tem a prerrogativa de rejeitar o veto presidencial (art. 66, § 4º, CF/88).


A invasão de competência: movimentos do corpo estatal que conduzem à disfunção de competência.


Numa análise perfunctória, identifica-se dois movimentos que, no fim, conduzem à disfunção do federalismo brasileiro e eles podem ser endógeno e exógeno. No primeiro caso, as interações de forças internas de um órgão atuam sobre si mesmo, invadindose campo reservado a um mesmo poder, mas com repercussão em outra esfera. Imagine-se, por exemplo, que a Justiça Federal passe a atuar numa competência reservada à Justiça Estadual ou vice-versa.


No segundo caso, um movimento exógeno, é observado quando o Poder -seja Legislativo, Executivo ou Judiciárioadentra campo de atuação reservado a outro ente federado, quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal, justificando-se numa inércia legislativa, assume o papel deste na feitura ou alteração eminentemente legislativas.


Quando um Estado tolera movimentações dessa natureza, a ruptura institucional, à base de muita instabilidade social, é destino certo. Países como o Brasil, que ostentam um número razoável de Constituições, têm, reiteradamente, praticado autofagia ao se envenenar, crendo que, a cada parada cardíaca, isto é, a cada nova Constituição, tem evoluído.


A longo prazo, quando em estado grave, as limitações dos papéis institucionais estão diluídas de tal modo que atos que configuram nítida invasão, inclusive a outros órgãos independentes que não pertencem a um dos poderes, como o Ministério Público, pode ser praticada sem nenhuma dificuldade, como vem fazendo o Supremo Tribunal Federal no Inquérito nº. 4.781, popularmente conhecido como Inquérito das Fake News.


As distorções nas competências do Estado brasileiro a partir da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.


Desnudou-se a verdadeira ficção que deu origem ao federalismo brasileiro, com direito a União antes de Estados, como disse Rui Barbosa; a soberania da União como expressão natural do federalismo, como julgou o então min. Teori Albino Zavascki; ou, ainda, a inexistência de justiças estaduais e federais senão por metonímias, como fundamentado por Cezar Peluso.


Indivíduos de alta genialidade como Felisbelo Freire e João Camilo de Oliveira Torres já destacavam o caráter do faz de conta que ignora o fato histórico em nome da fórmula. Pontua-se, porém, que os ex-ministros Teori Zavascki e Cezar Peluso descreveram de fato como é o modelo brasileiro de estado federal: um faz de conta institucional.


A esta altura, mapeou-se timidamente os contornos do modelo federal de estado brasileiro, revelando-se, ainda, a agitação do STF. Justo por isso, a seguir apresentam-se 04 (quatro) oportunidades em que este órgão de cúpula usurpou a função legislativa.


A começar pela discussão ocorrida na data de 21/03/2022 no plenário do STF, quando do voto do min. Gilmar Mendes na ADI 5.394. Na oportunidade, disse o ministro:


"Vamos resolver o problema na esfera eleitoral". É preciso que a gente denuncie isto, que a gente anteveja esse tipo de manobra, porque não se pode fazer isso com o Supremo Tribunal Federal. "Ah, agora eu vou dar uma de esperto e vou conseguir a decisão do aborto, de preferência como na turma com 03 ministros, aí a gente faz um 02x01. (JORNAL DA GAZETA, 2022, 1:05-1:32).


Logo após proferir tais ditos, o min. Gilmar foi interrompido pelo Min. Roberto Barroso que passou a ofendê-lo o que levou, em seguida, à suspensão da sessão pela então presidente min. Carmen Lúcia.


A situação revela-se grave, considerando que um ministro da própria Corte acusa um par de manobrar o STF a fim de perseguir objetivos que não o da justiça; a gravidade se intensifica quando tais objetivos inferem conduzir a Corte a manifestar essência legislativa, corrompendo-a a partir de sua natureza, que não se confunde, em absoluto, com o seu exercício legítimo de função atípica.


Embora o bate-boca tenha ganhado os holofotes, o que foi dito antes é o cerne do problema. Trata-se, em verdade, de um grito de socorro do próprio sistema, como um corpo que manifesta dor ante uma lesão. Cabe à população não se anestesiar quando situações como essa mostram-se à luz.


O min. Gilmar Mendes fez menção ao julgamento pela 1ª Turma do STF que analisou o pedido de revogação de prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto. Na oportunidade, conferiu-se interpretação conforme a Constituição aos arts. 124 a 126 do Código Penal, excluindo-se do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetiva no primeiro trimestre, o Ministro Luís Roberto Barroso foi acompanhado pela maioria da turma, veja-se:


[. ] A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria Não se pode olvidar que no julgamento da ADPF nº. 54, sob relatoria do Min. Marco Aurélio, o advogado que ajuizou a referida arguição foi o Luís Roberto Barroso. Observa-se, portanto, que se trata de uma posição pessoal do agora ministro que, independentemente do mérito da posição, não pode se valer da Corte como instrumento legislativo.


A corroborar, cita-se, novamente, o Min. Cezar Peluso, mas, dessa vez, para demonstrar como, de fato, há controvérsia no ato de instrumentalizar o STF a fim de utilizá-lo como órgão para alterações legislativas, segue:


Essa tarefa é própria de outra instância, não desta corte, que já as tem outras e gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no congresso nacional que se deve debater se a chamada 'antecipação do parto', neste caso, deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude. (Trecho extraído do voto do ministro Cezar Peluso. STF -ADPF: 54 DF, Relator: min. Marco Aurélio, Data de Julgamento: 09/04/2012, Data de Publicação DJe: 12/04/2012) [grifo nosso] Destaca-se, logo, que a finalidade aqui não é apreciar o mérito da pauta do aborto, exercendo juízo sobre a sua aprovação, trata-se, sim, de não permitir a um órgão de cúpula, único poder técnico da República, movimentar-se como se a inércia não fosse o seu mister, bem assim a imparcialidade por excelência.


Outro caso levado à apreciação do STF, e que serve de exemplo para evidenciar essa sanha reformadora por via não legítima, é a PET nº. 3388 RR, de relatoria do min. Roberto Barroso que validou a Portaria/MJ nº. 534/2005 e o Decreto Presidencial de 15/04/2005, demarcando-se a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.


Embora possa parecer sedutor acelerar uma agenda que aparenta comungar com o anseio de uma maioria social, não se pode fazê-lo via judiciário, mas, necessariamente, deve-se passar pelo crivo legislativo, sob pena de nunca se estabilizar o federalismo brasileiro, ficando refém da jurisprudência de uma Corte que pode alterar sua posição conforme as estações do ano; conquistas alcançadas hoje podem ser perdidas, por exemplo, a partir da "canetada" de um togado.


Considerações finais.


O Brasil herdou do antigo sistema duas práticas inconciliáveis com o modelo de república federativa: os resquícios de um estado unitário, cujo fator de perigo reside na própria formação dos indivíduos que ocupam cargos de relevância na República; ainda, o comportamento deliberado de se ignorar os fatos históricos em nome de fórmulas altamente abstratas e pouco eficazes.


O art. 1º da Constituição Federal de 1988, embora tenha estabelecido uma República Federativa, vem operando, em diversas ocasiões, exaustivamente demonstradas, como um estado unitário que não consegue respeitar a existência das competências naturais dos estados-membros, mas, sim, enxerga-as como meras concessões do governo central, que podem ser avocadas a qualquer tempo.


As contínuas Constituições brasileiras, precedidas de rupturas políticas e seguidas de centralização estatal, vem conduzindo, quase sempre, à descaracterização da Forma Federativa. O produto final é um Estado cujo sistema de freios e contrapesos é fragilizado a tal ponto que o pêndulo político de turno consegue instrumentalizar os próprios poderes da República.


O federalismo deve-se pautar pela premissa de igualdade entre os membros federados, sendo que a única pessoa jurídica que se sobrepõe a elas é a República Federativa do Brasil; o respeito aos diferentes grupos sociais, minorias, e afins se dá a partir da política como exercício transparente, que incentiva a multiplicação das forças individuais e coletivas.


De conseguinte, o pluralismo deve constituir essência da sociedade; esta, por sua vez, só se mantém preservada quando as instituições de poder respeitam os indivíduos e as instituições intermediárias em contato direto com eles, tais como a família, as igrejas, as associações, os grupos representantes de movimentos sociais, etc.


Por fim, por mais sedutor que seja o atalho das mudanças sociais pelo judiciário, considerando sua celeridade, no final equivale à clássica metáfora de Ulisses e o canto das Sereias, relato no qual Ulisses, então capitão do navio, exige a seus marinheiros que o prenda ao mastro da embarcação, porque temia perder o seu controle uma vez que ouvisse o canto das sereias .


Desses precedentes, cuja via não é legitima numa democracia plena, só pode "brotar venenos que fingissem néctar!" (MILTON, 2022, p. 65); é como confundir um monstro marinho com um refúgio seguro (IBIDEM, p. 27). O princípio da subsidiariedade é o mister de um bem sucedido federalismo.


Referências.


POLÍTICAS PÚBLICAS A FAVOR DE LA NO DISCRIMINACIÓN POR RAZÓN DE IDENTIDAD Y DIVERSIDAD EN ESPAÑA.


María Ángeles González Bustos.


José Luis Domínguez Álvarez.


Consideraciones previas.


C uando hacemos alusión a la actuación de los poderes públicos en materia de libertad sexual debemos referimos necesariamente al análisis de las políticas públicas en materia de igualdad que tratan de luchar contra la discriminación por razón de sexo, y más concretamente por orientación sexual, entendidas tradicionalmente como "el conjunto de decisiones, objetivos y medidas adoptadas por las instituciones públicas en relación al fomento de la igualdad entre mujeres y hombres y a la mejora de la situación socioeconómica, política, y cultural de la mujer" .


El punto de partida de las políticas públicas de igualdad en España lo encontramos en la creación del Instituto de la Mujer y para la Igualdad de Oportunidades (IMIO) en 1983, fruto de las presiones ejercidas tanto por la influencia internacional de Naciones Unidas y la Comunidad Económica Europea, como del movimiento feminista dentro y fuera de España, y sobre todo, por las presiones ejercidas por las activistas socialistas dentro del propio Partido Socialista Obrero Español en torno a 1982 . Pero no será hasta la primera década del siglo XXI cuando asistamos a la institucionalización, desarrollo y consolidación de las políticas de igualdad en nuestro país, especialmente las que se refieren a la lucha contra la violencia de género y la igualdad en el empleo .


Sin embargo, gran parte de la doctrina denuncia que este impulso de las políticas sociales y de igualdad se ha visto frenado por las estrategias de control del déficit público adoptadas en Europa y en España a partir del año 2010 y que ha supuesto el progresivo desmantelamiento de las políticas públicas sociales y de igualdad, así como un profundo retroceso en los derechos de las mujeres .


Nuestro análisis se centrará en la evolución y consolidación de las políticas públicas orientadas a promover la no discriminación, así como los nuevos horizontes que plantea la creación de la Dirección General de Diversidad Sexual y Derechos LGTBI, órgano administrativo encargado de garantizar el derecho a la igualdad de trato y no discriminación de las personas lesbianas, gais, bisexuales, transexuales, transgénero e intersexuales (LGTBI), asegurando el pleno respeto a su libertad afectivo-sexual .


La igualdad y la diversidad en la Constitución Española de 1978.


En la Constitución Española existen tres preceptos que influyen en la configuración del principio de igualdad concretamente el art. 14 de la Constitución española de 1978 que reconoce el derecho a la igualdad en los siguientes términos: "Los españoles son iguales ante la ley, sin que pueda prevalecer discriminación alguna por razón de nacimiento, raza, sexo, religión, opinión o cualquier otra condición o circunstancia personal o social". Precepto que es contemplado por el artículo 9.2 CE, que establece un mandato expreso a los poderes públicos para que promuevan las condiciones necesarias para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos sean reales y efectivas (igualdad material).


Por su parte, el art. 35.1 CE hace referencia a que "todos los españoles tienen el deber de trabajar y el derecho al trabajo, a la libre elección de profesión u oficio, a la promoción a través del trabajo y a una remuneración suficiente para satisfacer sus necesidades y las de su familia, sin que en ningún caso pueda hacerse discriminación por razón de sexo".


El principio de igualdad constituye un principio vertebrador del Estado de Derecho en su conjunto, como se desprende del tenor literal del art. 1 CE: "España se constituye en un Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y el pluralismo político".


Este principio de igualdad no impide otorgar un trato desigual a diferentes colectivos (mujeres, LGTBI, personas en riesgo de exclusión social, etc.) siempre y cuando esos ciudadanos se encuentren en distinta situación de hecho, el trato desigual tenga una finalidad razonable y constitucionalmente admisible, la finalidad que se persigue y el trato desigual sea coherente y proporcionada entre sí, tal y como se deduce de la jurisprudencia consolidada del Tribunal Constitucional. Según la cual el principio de igualdad ante la ley se plasma en la siguiente premisa: "a supuestos de hecho iguales deben aplicarse consecuencias iguales, y que las diferencias de trato necesitan justificar adecuadamente la existencia de los motivos de tales diferencias". Si se dan estas circunstancias, el trato desigual será considerado legítimo, en caso contrario nos encontraríamos ante un supuesto de discriminación o arbitrariedad, el cual se encuentra prohibido explícitamente en el ordenamiento jurídico vigente . Por consiguiente, el derecho a ser tratado por igual a aquellos que se encuentran en situaciones idénticas, no es un derecho a ser igual que los demás.


Sentadas las premisas anteriores, y a pesar del reconocimiento constitucional de la igualdad como derecho fundamental, existen numerosos ámbitos y sectores, como el social o el laboral, donde este instituto jurídico se vulnera de forma flagrante, constituyendo diversas formas de discriminación que lesionan la esfera personal de la población y socavan la dignidad de las personas afectadas.


Por discriminación entendemos la situación en la que una persona o grupo de personas es tratada de forma desfavorable a causa de su raza, orientación sexual, religión, rango socioeconómico, edad, discapacidad… La mayoría de las discriminaciones que existen en nuestro entorno son por raza (ejemplos los vemos cada día en el trato a los inmigrantes), por razón de género (como es la limitación de derechos por ser mujer, o la tristemente conocida violencia de género), o por orientación sexual (como es la discriminación a los homosexuales también conocida como homofobia, o las discriminaciones por cambio de sexo de un transexual). Cuando se discrimina a una persona se hace porque es "diferente", por que las diferencias que muestra son notarias. Todos somos diferentes en pequeños aspectos y no por eso se discrimina a una persona por ser morena, pelirroja o rubia, alto o bajo. La discriminación existe y contra ella hay que luchar por todos los medios a nuestro alcance.


Los poderes públicos intentan luchar contra la desigualdad adoptando políticas públicas, estableciendo garantías para proteger a las personas de esas situaciones. Sin embargo, nos encontramos con que en ocasiones son las propias leyes las que, sin ser conscientes de ello, dan lugar a discriminaciones.


El reflejo de la no discriminación por razón de identidad y diversidad en los textos internacionales.


La lucha contra la discriminación se inició a nivel internacional por medio de la aprobación de la Carta de las Naciones Unidas en 1945, que tiene como fundamento el respeto a los derechos humanos y las libertades fundamentales de todos los individuos sin distinción de raza, sexo, idioma o religión. Posteriormente se aprueba la Declaración Universal de los Derechos Humanos en 1948, sin eficacia vinculante entre los Estados miembros de la ONU, y el Acuerdo sobre Derechos Civiles y Políticos (en vigor desde 1976) que fue firmado por la mayoría de los países miembros.


La Declaración Universal de los Derechos Humanos (DUDH) es un documento que marca un hito en la historia de los derechos humanos. Elaborada por representantes de todas las regiones del mundo con diferentes antecedentes jurídicos y culturales, la Declaración fue proclamada por la Asamblea General de las Naciones Unidas en París, el 10 de diciembre de 1948 en su Resolución 217 A (III), como un ideal común para todos los pueblos y naciones. La Declaración establece, por primera vez, los derechos humanos fundamentales que deben protegerse en el mundo entero y ha sido traducida a más de 500 idiomas.


En este sentido, el artículo 2 DUDH establece que "toda persona tiene los derechos y libertades proclamados en esta Declaración, sin distinción alguna de raza, color, sexo, idioma, religión, opinión política o de cualquier otra índole, origen nacional o social, posición económica, nacimiento o cualquier otra condición". Por su parte, el artículo 3 DUDH positiviza el derecho a la vida, a la libertad y a la seguridad de la persona, y el art. 7 DUDH reconoce el derecho a la igualdad ante la ley en los siguientes términos: "todos son iguales ante la ley y tienen, sin distinción, derecho a igual protección de la ley. Todos tienen derecho a igual protección contra toda discriminación que infrinja esta Declaración y contra toda provocación a tal discriminación".


En la misma línea el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (PIDCP), adoptado y abierto a la firma, ratificación y adhesión por la Asamblea General en su resolución 2200 A (XXI), de 16 de diciembre de 1966, establece una serie de previsiones de especial transcendencia para el reconocimiento del derecho a la igualdad y la no discriminación en su sentido más amplio. Preceptos entre los que conviene destacar los siguientes:


• Art. 3 PIDCP. "Los Estados Partes en el presente Pacto se comprometen a garantizar a hombres y mujeres la igualdad en el goce de todos los derechos civiles y políticos enunciados en el presente Pacto".


• Art. 20.2 PIDCP. "Toda apología del odio nacional, racial o religioso que constituya incitación a la discriminación, la hostilidad o la violencia estará prohibida por la ley".


• Art. 24.1 PIDCP. "Todo niño tiene derecho, sin discriminación alguna por motivos de raza, color, sexo, idioma, religión, origen nacional o social, posición económica o nacimiento, a las medidas de protección que su condición de menor requiere, tanto por parte de su familia como de la sociedad y del Estado".


• Art. 26 PIDCP. "Todas las personas son iguales ante la ley y tienen derecho sin discriminación a igual protección de la ley. A este respecto, la ley prohibirá toda discriminación y garantizará a todas las personas protección igual y efectiva contra cualquier discriminación por motivos de raza, color, sexo, idioma, religión, opiniones políticas o de cualquier índole, origen nacional o social, posición económica, nacimiento o cualquier otra condición social".


La importancia capital de estos textos internacionales reside en el establecimiento de un conglomerado de previsiones normativas esenciales sobre las que se fundamentará con posterioridad, tanto el ordenamiento jurídico comunitario como los diferentes regímenes normativos de los Estados miembros, con la finalidad de impulsar el derecho fundamental a la igualdad y no discriminación, y garantizar con ello la salvaguarda de la dignidad de la persona.


El impacto de la Unión Europea en la consecución de una sociedad más justa e igualitaria.


A nivel europeo la preocupación por la diversidad y la no discriminación se ha manifestado de forma tardía, al igual que ha ocurrido con la igualdad de la mujer, pero a pesar de ello se ha realizado ya una labor legislativa bastante valiosa en la materia que ha influido muy positivamente en los países miembros de la Unión Europea y en otros de nuestro entorno .


La primera iniciativa comunitaria que abordó la problemática de la discriminación por orientación sexual es el Informe Squarcialupi (1984) en relación al empleo. Posteriormente en relación con el acceso al empleo y el despido se aprobó la Resolución de 8 de febrero de 1994.


Sin embargo, no será hasta la Resolución sobre igualdad de derechos de las personas homosexuales en la Comunidad Europea en 1998 1 cuando se intenten adoptar medidas específicas contra la discriminación de los homosexuales, en este sentido se pide al Gobierno y al Parlamento austriaco que supriman el art. 209 de su Código penal que establece pena privativa de libertad de seis meses a cinco años a los homosexuales y que se decrete la amnistía y puesta en libertad de todas las personas encarceladas en virtud del mismo (precepto que definitivamente fue abolido el 13 de agosto de 2002). Adicionalmente, la citada Resolución solicita a la Comisión Europea que tenga en cuenta el respeto y la observancia de los derechos humanos de los homosexuales de ambos sexos a la hora de negociar la adhesión de nuevos países a la Comunidad Europea, y que se examine la situación de los países de la Europa central y oriental, la situación de los derechos humanos de las personas homosexuales en dichos países.


El punto de inflexión es La Directiva 97/80/CE del Consejo, de 15 de diciembre de 1997, relativa a la carga de la prueba en los casos de discriminación basada en el sexo, para que las personas que se consideren perjudicadas por la no aplicación del principio de igualdad puedan hacer valer sus derechos ante los órganos jurisdiccionales. De esta forma, se establece que los Estados miembros deberán adoptar las medidas necesarias para que, cuando la parte demandante aporte ante un tribunal de justicia, u otra instancia competente, elementos de hecho que permitan suponer la existencia de una discriminación, corresponda a la parte demandada demostrar que no ha existido vulneración del principio de igualdad .


Iniciado el nuevo siglo, encontramos la Decisión del Consejo, de 27 de noviembre de 2000, por la que se establece un programa de acción comunitario para luchar contra la discriminación 2 . Este programa fue fruto de una serie de iniciativas para establecer principios comunes en materia de lucha contra la discriminación basada en motivos de sexo, origen racial o étnico, religión o convicciones, discapacidad, edad u orientación sexual. Mediante el impulso del citado programa se pretendía implementar medidas concretas para combatir la discriminación y completar actividades de la Comunidad y de los Estados Miembros, a través de la colaboración activa de la Comisión, los diferentes Estados y los interlocutores de la sociedad civil. De esta forma, la Comunidad promocionó una serie de acciones transnacionales como son el análisis de los factores relacionados con la discriminación (recogida de estadísticas, estudios y evaluación de la eficacia de las políticas de difusión de los resultados), la cooperación transnacional entre los agentes específicos y creación de redes europeas de ONG, así como la sensibilización sobre la dimensión europea de la lucha contra la discriminación.


Es de destacar también la adopción de la Carta de los Derechos Fundamentales de la Unión Europea (CDFUE), de 7 de diciembre de 2000 3 , texto que aunque inicialmente estaba impregnado de un significado meramente simbólico, ya que no será hasta la celebración del Tratado de Lisboa 4 cuando quede integrado formalmente en el acervo comunitario, contempla el derecho a la igualdad ante la ley en el art. 20 CDFUE y la no discriminación en el art. 21 CFUE en los siguientes términos: "se prohíbe toda discriminación, y en particular la ejercida por razón al establecimiento de un marco general para la igualdad de trato en el empleo y la ocupación que tiene por objeto la lucha contra la discriminación por motivos de religión o convicciones, de discapacidad, de edad, o de orientación sexual en el ámbito del empleo y la ocupación, con el fin de que en los Estados miembros se aplique el principio de igualdad de trato. Así mismo, la Directiva 2006/54/CE del Parlamento Europeo y del Consejo, de 5 de julio de 2006, relativa a la aplicación del principio de igualdad de oportunidades e igualdad de trato entre hombres y mujeres en asunto de empleo y ocupación, posee una especial transcendencia al objeto de garantizar la igualdad de acceso al empleo y a la formación profesional capacitadora. No obstante, a pesar de los múltiples esfuerzos comunitarios por avanzar en el reconocimiento de la libertad de orientación sexual e identidad de género, han surgido innumerables resistencias en el proceso de transposición de las disposiciones europeas orientadas a favorecer la no discriminación por orientación sexual, lo que se traduce en retrasos indebidos en la adaptación de las Directivas, o en la desvirtuación de las premisas inicialmente contempladas en el ordenamiento comunitario mediante la transposición incompleta al ordenamiento jurídico de los instrumentos jurídicos referenciados con anterioridad.


La destacada labor del Tribunal de Justicia de la Unión Europea en la interpretación y aplicación de las disposiciones.


La labor del Tribunal de Justicia de la Comunidad Europea ha sido muy significativa en la materia que tratamos ya que ha dictado importantes resoluciones a cuestiones prejudiciales que ante él se han planteado, interpretando las disposiciones de los diferentes Estados miembros desde el prisma del ordenamiento comunitario. Gracias a esta actuación, encontramos pronunciamientos en los que se establece con clarividencia, entre otras muchas cuestiones, que el despido de trabajador transexual por tener intención de someterse o haberse sometido a una operación de cambio de sexo, el cual recibe un trato desfavorable frente a las personas del sexo al que se consideraba que pertenecía antes de la operación, supone una discriminación que atentara contra el respeto a la dignidad y la libertad a que esa persona tiene derecho, y que el tribunal debe proteger .


No obstante, conviene subrayar que no siempre las sentencias han sido favorables a los colectivos LGTBI+ como es el caso planteado en un recurso de casación interpuesto contra una sentencia del Tribunal de Primera instancia que desestimó el recurso relativo a la denegación del Consejo de la Comunidad Europea de una asignación familiar a un funcionario de la Unión que había procedido a la inscripción de su relación de pareja en el registro oficial de su país de origen (Suecia), en el que se le concede los mismos efectos jurídicos que al matrimonio. El Tribunal desestima el recurso planteado alegando que, entre otros motivos, la intención del legislador comunitario fue conceder la asignación familiar únicamente a las parejas casadas, y no a otras formas de relación de pareja, ya que la equiparación de la pareja inscrita con el matrimonio en un número limitado de Estados miembros no puede tener por consecuencia, mediante una mera interpretación, que se incluya en el concepto estatutario de funcionario casado a personas sometidas a una normativa distinta de la aplicable al matrimonio, lo que no se considera que sea una vulneración de los principios de igualdad de trato y discriminación por razón de sexo ya que el funcionario sea un hombre o una mujer es indiferente desde el punto de vista de la concesión de la asignación familiar, sino que lo que se toma en cuenta es el vínculo que los une 6 .


En la misma línea, pero en un caso distinto relativo a la denegación de una reducción en el precio de los transportes a personas del mismo sexo que conviven maritalmente, se plantea si es o no discriminación por razón de sexo tal denegación. En este supuesto, el Tribunal de Justicia de la Comunidad Europea Más allá de su labor jurisdiccional, el papel fundamental del TJUE en la consolidación de la igualdad y la libertad de orientación sexual e identidad de género, se observa en la elaboración de numerosos documentos de la Unión Europea, así como en el Informe sobre el Plan de trabajo para la igualdad entre mujeres y hombres , en el que se solicita a la Comisión que incluya en el mismo los derechos de las personas transexuales y los problemas a los que estos se enfrentan, de conformidad con las sentencias pronunciadas por el Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas.


7 Vid. Sentencia del TJCE de 17 de febrero de 1998 en la que se plantea una cuestión prejudicial en relación a que si la denegación a un empleado de determinadas reducciones en el preciso de transporte a favor de un compañero del mismo sexo es contraria al principio de igualdad de retribución. 8 Vid. op. cit. Sentencia del TJCE de 17 de febrero de 1998.


El ordenamiento jurídico español y la libertad de orientación sexual e identidad de género.


En España, las actuaciones de los poderes públicos se han centrado principalmente en la promoción de la igualdad de género, es decir la igualdad de oportunidades entre mujeres y hombres, estableciendo un conjunto de disposiciones, entre las que destacamos la Ley 39/1999, de 5 de noviembre, de conciliación de la vida familiar y laboral de las personas trabajadoras, la Ley 30/2003, de 13 de octubre, sobre medidas para incorporar la valoración del impacto de género en las disposiciones normativas a elaborar por el Gobierno, la Ley Orgánica 1/2004, de 28 de diciembre, de Medidas de Protección Integral contra la Violencia de género o la Ley Orgánica 3/2007, de 22 de marzo, para la igualdad efectiva de mujeres y hombres .


En cambio, en relación a la protección de los derechos y libertades fundamentales del colectivo LGTBI+, la intervención de los poderes públicos no es tan visible, algo que se manifiesta en la escasa legislación específica existente en la materia. No obstante, no debemos olvidar que para llegar al estadio regulatorio actual se ha recorrido un largo y tortuoso camino, cuyo punto de partida lo encontramos en la legalización de las relaciones entre personas del mismo sexo, mediante la promulgación de la Ley 77/1978, de 26 de diciembre, de modificación de la Ley de Peligrosidad y Rehabilitación Social y de su Reglamento, normas heredadas del régimen franquista 9 , así como mediante la reforma del Código 9 La Ley de Vagos y Maleantes, aprobada el 4 de agosto de 1933, formó parte de la reforma penal de la II República en lo referente al tratamiento de vagabundos, nómadas, proxenetas y cualquier otro individuo que pudiera ser considerado por las autoridades como antisocial. Esta ley tenía la particularidad de que aseguraba que su fin era la "prevención de los delitos", y esto hizo que fuera utilizada para castigar a las personas por su aspecto o comportamiento más que por actos concretos constitutivos de delito. No tipificaba delitos específicos a los que aplicar penas preceptivas, sino que fijaba una serie de medidas de alejamiento, control e internamiento de los sujetos expedientados, hasta que se consideraba que éstos se habían reformado y habían dejado de ser peligrosos para la sociedad. Recuérdese que la Ley de Vagos y Maleantes fue de las pocas leyes de la II República Penal mediante la adopción de la Ley Orgánica 10/1995, de 23 de octubre, donde se cataloga por vez primera la discriminación por motivo de orientación sexual como circunstancia agravante de la responsabilidad criminal ex art. 22 CP. Ha existido también algún intento fallido de regulación como fue el malogrado Proyecto de Ley integral para la igualdad de trato y la no discriminación de (Boletín Oficial de las Cortes Generales, Congreso de Diputados de 10 de junio de 2011).


Normativa estatal.


Más allá de estos hitos normativos, el transcurso del tiempo, el cambio de conciencia social y la reivindicación constante e incansable del colectivo LGTBI+ ha conseguido importantes conquistas legislativas que han supuesto un paso de gigante en el reconocimiento de derechos subjetivos estrechamente vinculados a la libertad de orientación sexual e identidad de género, cuyo contenido fundamental pasamos a referenciar a continuación.


A. Ley 13/2005, de 1 de julio, por la que se modifica el Código Civil en materia de derecho a contraer matrimonio Esta Ley 10 tiene por objeto la regulación del derecho a contraer matrimonio entre personas del mismo sexo, mediante la inclusión de un apartado segundo en el artículo 44, con la siguiente redacción: "El matrimonio tendrá los mismos requisitos y efectos cuando ambos contrayentes sean del mismo o de diferente sexo". que no fue derogada por el régimen de Franco, es más, en 1954 fue modificada para incluir expresamente la persecución de la homosexualidad. Decretaba el internamiento de los homosexuales en establecimientos de trabajo o colonias agrícolas: "los homosexuales sometidos a esta medida de seguridad deberán ser internados en instituciones especiales y en todo caso con absoluta separación de los demás". 10 La Ley 13/2005, de 1 de julio, por la que se modifica el Código Civil en materia de derecho a contraer matrimonio fue objeto de un recurso de inconstitucionalidad , recurso que el Tribunal Constitucional admitió a trámite mediante providencia de 25 de octubre de 2005.


La reforma, precedida de un bronco debate parlamentario que tuvo su réplica en la sociedad española, repercutió de igual forma en la regulación tradicional de la institución del matrimonio, considerada durante mucho tiempo como la unión entre un hombre y una mujer. No obstante, conviene recordar que nuestra Constitución señala en su art. 32.1 que "el hombre y la mujer tienen derecho a contraer matrimonio con plena igualdad jurídica 11 , lo que no significa que el matrimonio deber ser única y exclusivamente entre un hombre y una mujer. En efecto, la imprecisión en la redacción del precepto constitucional permite adoptar interpretaciones diversas, presupuesto en el que sustenta que tanto unos como otros tengan derecho a casarse indistintamente con el mismo o diferente sexo 12 .


En definitiva, la Ley de matrimonio homosexual es consecuencia de interpretar el matrimonio conforme a los valores y principios constitucionales consagrados en nuestra Carta Magna (derecho a la igualdad y no discriminación, a la dignidad de la persona y el derecho al libre desarrollo de la personalidad, y la protección a todos los tipos de familia, etc.) .


La reforma del Código civil ha supuesto la posibilidad de que los miembros de las parejas del mismo sexo 14 , a través • El derecho a indemnización en caso de muerte en accidente de trabajo o enfermedad profesional del cónyuge.


• El auxilio por defunción del cónyuge o el subsidio por desempleo por responsabilidades familiares.


• Los beneficios derivados del régimen de la Seguridad Social como la pensión de viudedad 15 . Así como derechos tributarios en la declaración del IRPF, y en los impuestos de sucesiones y donaciones.


De los derechos afectados por la reforma de la institución del matrimonio, el más controvertido ha sido el de la adopción por matrimonios entre personas del mismo sexo. Sin embargo, esta cuestión era una realidad social preexistente en nuestro país, algo que deriva del reconocimiento del derecho de la mujer soltera a la maternidad por medio de las técnicas de reproducción asistida o el derecho a la adopción individual de las familias monoparentales (art. 175.4 CC) .


B. Ley 3/2007, de 15 de marzo, reguladora de la rectificación registral de la mención relativa al sexo de las personas.


Esta Ley, también conocida como Ley de Identidad de Género, supone una conquista social sin precedentes, y un paso decisivo en la consecución de los derechos reivindicados por los 15 El problema se presenta en los casos de homosexuales que enviudaron ante de legalizarse los matrimonios homosexuales, ya que el Instituto Nacional de Seguridad Social establece que no podrán cobrar pensión de viudedad en caso de fallecimiento de uno de los miembros de la pareja. Esta situación ha sido resuelta por un juez mallorquín quien en aplicación de una disposición de la ley del divorcio que establece que "quienes no hubieran podido contraer matrimonio por impedírselo la legislación vigente hasta la fecha, pero hubieran vivido como tal", ha dado la razón a una mujer que convivía con un transexual que tras negarle la seguridad social la pensión en 2002 recurrió ante el tribunal. A esta sentencia le han seguido sentencias similares en Madrid y Oviedo. 16 Contra la creencia mayoritaria de la sociedad, estudios científicos realizados por el Departamento de Psicología Evolutiva de la Universidad de Sevilla destacan el beneficio del menor al crecer en familias formadas por parejas de personas del mismo sexo ya que demuestran una mayor aceptación y compromiso con los valores democráticos como es el respeto al diferente y el comportamiento igualitario.


colectivos transexuales. Ciertamente, la norma intenta dar respuesta a una realidad social que no había sido contemplada por el legislador hasta el momento y que ocasionaba numerosos problemas en la vida cotidiana de las personas transexuales 17 (como, por ejemplo, supuestos de discriminación laboral por no estar en posesión de un documento nacional de identidad que acredite su identidad de género 18 ). Por todo ello, se reconoce el derecho a las mujeres y hombres transexuales a modificar su nombre y sexo. De esta forma, se evitan situaciones como la acaecida en la Sentencia de la Audiencia Provincial de Asturias núm 345/2006, de 25 de septiembre, donde se desestima la demanda de tutela judicial de derechos fundamentales (derecho al libre desarrollo de la personalidad, a la dignidad personal y a la propia imagen) ante la solicitud de rectificación en el Registro Civil, concretamente en su inscripción de nacimiento de las menciones de identidad relativas al sexo y nombre registral. La fundamentación del citado pronunciamiento judicial se estableció en que la doctrina jurisprudencial sobre la materia exigía para dar lugar a tal rectificación que el solicitante se hubiera sometido a los tratamientos quirúrgicos que hagan irreversible el proceso de reasignación sexual, que en el supuesto concreto se habían iniciado por la parte demandante mediante el sometimiento a un tratamiento hormonal 19 . El requisito de la imposición del tratamiento quirúrgico para obtener el cambio de las menciones de sexo y nombre registral, se considera que vulnera el derecho fundamental a la dignidad personal y libre desarrollo de su personalidad (art. 10 CE), así como el derecho a la intimidad y la propia imagen (art. 18 CE) y el de tutela judicial efectiva del art. 24 CE. Razonando, y acreditando, además que padece un trastorno de identidad sexual, que descarta la existencia de cualquier otra causa que pueda motivar su cambio de sexo. A pesar de lo cual la demanda es desestimada ya que es requisito necesario la culminación del tratamiento quirúrgico. Esta situación es solucionada en la ley que comentamos al no exigirse la cirugía de reasignación de sexo bastando con el informe médico o psicológico que acredite el trastorno de identidad sexual.


Por consiguiente, dicha Ley tiene por objeto regular los requisitos necesarios para acceder al cambio de la inscripción en el Registro Civil del sexo de una persona, así como el cambio del nombre propio para que no resulte discordante con el sexo reclamado, y se constate el cambio de la identidad de género.


La rectificación de la mención registral del sexo y del nombre se inicia con la presentación de una solicitud de rectificación en el que se hará constar la elección de un nuevo nombre 20 , debiendo acreditar el solicitante los siguientes requisitos:


• Por medio de un informe médico o psicológico clínico que le ha sido diagnosticada disforia de género. Este requisito no será exigible cuando, a través de informe de médico colegiado o certificado del médico del registro civil acciones y ayudas para dar solución a los problemas que padecían las personas transexuales. En este sentido, destacó la labor de la Junta de Andalucía en materia de atención sanitaria, la cual no solamente articuló la prestación de asistencia médica durante todo el proceso de cambio de sexo, sino que además promovió la aprobación de una prestación sanitaria a estas personas incardinada en el sistema sanitario andaluz e impulsó la creación de la primera Unidad de Identidad de Género en el Hospital Universitario Carlos Haya de Málaga. 20 Esta Ley modifica el párrafo segundo del art. 54 de la Ley del Registro Civil de 8 de junio de 1957 quedando redactado en los siguientes términos "Quedan prohibidos los nombres que objetivamente perjudiquen a la persona, los que hagan confusa la identificación y los que induzcan a error en cuanto al sexo".


se acredite haber sido sometida a cirugía de reasignación sexual con anterioridad a la entrada en vigor de esta ley.


• Que ha sido tratada médicamente durante al menos dos años para acomodar sus características físicas a las correspondientes al sexo reclamado debiendo certificar dicho tratamiento con informe médico bajo cuya supervisión se haya realizado, o en su defecto, mediante un informe de un médico forense especializado. Esta acreditación no será necesaria cuando por razones de salud o edad imposibiliten el tratamiento y se aporte certificación médica de tal circunstancia. Una vez realizada la rectificación se deberá solicitar un nuevo documento nacional de identidad, conservando el mismo número de DNI.


Este cambio no supone la pérdida de los derechos y obligaciones jurídicas que la persona hubiera alcanzado con anterioridad, y además adquirirá el ejercicio de todos los derechos inherentes a su nueva condición. En definitiva, con esta ley se resuelve la grave situación de discriminación y marginación que padecía hasta el momento el colectivo LGTBI+, el cual se veía expuesto a episodios de discriminación laboral, rechazo familiar, pérdida de relaciones afectivas, transfobia, limitaciones en el normal acceso a los servicios públicos, etc.


C. Ley 19/2007, de 11 de julio, contra la violencia, el racismo, la xenofobia y la intolerancia en el deporte.


El objeto de la citada Ley es la determinación de un conjunto de medidas dirigidas a la erradicación de la violencia, el racismo, la xenofobia y la intolerancia en el deporte. A tal fin la norma establece como actos o conductas que incitan a la violencia en el deporte, entre otras, "la entonación, en los recintos deportivos con motivo de la celebración de actos deportivos, en sus aledaños o en los medios de transporte públicos en los que se puedan desplazar a los mismos, de cánticos, sonidos o consignas así como la exhibición de pancartas, banderas, símbolos u otras señales, que contengan mensajes vejatorios o intimidatorios, para cualquier persona por razón del origen racial, étnico, geográfico o social, por la religión, las convicciones, su discapacidad, edad, sexo u orientación sexual, así como los que inciten al odio entre personas y grupos o que atenten gravemente contra los derechos, libertades y valores proclamados en la Constitución".


Para dotar de efectividad el combate contra la discriminación en el ámbito deportivo, la norma determina el régimen administrativo sancionador contra los actos de violencia, racismo, xenofobia o intolerancia en todas sus formas vinculados a la celebración de competiciones y espectáculos deportivos, en el que se tipifican las siguientes cuestiones:


• La participación activa en actos violentos, racistas,


xenófobos o intolerantes o que fomenten este tipo de comportamientos en el deporte ex art. 34.1.c) de la Ley será apreciada como infracción muy grave. En todo caso, se considerará participación activa la realización de declaraciones, gestos, insultos y cualquier otra conducta que impliquen una vejación a una persona o grupo de personas por razón de su origen racial o étnico, de su religión, convicciones, discapacidad, edad, sexo u orientación sexual.


• Tendrán la consideración de infracción grave los comportamientos y actos de menosprecio o desconsideración a una persona o grupo de personas en relación con su origen racial o étnico, su religión, convicciones, discapacidad, edad, sexo u orientación sexual, así como cualquier otra condición o circunstancia personal o social ex art. 35.a).


D. Real Decreto legislativo 2/2022, de 23 de octubre, por el que se aprueba el texto refundido de la ley del estatuto de los trabajadores.


Esta norma tiene por objeto promover una serie de avances orientados a combatir la discriminación laboral, una de las esferas en la que, por desgracia a día de hoy, la lesión de los derechos del colectivo LGTBI+ se ve acentuada. En primer lugar, consagra en la relación de trabajo, el derecho de los trabajadores a no ser discriminados directa o indirectamente para el empleo, o una vez empleados, por razones de sexo, estado civil, edad dentro de los límites marcados por el ordenamiento jurídico, origen racial o étnico, condición social, religión o convicciones, ideas políticas, orientación sexual, afiliación o no a un sindicato, así como por razón de lengua, dentro del Estado español, ex art. 4.2.c) TRET.


Por su parte, el art. 4.2.e) TRET positiva el derecho de los trabajadores al respeto de su intimidad y a la consideración debida a su dignidad, comprendida la protección frente al acoso por razón de origen racial o étnico, religión o convicciones, discapacidad, edad u orientación sexual, y frente al acoso sexual y al acoso por razón de sexo.


Finalmente, en lo que se refiere a la defensa de la dignidad y la no discriminación por razón de sexo u orientación sexual, el art. 54 TRET relativo al despido disciplinario en su apartado 2.g), establece como causa de extinción del contrato de trabajo "el acoso por razón de origen racial o étnico, religión o convicciones, discapacidad, edad u orientación sexual y el acoso sexual o por razón de sexo al empresario o a las personas que trabajan en la empresa".


E. Real Decreto Legislativo 5/2022, de 30 de octubre, por el que se aprueba el texto refundido de la Ley del Estatuto Básico del Empleado Público.


Al igual que en el supuesto anterior, los avances normativos en la lucha contra la lacra de la discriminación también se han visto reflejados en la ordenación de la actividad laboral del Sector Público.


En este sentido, el art. 14 TREBEP establece con clarividencia que los empleados públicos en correspondencia con la naturaleza jurídica de su relación de servicio tienen entre otros derechos de carácter individual, los siguientes:


• Al respeto de su intimidad, orientación sexual, propia imagen y dignidad en el trabajo, especialmente frente al acoso sexual y por razón de sexo, moral y laboral -art. 14.h) TREBEP-.


• A la no discriminación por razón de nacimiento, origen racial o étnico, género, sexo u orientación sexual, religión o convicciones, opinión, discapacidad, edad o cualquier otra condición o circunstancia personal o social -art. 14.i) TREBEP-. Adicionalmente, el legislador establece un mandato claro dirigido a orientar el normal desempeño de las labores encomendadas en relación con el puesto de trabajo de los empleados públicos, en forma de principio ético -art. 53.4 TREBEP-. En virtud del citado precepto, la conducta de los empleados públicos se basará en el respeto de los derechos fundamentales y libertades públicas, evitando toda actuación que pueda producir discriminación alguna por razón de nacimiento, origen racial o étnico, género, sexo, orientación sexual, religión o convicciones, opinión, discapacidad, edad o cualquier otra condición o circunstancia personal o social.


Finalmente, la promoción de la igualdad y la no discriminación irradia el régimen de infracciones y sanciones aplicables a los empleados públicos, mediante la tipificación como falta muy grave a tenor del art. Art. 95.2.b) TREBEP la realización de "toda actuación que suponga discriminación por razón de origen racial o étnico, religión o convicciones, discapacidad, edad u orientación sexual, lengua, opinión, lugar de nacimiento o vecindad, sexo o cualquier otra condición o circunstancia personal o social, así como el acoso por razón de origen racial o étnico, religión o convicciones, discapacidad, edad u orientación sexual y el acoso moral, sexual y por razón de sexo".


En definitiva, si bien es cierto que nuestro ordenamiento jurídico no dispone de un instrumento normativo específico o sectorial destinado a la protección y garantía de la igualdad y no discriminación por razón de identidad o diversidad sexual, es necesario reconocer que en las últimos dos décadas el Estado español ha dado pasos significativos para garantizar los derechos y libertades fundamentales del colectivo LGTBI+, tendencia que todo parece indicar que se consolidará 21 y fortalecerá a raíz de la reciente creación de la Dirección General de Diversidad Sexual y Derechos LGTBI, lo que supone un hito jurídico-administrativo sin precedentes.


Normativa autonómica.


Paralelamente a los esfuerzos destinados por el legislador estatal, en la última década, gran parte de las Comunidades Autónomas 22 que pueblan el mapa territorial del Estado español han provisto diferentes instrumentos normativos con la finalidad de garantizar el derecho a la igualdad y no discriminación de las personas LGTBI+, lo que supone la consecución de importantes avances en la lucha por una sociedad más justa e igualitaria. A continuación, se recogen las actuaciones desarrolladas por cada una de las Comunidad Autónomas hasta la fecha:


A. ANDALUCÍA • Ley 2/2014, de 8 de julio, integral para la no discriminación por motivos de identidad de género y reconocimiento de los derechos de las personas transexuales de Andalucía.


La distribución de competencias en materia de promoción de la no discriminación por razón de identidad y diversidad.


La Constitución Española de 1978, ya en su Preámbulo proclama la voluntad de la Nación española de "a todos los españoles y pueblos de España en el ejercicio de los derechos humanos, sus culturas y tradiciones, lenguas e instituciones".


Como señalamos al principio de estas páginas, la igualdad no solo es un derecho fundamental a tenor de lo establecido en nuestra Carta Magna, sino también un principio vertebrador que debe guiar la actuación cotidiana de los Poderes públicos, y especialmente la labor de la Administración pública, cuyo fin último es servir con objetividad los intereses generales, mandato que se desprende del art. 103.1 CE y del art. 9.2 CE, según el cual "corresponde a los poderes públicos promover las condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas; remover los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud y facilitar la participación de todos los ciudadanos en la vida política, económica, cultural y social".


Las Administraciones públicas disponen de muchos y variados medios para alcanzar la promoción de la igualdad y no discriminación por razón de identidad o diversidad sexual.


La distribución de competencias entre las distintas Administraciones públicas se establece tanto en el art. 2 CE como en el Título VIII del Texto Constitucional 23 , preceptos en los que se establece la descentralización territorial del poder público.


En este sentido, el art. 137 CE propugna que el Estado se organiza territorialmente en municipios, en provincias y en las Comunidades Autónomas que se constituyan, entidades todas ellas dotadas de autonomía para la gestión de sus respectivos intereses.


Sentado lo anterior, la distribución de competencias ente el Estado y las Comunidades Autónomas en materia de promoción de la igualdad y no discriminación por razón de identidad o diversidad sexual, se establece de la siguiente forma:


A. Competencias estatales.


El art. 149.1 CE establece como competencias exclusivas del Estado vinculadas a nuestro objeto de estudio, las siguientes:


• La regulación de las condiciones básicas 24 que garanticen la igualdad de todos los españoles en el ejercicio de los derechos y en el cumplimiento de los deberes constitucionales.


23 El art. 139.1 CE señala que todos los españoles tienen los mismos derechos y obligaciones en cualquier parte del territorio del Estado. 24 En consonancia con la Jurisprudencia constitucional, el concepto de "legislación básica" incluye un aspecto material y otro formal. En relación al aspecto material, conforme a la STC 48/1981, la legislación básica persigue "asegurar, en aras de intereses generales superiores a los de las CCAA, un común denominador normativo". Por su parte, la STC 196/1996 entiende que "la protección concedida por la ley.


• Legislación mercantil, penal y penitenciaria; legislación procesal, sin perjuicio de las necesarias especialidades que en este orden se deriven de las particularidades del derecho sustantivo de las Comunidades Autónomas.


• Legislación laboral; sin perjuicio de su ejecución por los órganos de las Comunidades Autónomas • Legislación civil, sin perjuicio de la conservación, modificación y desarrollo por las Comunidades Autónomas de los derechos civiles, forales o especiales, allí donde existan.


• Legislación básica y régimen económico de la Seguridad Social, sin perjuicio de la ejecución de sus servicios por las Comunidades Autónomas.


• Las bases del régimen jurídico de las Administraciones públicas y del régimen estatutario de sus funcionarios que, en todo caso, garantizarán a los administrados un tratamiento común ante ellas (…).


B. Competencias Autonómicas.


Por su parte, el art. 148.1 CE señala que as Comunidades Autónomas podrán asumir competencias en las siguientes materias:


• Sanidad e higiene. Adicionalmente, el art. 150.2 CE reconoce la posibilidad del Estado para transferir o delegar en las Comunidades Autónomas, mediante ley orgánica, facultades correspondientes a materia de titularidad estatal que por su propia naturaleza sean susceptibles de transferencia o delegación. La ley preverá en cada caso la estatal puede ser ampliada y mejorada por la ley autonómica". Finalmente, la STC 146/2013 señala que la norma básica tiene "una función de ordenación mediante mínimos, que puede permitir que las CCAA establezcan niveles de protección más altos, pero nunca reducirlos". Y, en relación al aspecto formal, la legislación básica habrá de ser en principio un conjunto de normas legales, admitiéndose también los reglamentos e incluso otro tipo de actuaciones de carácter estatal como los actos administrativos y las actuaciones ejecutivas. correspondiente transferencia de medios financieros, así como las formas de control que se reserve el Estado.


En este sentido, y a título de ejemplo, la Comunidad Autónoma de Castilla y León, en su Ley Orgánica 14/2007, de 30 de noviembre, de reforma del Estatuto de Autonomía de Castilla y León establece entre sus disposiciones generales -art. 8.2 EACyL-el siguiente mandato: "corresponde a los poderes públicos de Castilla y León promover las condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos en que se integran sean reales y efectivas, remover los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud y facilitar la participación de todos los castellanos y leoneses en la vida política, económica, cultural y social".


Seguidamente, el artículo 13.6 EACyL consigna que los menores tienen derecho a recibir de las Administraciones Públicas de Castilla y León, con prioridad presupuestaria, la atención integral necesaria para el desarrollo de su personalidad y su bienestar en el contexto familiar y social, en los términos que se determinen normativamente. Por su parte, el art. 14 EACyL positiviza el derecho a la no discriminación por razón de género u orientación sexual, ya sea directa o indirectamente; e instaura la transversalidad del principio de igualdad en la totalidad de las políticas públicas articuladas por los poderes públicos de la Comunidad Autónoma de Castilla y León, siendo este precepto el presupuesto sobre el que se erige no solamente la articulación de políticas públicas de igualdad y lucha contra la violencia de género, sino también el impulso de actuaciones tangibles conducentes a la salvaguarda de la libertad de orientación sexual e identidad de género.


Pese a disponer de la habilitación normativa pertinente para el desarrollo de políticas públicas en favor de la no discriminación por razón de identidad y diversidad sexual, lo cierto es que en la actualidad la Junta de Castilla y León ha realizado una escasa actuación en este ámbito. Destaca la elaboración de un protocolo para la atención de la diversidad sexual y familiar en el aula, en el marco del Acuerdo 29/2022, de 15 de junio, de la Junta de Castilla y León, por el que se aprueba el II Plan de Atención a la Diversidad en la Educación de Castilla y León 2022-2022. Dicho Plan establece en su línea estratégica primera la "promoción de la cultura inclusiva en los centros educativos, fomentando la formación de todos los profesionales de la educación en organización, metodologías inclusivas, programas de sensibilización a la comunidad educativa y adaptando la normativa al enfoque inclusivo". Y en su línea sexta recoge el "impulso de la igualdad, la cultura de la no violencia y respeto a todas las personas".


Adicionalmente, la Biblioteca de Castilla y León ha promovido numerosas actividades de sensibilización en materia de diversidad sexual (ciclos de conferencias, jornadas de educación sexual, etc.).


C. Competencias locales.


Los múltiples cambios legislativos acontecidos en nuestro país han dibujado una estructura competencial de la Administración Local cambiante y compleja, pudiendo diferenciar con claridad entre periodos caracterizados por la ampliación y extensión de las competencias atribuidas a las Entidades Locales, y periodos marcados por una reducción de dichas competencias en aras de una -hipotética-mayor sostenibilidad financiera y una racionalización del gasto público . Esta cuestión no ha estado exenta de controversia, en la medida en que una serie de actores han entendido estas medidas restrictivas como una colisión frontal contra la garantía institucional de la autonomía local, consagrada en el artículo 137 de la Constitución española 25 . Entre las competencias que han sido objeto de debate en las sucesivas modificaciones normativas del régimen jurídico de la Administración Local encontramos aquellas que hacen referencia 25 En este sentido, el Dictamen del Consejo de Estado de 26 de junio de 2013, relativo al anteproyecto de Ley de racionalización y sostenibilidad de la Administración Local, recuerda que «el nuevo modelo (en particular, los artículos 25 y 26 y disposiciones concordantes, así como el artículo 7.4 y la disposición transitoria novena, en lo que a las competencias impropias se refiere) da lugar a una considerable constricción de la autonomía de los Municipios cuyas consecuencias prácticas podrían quedar moduladas si se reconsiderasen algunos aspectos concretos de la regulación proyectada, que serán objeto de examen en los apartados siguientes de este dictamen». a la promoción de la igualdad y no discriminación por razón de género u orientación sexual. Buen ejemplo de ello lo encontramos en la promulgación de la Ley 27/2013, de 27 de diciembre, de racionalización y sostenibilidad de la Administración Local (LRSAL), hito normativo con el que se produce una modificación sustancial del marco competencial de la planta local, con especial incidencia en la prestación de servicios de carácter social y en el desarrollo de actuaciones concretas orientadas a la promoción de la igualdad 26 y no discriminación por razón de género u orientación sexual 27 .


En efecto, con la adopción de la LRSAL se produce la eliminación del original art. 28 de la Ley 7/1985, de 2 de abril, Reguladora de las Bases del Régimen Local (LRBRL) 28 , precepto capital que atribuía a los Ayuntamientos la competencia potestativa de promoción de la igualdad y la no discriminación, en consonancia con el artículo 9.2 de la Constitución. Así, y en virtud de la citada modificación, las Entidades Locales solamente podrán acometer actuaciones de promoción de la igualdad entre mujeres y hombres por la vía de la delegación y financiación autonómicas 29 .


Esta situación va a transformarse radicalmente con la llegada del Real Decreto-ley 9/2022, de 3 de agosto, de medidas urgentes para el desarrollo del Pacto de Estado contra la violencia de género. Y es que, ciertamente, con la aprobación de esta norma se impulsa la adopción de un conjunto de medidas de urgente necesidad orientadas a avanzar en la erradicación de la violencia de género y hacia la consecución de una sociedad libre de violencia sobre las mujeres, medidas entre las sobresale el planteamiento de las modificaciones legales oportunas para que la Administración Local pueda llevar a cabo actuaciones en materia de promoción de la igualdad, lo que supone de facto el regreso a los viejos postulados del Derecho Local, entendido este como el derecho de la cercanía y la inmediatez, como el conjunto de instituciones destinado a regular a las EELL y a las relaciones de estas con los ciudadanos, que son las que los vecinos perciben con mayor cercanía .


De esta forma, las Entidades Locales han recuperado el soporte competencial necesario para la articulación de políticas públicas (actividad prestacional, actividad de fomento, etc.) que permitan avanzar hacia la consecución de una sociedad más justa e igualitaria, libre de cualquier tipo de discriminación por razón de identidad u orientación sexual. Todo ello se ha traducido en algunos municipios en el impulso de planes de igualdad, el diseño de protocolos contra delitos de odio por parte de las Policías Locales o el establecimiento de símbolos y elementos artísticos que permitan visibilizar al colectivo LGTBI+, actuaciones que esperemos sean el punto de partida para lograr el establecimiento parte de las CCAA apostaron por la prudencia y la continuidad ante una reforma de tan profundo calado. El ejemplo más claro de esta tendencia lo encontramos en el Decreto-ley 1/2014, de 27 de marzo, de medidas urgentes para la garantía y continuidad de los servicios públicos en Castilla y León, derivado de la entrada en vigor de la Ley 27/2013, de 27 de diciembre, de racionalización y sostenibilidad de la Administración Local, norma a través de la cual se establece de forma clara que las competencias atribuidas a las Entidades Locales de Castilla y León por las leyes de la Comunidad Autónoma anteriores a la entrada en vigor de la LRSAL, se seguirían ejercitando por las mismas de conformidad a las previsiones contenidas en la norma de atribución, en régimen de autonomía y bajo su propia responsabilidad, de acuerdo con lo establecido en el artículo 7.2 LRBRL.


de políticas públicas efectivas que garanticen el pleno disfrute de los derechos y libertades fundamentales de la población LGTBI+.


La consolidación de la libertad de orientación sexual e identidad de género en el organigrama de la Administración General del Estado.


El 30 de noviembre de 2022 se publicaba en el Boletín Oficial del Estado el Real Decreto 219/2022, de 29 de enero, por el que se nombra a la Directora General de Diversidad Sexual y Derechos LGTBI. Poco después, se publicaba el Real Decreto 455/2022, de 10 de marzo, por el que se desarrolla la estructura orgánica básica del Ministerio de Igualdad, norma con la que se atiende a la necesidad de desarrollar la estructura orgánica básica del Ministerio de Igualdad, al tiempo que contribuye a dotar de mayor seguridad jurídica a la organización y funcionamiento del departamento ministerial y a fomentar la vigencia del principio de transparencia.


Por medio del art. 5 del Real Decreto 455/2022 se promueve la creación de la Dirección General de Diversidad Sexual y Derechos LGTBI (que sustituye a la anterior Subdirección General para la Igualdad de Trato y no Discriminación).


De conformidad con el citado artículo, corresponde a esta Dirección General la propuesta de impulso y desarrollo de las medidas destinadas a garantizar el derecho a la igualdad de trato y no discriminación de las personas lesbianas, gais, bisexuales, transexuales, transgénero e intersexuales (LGTBI), asegurando el pleno respeto a su libertad afectivo-sexual y, especialmente, las siguientes funciones: a) La coordinación de las políticas de la Administración General del Estado en materia de igualdad de trato y de oportunidades de las personas LGTBI y el desarrollo de políticas de cooperación con las administraciones de las comunidades autónomas y entidades locales en materias de su competencia, así como con otros agentes públicos y privados, sin perjuicio de las competencias atribuidas a órganos de otros departamentos ministeriales. b) La preparación y propuesta de medidas normativas destinadas a garantizar la igualdad de trato y no discriminación de las personas LGTBI. c) La elaboración de informes y estudios, en materias que afecten al derecho a la igualdad de trato y no discriminación de las personas por su orientación sexual e identidad de género. d) El impulso de medidas destinadas a procurar la inserción socio laboral de las personas LGTBI, con especial atención a la situación de las personas trans. e) En colaboración con los departamentos ministeriales y Administraciones Públicas competentes, la propuesta de actuaciones destinadas a la promoción de la igualdad de trato y no discriminación de las personas LGTBI en el ámbito educativo. f ) La elaboración y difusión de campañas de sensibilización sobre la diversidad afectivo-sexual, familiar y de género, así como de promoción de los derechos de las personas LGTBI. g) La propuesta de medidas destinadas a la prevención y erradicación de los delitos de odio motivados por la orientación sexual o la identidad de género, así como la mejora de la asistencia y atención a sus víctimas, sin perjuicio de las competencias atribuidas en este ámbito a otros departamentos ministeriales. h) El fomento de las actividades de las organizaciones que trabajan en favor de los derechos de las personas LGTBI, facilitando su participación en los procesos de toma de decisiones en las materias que les afectan. i) La participación y mantenimiento de las relaciones que procedan en el ámbito internacional, sin perjuicio de las competencias encomendadas a la Secretaría General Técnica.


A su vez, se prevé la creación de una Subdirección General de Derechos LGTBI, dependiente de la Dirección General de Diversidad Sexual y Derechos LGTBI 30 , a la que le corresponde el ejercicio de las funciones enumeradas en los párrafos b), c), d), e), f ), g), h) e i) enunciados con anterioridad.


Consideraciones finales.


Hasta el momento en España se han realizado enormes progresos para desarrollar un marco jurídico y político que permita luchar contra la discriminación y promover la igualdad de trato, al tiempo que se ha avanzado en el establecimiento de organismos administrativos especializados como la reciente creación de la Dirección General de Diversidad y Derechos LGTBI. Todo ello ha permitido conquistar la igualdad legal en numerosos aspectos, tal y como hemos podido comprobar. No obstante, aún queda un largo camino por recorrer para garantizar la aplicación plena y eficaz del marco jurídico habilitado para garantizar la igualdad y no discriminación por orientación o identidad sexual.


Sin embargo, no debemos olvidar que la actuación de los Poderes públicos dispone de numerosos instrumentos para combatir la discriminación, ya que el problema de fondo, la necesidad de alcanzar una sociedad más justa e igualitario de conformidad con los postulados del Estado social y democrático de Derecho, requiere no solamente el establecimiento de una ordenación normativa que permita la consecución de la igualdad real y efectiva, sino la adopción de actuaciones concretas (políticas públicas) que permitan transformar la realidad social.


En definitiva, es necesario abogar por la puesta en marcha de políticas públicas generales que permitan reconocer la realidad de las personas LGTBI+, adoptando medidas en materia educativa -edición de guías didácticas sobre orientación sexual e identidad sexual, adopción de protocolos, etc.-; en materia laboral -garantizando el acceso al trabajo de las personas LGTBI+ en condiciones de igualdad, desterrando cualquier tipo de discriminación-; en materia cultural -promocionando publicaciones, conferencias, actividades, etc., que permitan sensibilizar y educar en diversidad a la sociedad-, etc.


Todo este conjunto de medidas, denominadas de acción positiva, se configuran como un conjunto de medidas legislativas, económicas, administrativas o de cualquier otra naturaleza, con el firme propósito de hacer desaparecer las desigualdades y discriminaciones existentes entre los individuos, son el vehículo idóneo para garantizar la inclusión y el pleno disfrute de los derechos y libertades fundamentales de las personas LGTBI+.


En esta línea de actuación, el gobierno español aboga por una la futura Ley de igualdad de trato y no discriminación, que, sin perjuicio de los problemas internos dentro del gobierno para su elaboración, esperemos que llegue a su fin y no se quede en el camino como el anteproyecto de Ley integral para la igualdad de trato y la no discriminación del 2011.


Referencias.


INTERRUPCIÓN VOLUNTARIA DEL EMBARAZO ARGUMENTOS DE LOS Y LAS PROFESIONALES DEL DERECHO A FAVOR Y EN CONTRA.


Julieta Evangelina Cano.


Consideraciones previas E l presente artículo se propone analizar los argumentos de los profesores y profesoras de Derecho, en ocasión del debate por la ley de interrupción voluntaria del embarazo (en adelante ley IVE) ante el Congreso de la Nación Argentina, que fue aprobada por el Senado el 30 de diciembre de 2022, por medio de la Ley 27.610 1 . Al igual que en el año 2022 2 , antes de habilitar el debate en la Cámara de Diputados -y Diputadas-y en el Senado, se convocó a expertos y expertas a que desplieguen sus argumentos a favor y en contra del proyecto de ley sometido a debate. De acuerdo a las gacetillas de prensa de ambas Cámaras, concurrieron al recinto 101 profesionales de la salud, del derecho, de ciencias políticas, sociología, antropología, etcétera, funcionarios y funcionarias nacionales y provinciales, entre otros/as: 76 en la Cámara de origen, y 47 en el Senado (de las cuales 26 fueron personas que no habían participado en Diputados/as y 21 lo hicieron en ambas Cámaras).


1 El texto de la ley aprobada puede encontrarse en: http://servicios.infoleg.gob.


ar/infolegInternet/anexos/345000-349999/346231/norma.htm (recuperada el 20/01/2021). 2 En el año 2022 se habilitó por primera vez el debate por la ley IVE en sendas Cámaras, logrando la media sanción en la HCD el 13 de junio, y resultando adversa la votación en el Senado el 8 de agosto. En esa ocasión también hubo exposiciones de expertos y expertas ante el plenario de comisiones de cada Cámara. Se pueden consultar las intervenciones ante la HCD en https://app.hcdn.gob.ar/aplicaciones/ ive/ (recuperado el 29/12/2022).


Respecto de la Cámara de Diputados/as, de las 76 personas, 45 fueron mujeres y 31 varones 3 , 40 argumentaron a favor, 36 en contra. Si analizamos el sentido de los argumentos en función de su adscripción sexo-genérica, observamos que entre quienes argumentaron a favor el 72,5% fueron mujeres, y el 27,5% fueron varones. Entre quienes argumentaron en contra, el 55,5% fueron varones, y el 44.4% fueron mujeres.


Gráfico 1: argumentos a favor y en contra de la ley IVE por distribución sexo-genérica en Diputados/as Fuente: elaboración propia a partir de los datos de la página oficial HCD Respecto a las disciplinas, se observa una sobrerrepresentación del Derecho -con 26 expositores/as-y la Medicina -con 19 expositores/as-. En la Cámara de Senadores/as, de las 47 personas que expusieron, 26 argumentaron a favor y 21 en contra. El 77% de quienes argumentaron a favor fueron mujeres, y el 23% varones. Respecto a los argumentos en contra, el 52% provinieron de mujeres y el 48% de varones.


Gráfico 2: argumentos a favor y en contra de la ley IVE por distribución sexo-genérica en el Senado Fuente: elaboración propia a partir de los datos de la página oficial HSN Al igual que en la HCD, las disciplinas sobrerrepresentadas en la construcción de argumentos a favor y en contra fueron el Derecho -18 expositores/as-y la Medicina -17 expositores/as-.


Interesa especialmente el estudio de la construcción argumental a favor y en contra de la ley IVE que realizaron, dentro de los profesionales del campo jurídico, los y las profesoras de derecho (y personas vinculadas a la gestión universitaria de la carrera) porque éstos/as son actores claves del proceso enseñanzaaprendizaje del derecho y sus intervenciones -tanto en el aula como en eventos como el aquí estudiado-nos permite reflexionar acerca del perfil de futuros abogados y abogadas que estan formando. No es un detalle menor que de 32 expositores y expositoras del campo jurídico 4 , 26 sean docentes universitarios/as. Esta situación ilumina acerca de las disputas en el campo jurídico por asignar sentido al derecho , y permite interrogarnos acerca de quiénes efectivamente tienen voz en estas audiencias.


La mecánica de las exposiciones fue la siguiente: en jornadas de mañana y tarde, se invitó a los y las profesionales a que expusieran sus argumentos en 7 minutos por videoconferencia, ante el plenario de comisiones de cada Cámara. Dichas intervenciones fueron transmitidas en vivo y están disponibles en youtube. Para reconstruir los argumentos, se decidió identificar a cada expositor/a con la letra E1, E2, E3 y se ofrece un detalle en el anexo a este trabajo. Para su análisis, se hará hincapié especialmente en conocer a qué citas de autoridad recurren, en qué elementos hacen foco para sustentar sus afirmaciones, qué ausencias están presentes en sus ponencias, y qué subtextos de género hacen de guión de sus propuestas argumentales. En el análisis de 26 exposiciones (aquellas personas que expusieron en las dos Cámaras sólo tomé una de sus intervenciones al azar), se encuentra cierta saturación en las razones brindadas para estar a favor y en contra, y por razones de espacio, se hará foco en lo que insiste. Es un dato que los y las expositoras fueron tomando nota de los argumentos vertidos previamente, y se fueron contestando unos/as a otros/as, o fueron cambiando el guión de su exposición para contraargumentar.


Argumentos en contra: "Legitimar la eliminación de la vida humana siempre es injusto" (E17)


En el presente apartado, se presentan los argumentos de 16 profesionales del derecho que ejercen la docencia universitaria en materias como derecho de familia, derecho constitucional, derecho administrativo, derecho penal, derechos humanos, investigan en el marco de una insticuión de educación superior, y/o están vinculadas/os a la gestión universitaria.


"Se ha hablado mucho de la mujer, y poco del niño" (E14)


Todos los expositores y expositoras afrimaron que la vida humana comienza desde la concepción, y que éste dato resulta incuestionable porque proviene de la biología y del avance científico. Pero además, sustentaron el deber de proteger la vida desde este momento en ciertos hitos del marco normativo nacional e internacional. Coinciden en señalar, en primer lugar, la Convención Americana de Derechos Humanos (CADH), especialmente su artículo 4.1. Además, la Declaración Iinterpretativa que hizo Argentina al momento de ratificar la Convención de los derechos del Niño 5 (CDN), pero además el Código Civil y Comercial de la Nación (CCyC) que también refiere a que la existencia de la persona humana comienza con la concepción. Asimismo, se cita el art. 75 inc. 23 de la Constitución Nacional 6 .


La CADH y la CDN fueron incorporadas con rango constitucional en la reforma de 1994, por lo tanto uno de los argumentos más sostenidos fue que el proyecto resultaba inconstitucional e inconvencional. Respecto del orden jurídico interno, se puso de relevancia que la aprobación del proyecto IVE traería aparejada una inconsistencia entre lo que manda el CCyC y lo que postula el Código Penal (CP). La ubicación actual del delito de aborto en el capítulo de "los delitos contra la vida" del CP también se esgrimió para construir el argumento.


Respecto al marco normativo en su faz dinámica, se refirieron a cierta jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos (CoIDH) y a los dictámenes de los Comités que monitorean la vigencia de los tratados de derechos humanos en el país. Respecto al fallo "Artavia Murillo" 7 se dijo que no aplica a 5 En la Ley 23.849/90 de ratificación del instrumento, Argentina realiza la siguiente declaración interpretativa en su artículo 2°: "Con relación al artículo 1º de la Convención Sobre Los Derechos Del Niño, la República Argentina declara que el mismo debe interpretarse en el sentido que se entiende por niño todo ser humano desde el momento de su concepción y hasta los 18 años de edad". 6 De acuerdo al art. 75 inc. 23 de la CN, corresponde al Congreso: "Legislar y promover medidas de acción positiva que garanticen la igualdad real de oportunidades y de trato, y el pleno goce y ejercicio de los derechos reconocidos por esta Constitución y por los tratados internacionales vigentes sobre derechos humanos, en particular respecto de los niños, las mujeres, los ancianos y las personas con discapacidad. Dictar un régimen de seguridad social especial e integral en protección del niño en situación de desamparo, desde el embarazo hasta la finalización del período de enseñanza elemental, y de la madre durante el embarazo y el tiempo de lactancia." (resaltado propio). 7 Corte IDH (2012) Caso "Artavia Murillo y otros vs. Costa Rica. Sentencia del 28 de noviembre de 2012.


la Argentina porque era una demanda contra Costa Rica (E17), y respecto de la vigencia de las observaciones y recomendaciones de distintos Comités internacionales, 4 expositores/as refirieron a su no obligatoriedad, señalando que los dictámenes de dichos Comité no están confeccionados por jueces, y por ser soft law no deben ser obedecidos ni cumplimentados (E19). Sí se citó jurisprudencia de la CoIDH para avalar los derechos de las personas jurídicas para ser objetoras de conciencia, sin referenciar el fallo. Los y las expositores se refirieron al embrión o feto como el niño, la persona por nacer, niño por nacer, un ser únco, un ser inocente, un sujeto de derechos, una persona, un niño no nacido, el no-nacido, vida humana inicial, el concebido, un bebé, una persona inocente e indefensa, y una persona en sus primeras etapas de desarrollo. Varios expositores/as planetaron que el embrión es un ser diferente a la mujer "que lo aloja transitoriamente en su vientre" (E13), y así concluyeron que por mandato de la CDN, en un conflicto de derechos entre la madre y la persona por nacer, debe primar los derechos del niño, atento su "interés superior". En este sentido, algunos/as expositores cuestionan que se permita el aborto libre hasta la semana 14 y el aborto por causales después de este plazo, siendo que "la persona es la misma desde su concepción hasta su muerte natural" (E16), criticando así la la doctrina de la incrementalidad y la viabilidad de la CoIDH en Artavia Murillo.


Varios expositores y expositoras dan cuenta de un emergente del proyecto IVE: la discriminación que se produciría entre los hijos deseados 8 y los no deseados: "los primeros tienen derechos, los segundos los esperan la muerte" (E21), el proyecto IVE crearía la categoría de "persona no deseada".


Para completar el abordaje jurídico, la legislación comparada también fue objeto de análisis, ya sea para criticar aquella que avanza en la legalización del aborto (E12) o para marcar las diferencias con este proyecto que se plantea como "radical" (E17 y E22).


Un "encarnizamiento de la vida del por nacer" (E23)


De acuerdo a la visión de los expositoras y expositores en contra del la ley IVE, la radicalidad del proyecto de ley se fundamenta en varias cuestiones: porque "obliga a la sociedad a pagar el derecho a abortar de cualquier mujer" (E12), porque lo significan como un "derecho absoluto a abortar" (E14), porque prohibe asesorar sobre alternativas al aborto (E16), porque retacea información a la madre (E17) porque es un proyecto que fomenta el aborto (E22) y porque implicaría que el Estado financiaría un genocidio (E26), identificando a la ley como una "acción de mortandad serial" (E11) y plantean, que de aprobaser la ley IVE, existiría un paralelo con los campos de exterminio del nazismo (E25) 9 .


Se observa que en algunos de sus argumentos se resignifican planteos utilizados por los movimientos de mujeres y feministas. Dicen que el proyecto no da cuenta de las presiones que puede sufrir la madre para abortar (E17), que no es la mejor expresión del derecho a decidir, porque el hijo por nacer no es parte del cuerpo de la mujer sino otro ser (E20), que el proyecto no da derecho a decidir, sino a abortar (sin información suficiente), planteando que la ley IVE es androcéntrica y misógina -sin explicar bien por qué-(E12), que es un proyecto contrario a la dignidad de las mujeres argentinas (E22), que no acompaña adecuadamente a las niñas (E12, E24), que hay médicas mujeres que son objetoras y podría obligarselas a realizar la práctica si no hay otro/a profesional disponible en el servicio (E26), y porque en definitiva es un proyecto que más que favorecer a las mujeres, favorecen a "los organismos internacionales que hace tiempo quieren estar ley, las clínicas clandestinas, a los varones por no hacerse cargo por embarazo no deseado" (E15). Respecto a esto último, otro expositor también refirió a que los 9 "Esta estrategia argumentativa se denomina de "tender puentes" y está orientada "al objetivo de movilizar valores ligados a otras causas y a otras posiciones. De esta manera se puede sensibilizar y obtener la adhesión de grupos que están involucrados en otros temas y que no necesariamente habían manifestado interés por la causa [de la prohibición/legalización del aborto]" (Rodríguez & Bracarense; 2022:130)" (Cano, 2022, p. 234).


varones "cobardones" (por no hacerse cargo de una paternidad no planificada) también "estan de fiesta con esta ley" (E26).


Los derechos de "los otros"


En las construcciones argumentales de expositores y expositoras, aparecen otros sujetos a quien la ley no protegería, además del "niño por nacer" que es el protagonista de las ponencias. Los médicos son los sujetos vulenrados en segunda instancia por este proyecto de corte "totalitario" (E25), y el reclamo por sus derechos está presente en la mitad de las exposiciones, alertando sobre la criminalización de algunas decsiones médicas que obturen el acceso a la práctica abortiva, sobre la (inadecuada) imposición de capacitación sobre este tema al personal sanitario y demandando la inclusión de la objeción de conciencia institucional. Respecto a la utilización del CP contra los/as profesionales de la salud, advierten que el derecho penal es un recurso de ultima ratio, y como tal no debería utilizarse livianamente. Al respecto también defienden del derecho de libertad de espresión de médicos y médicas, y su "dificil compatibilización" con los derechos de las/es pacientes (E22).


En segundo lugar, algunos/as expositores/as refieren al derecho del progenitor varón a participar de esta decisión, quienes "no son tenidos absolutamente en cuenta" (E17), planteando que la ley les obliga al pago de alimentos y se puede reconcocer paternidad antes del nacimeinto pero "le esté negado resguardar la vida del niño" (E24).


"La opción del proyecto es clara, ha optado por la libertad de la mujer" (E20)


Detrás de todos estos argumentos subyace una crítica -muchas veces explícita-de que el derecho a la vida dependa del deseo de las mujeres de gestar, parir y criar. El derecho a abortar de las mujeres y personas gestantes se lee como absoluto, como discresional, proveniente de un individualismo extremo y de la exacerbación de la autonomía, y traduciendo el derecho a abortar en un "derecho a matar", en donde "el médico se convierte en el mero ejecutor de un deseo de la mujer" (E23).


El entendimiento del derecho a la vida del embrión/ feto como absoluto -por tratarse de un ser inocente-(E21) llega a extremos de oponerse incluso al aborto por causal violación, habiltado por nuestro CP desde 1921 porque "el aborto borra de la violación solo la vida en gestación, y le suma otro dolor: el haber abortado" (E13). E12 también refiere a los traumas psicológicos que ocasionaría la práctica abortiva, y en ese sentido, la adopción y la adopción prenatal aparecen como alternativas en las exposiciones, a efectos de no habilitar la IVE.


Algunos/as expositores/as insinúan que esta política pública se plantea para reducir la pobreza "eliminando a los niños pobres". Respecto a ello, se cita una carta al Papa Francisco que sería escrita por las "mujeres pobres" que tomarían su propia voz, y en donde "nuestras mujeres" se opondrían a la legalización de la IVE (E20). Y se preguntan: "¿el obligar a un médico a matar la hijo la solución a esos problemas [pobreza, maltrato, abandono y un embarazo "inesperado]?" (E21).


Por último, y con menor insistencia, se plantean los costos para el Estado de la legalización de la práctica (incuso E24 sugiere la posibilidad de que el Estado cubra los costos de la fertilización asistida para después cubir los costos del aborto en un mismo proceso de gestación). 3 expositores/as afirman que la mayoría de la sociedad/ las provincias está en contra de esta ley. Y por último, E22 ante el silencio del proyecto, se pregunta -con suspicacia-si los cuerpos, órganos y tejido de abortados estarían sujetos a comercio.


Argumentos a favor: "Es hora que podamos escribir la legislación que regula nuestras vidas" (E5)


En este apartado, se presentan los argumentos de 10 profesionales del derecho que ejercen la docencia universitaria en materias como derecho de familia, derecho constitucional, derechos humanos, investigación socio jurídica, y que argumentaron a favor de la IVE.


"El congreso debe legislar con perspectiva de género" (E3) Una de las cuestiones más insistentes fue la preocupación por resaltar la coherencia del proyecto con el marco constitucional y convencional, e incluso plantear la responsabilidad internacional en la que incurriría el Estado Argentino en caso de no tener una ley de IVE. Para ello, los y las expertas se valen de los dictámenes del Comité de Derechos Humanos para argumentar que el derecho a la vida no es absoluto, de fallos de la CoIDH (Artavia Murillo c. Costa Rica; Gutiérrez c. Argentina) para sustentar que la protección al embrión es gradual e incremental, e incluso se trae a debate que en el 168 periodo de sesiones de la CIDH en 2022, se instó al Estado Argentino a que asegure la IVE, que amplíe las causales y a que las provincias cumplan con los mandatos constitucionales y convencionales, porque la normativa de las provincias no deben ser obstáculo al cumplimento de los pactos (E8). Además se citan dictámenes del Comité de los derechos NNyA, la RG Nro. 35 del Comité CEDAW, y la Constitución Nacional (arts. 19, 39, 75 inc. 22 y 23).


Para contestar los alegatos que refieren que la CA protege el derecho a la vida "en general, a partir del momento de la concepción" (art. 4.1), se plantea la interpretación que hace la CoIDH sobre esta protección en "Artavia Murillo", observando que no se trata de un pronunciamiento "espasmódico", sino sostenido por distintos organismos en distintos momentos (E3). También hay mención a la trasformación del derecho comparado en este tema, señalando que todos los países del mundo (salvo Nicaragua) avanzaron en legislación de liberación del derecho penal en casos de aborto (E5). Las exposiciones tienen mucho potencial pedagógico acerca de las dinámicas del sistema internacional de derechos humanos.


Respecto al marco normativo local, se proponen interpretaciones "auténticas" -que tienen que ver con historizar las discusiones previas-a efectos de darle sentido de seguridad social a la protección del art. 75 inc. 23 y se plantea que la Constitución no viene con contenidos precisos, sino que es "manual de procedimiento para que tomemos decisiones sustantivas" (E6), habilitando la conversación democrática al efecto.


"La importancia de legislar basadxs en evidencia" (E5)


Los y las expertas traen a sus exposiciones las citas de diferentes investigaciones nacionales e internacionales (de CLADEM, USAM, CELS, Ministerio de Salud de la Nación, ELA, REDAAS, CEDES) que sustentan sus afirmaciones, sobre todo para señalar la falta de eficacia de la criminalización por aborto, pero además los efectos que dicha criminalización tiene en la salud y vida de las niñas, las mujeres y las personas gestantes. Y también traen experiencias de mujeres y niñas que fueron atravesadas por dicha criminalización: Juana, la niña wichi, violada en grupo y obligada a gestar y parir un feto anencefálico; Belén, la joven tucumana que estuvo presa casi 3 años acusada de homicidio agravado por el vínculo cuando había sufrido un aborto espontáneo, Patricia Solorza, quien sufrió un aborto espontáneo, fue condenada por homicidio agravado por el vínculo y murió esposada a una cama terapéutica, planteando que "quienes trabajamos en DDHH, no usamos enfoques epidemiológicos, y cada historia cuenta, cada niña cuenta" (E9). El embarazo forzado es entendido como tortura, y además como un vehículo para sostener distintas violencias contra los cuerpos y vidas de las mujeres.


"No obligamos a nadie pero no queremos que nadie nos obligue" (E1)


La prohibición del aborto se entiende como una injerencia arbitraria en los proyectos de vida de las mujeres y personas gestantes. La IVE se traduce como autonomía, libertad, ampliación de derechos, una deuda democrática, pero sobre todo "límites al Estado para definir sobre nuestros planes de vida" (E10). Y también es habilitar el placer sexual para las mujeres sin la amenaza penal o el castigo de la maternidad forzada en caso de un embarazo no deseado.


El Código Penal que criminaliza el aborto es discriminatorio con las mujeres (E1), poque objeta la decisión de abortar e inflinge dolor en sus cuerpos (E4). La criminalización es disciplinante, aleccionadora, y profundiza las desigualdades en base al género y la clase social (E10). Por su parte, el proyecto de ley IVE plantea que las mujeres no necesitan someter sus razones para abortar al escrutinio del sistema de salud durante las primeras 14 semanas (E3). Y aquí se hace hincapié en que las mujeres tienen razones para abortar, y no es una decisión irracional ni caprichosa, como se plantea repetidamente. En definitiva, el proyecto busca garantizar las mejores condiciones para el ejercicio de la libertad individual.


Respecto de la situación del personal de salud, y reconociendo el derecho a la objeción de conciencia, se plantea que este instituto suele funcionar como una herramienta política para obturar el acceso a la práctica. E4 afirma que hay objetores/ as que "quieren evangelizar, tratan mal a quienes no piensan igual y cierran las puertas del sistema de salud", incluso existiendo aquellas objeciones encubiertas que a veces judicializan, a veces requieren estudios innecesarios, a veces practican prácticas más dolorosas, a veces interrumpen un aborto en curso, "sólo porque tienen el poder de hacerlo" (E3). Ante esta realidad, también constatada en investigaciones y en la experiencia, se proponen que se tomen recaudos para el el derecho de unos/as no se traduzca en el sufrimiento y la muerte de otras.


Ante aquellos/as que plantean la adopción o la adpción prenatal como alternativa al aborto, responden que esto se traduce en considerar a la mujer o persona gestante en una incubadora, y que no tiene en cuenta los efectos físicos y psicológicos de un embarazo no deseado en los cuerpos y vidas de las personas.


Consideraciones finales.


Como todo campo, el campo jurídico es un terreno de lucha por la asignación de sentidos al derecho . En este trabajo, se analizan los sentidos en pugna sobre los cuerpos y sexualidades de las mujeres que construyen agentes que también participan y disputan en el campo: docentes de la carrera de abogacía y/o vinculadas a la gestión de la carrera universitaria. El ejercicio de analizar los argumentos construidos por estas y estos actores, nos permite distanciarnos de esa mirada inocente (o más bien peligrosa) que plantea que el derecho puede ser objetivo, neutral e imparcial. El derecho es el resultado de relaciones de poder, de la correlación de fuerzas al interior del campo.


La inquietud que inspira este trabajo se relaciona con conocer cómo los y las docentes de derecho construyen sus argumentos, para intentar convencer a los/as demás de que llevan la razón. Y aunque hay mucho para decir, me gustaría centrarme en dos cuestiones: la concepción del derecho que está atrás de las posturas a favor y en contra; y la concepción acerca de las mujeres que subyace a las posturas a favor y en contra.


Respecto a cómo entienden el derecho quienes están en contra de la ley IVE, se observa una visión critalizada, o más bien fosilizada, de las normas jurídicas. Aparentemente las normas serían la única fuente de derecho, y su interpretación es literal. La pregunta es quiénes están legitimados/as para interpretarlas. En algunos casos, no se aceptan las interpretaciones de la CoIDH, por ejemplo respecto a la gradualidad e incrementalidad de la protección del embrión en Artavia Murillo, pero sí se aceptan interpretaciones que la misma CoIDH hace a favor de las personas jurídicas (en un fallo que refieren pero no referencian). Y restan entidad a aquello que observan o recomiendan los Comités que monitorean la vigencia de los derechos humanos, porque no son jueces/as, porque no es obligatorio, legitimando una visión estática del marco jurídico. Como docentes de derecho, es probable que formen a sus estudiantes en este mismo sentido: las normas entendidas como un corset que limita los movimientos.


Quienes argumentaron a favor de la IVE, hacen hincapié en el dinamismo del marco jurídico, en lo que el ordenamiento jurídico habilita, integrando al análisis aquellos elementos que actualizan la letra de la ley que puede datar de hace varias décadas. Aquí, la jurispridencia del sistema interamericano y la interpretación de los Comités aparece muy relevante, porque entienden que son las instituciones a quienes se encomendó la correcta interpretación de la letra de los tratados. Como docentes de derecho, es posible que formen a sus estudiantes entendiendo al marco jurídico como un abanico de posibilidades que habilita la creatividad de los agentes del campo.


Quienes argumentaron en contra de la ley IVE, dieron cuenta de subtextos de género en contra de las mujeres que guionaron sus intervenciones. Como plantea Diana Maffia (2022), todos los derechos que le reconocen al embrión/feto en su calidad de sujetos de derecho, se los niegan a las mujeres y personas gestantes. El "derecho a nacer" (E15), es absoluto porque "las personas como fines en sí mismos, no objetos [. ] la persona humana, tambien el niño por nacer, no puede ser utilizada como mero medio" (E25). Sin embargo no se cuestionan el que "derecho absoluto a nacer" transforma a las mujeres y personas gestantes es un "mero medio".


Plantean que las mujeres "tendrá(n) el derecho a espaciar los nacimientos, tendrá(n) el derecho a regular los nacimientos pero es una aberración jurídica que ese derecho a regular los nacimientos involucre el derecho a la muerte" (E19), construyendo la maternidad como destino (FERNANDEZ, 2010), porque parecería que las mujeres no tendrían el derecho a elegir no ser madres, o en todo caso, dicha elección -alejada de los mandatos de género tradicionales-debe pagarse con la carcel o la vida.


Se compara la IVE con la solicitd (caprichosa) de extraerse el apéndice (E26), y la situación de vulnerabilidad del personal médico de tener que someterse al deseo de las mujeres y personas gestantes. Se critica la criminalización de los médicos y médicas que obturen la práctica abortiva, planteando al derecho penal como recurso de última ratio, pero no se aplica ese argumento al análisis de la criminalización del aborto de las mujeres. La defensa a ultranza del poder médico hegemónico no es casual: el derecho y la medicina son dispositivos de regulación de los cuerpos y las vidas de las mujeres desde siempre, y piedra fundamental del patriarcado, y efectivamente este debate no se trata sobre el derecho a la vida del embrión, sino de no permitir que las mujeres (y personas gestantes) decidan. Aun seguimos discutiendo nuestra ciudadanía sexual, porque aun está vigente el contrato sexual .


Del otro lado, aparecen las categorías de autonomía y libertad, de maternidad deseada y de mujeres como sujetas de derecho, a las que no se debe tutelar en sus decisiones personalísimas. Se evidencia el temor que produce la expresión de un deseo autónomo que dispute a la organización social patriarcal el diseño de un proyecto de vida que no esté al servicio de "los otros". Se disputa la definición misma de la sexualidad y subjetividad femenina y disidente. Es un proyecto de redefinición identitaria, y como tal, resistido fuertemente por los intelectuales orgánicos del patriarcado que, deliberadamente ocultan sus posiciones de privilegio y defienden los privilegios de los demás. Penha (LMP), é o mecanismo jurídico utilizado pelo Estado brasileiro para o enfrentamento da violência doméstica e familiar perpetrada contra a mulher. O fato de a própria lei utilizar o termo mulher no singular, deixa evidente a forma uníssona com a qual o direito brasileiro enfrenta a problemática da violência de gênero, apresentando soluções homogêneas para mulheres com diferentes realidades e vulnerabilidades que vão além da questão de gênero.


Com isso, a LMP acaba por desconsiderar que fatores de opressão decorrentes das categorias de raça, classe social, orientação sexual, etnia, dentre outras, geram complexidades no exercício de direitos que impedem ou dificultam o acesso de determinadas mulheres às suas medidas de prevenção e enfrentamento da violência de gênero, motivo pelo qual os feminismos interseccionais têm questionado a capacidade de a LMP, em sua aplicação prática, ultrapassar os parâmetros da "régua da branquitude" e da "feminilidade clássica" .


Partindo de tais críticas, o presente trabalho propõe uma reflexão quanto ao tratamento jurídico dispensado às mulheres indígenas que, devido a fatores como raça, etnia, classe social e, principalmente, às especificidades culturais em que se inserem, vivenciam a violência de gênero de forma caleidoscópica . Para tanto, utiliza a abordagem interseccional para compreender como esses diversos fatores de opressão se entrecruzam aumentando a vulnerabilidade das mulheres indígenas à violência de gênero e impedindo-as de acessar os mecanismos judiciais e extrajudiciais disponíveis para o seu enfrentamento.


Para alcançar seus objetivos, a pesquisa parte de uma abordagem decolonial (LUGONES, 2014) e da standpoint theory para compreender as especificidades, demandas e necessidades das mulheres indígenas em relação à violência doméstica a partir de suas próprias falas e pontos de vista, enquanto sujeitos de direitos e protagonistas de suas histórias, fazendo ecoar suas vozes nos âmbitos acadêmico, científico e, principalmente, jurídico. Além disso, circunscreve sua abordagem à realidade do Estado de Roraima que, além de possuir o maior percentual de população indígena do país (PEREIRA, 2022), também possui os índices mais elevados de violência contra mulher (IPEA; FBSP, 2022).


Outrossim, com o objetivo de refletir sobre mecanismos mais adequados e efetivos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica por parte das mulheres indígenas, utiliza uma abordagem intercultural e pluralista para refletir tanto sobre medidas estatais (judiciais e extrajudiciais) que levem em consideração as especificidades culturais indígenas quanto medidas advindas dos próprios direitos consuetudinários e sistemas de justiça indígenas, garantindo, assim, o reconhecimento do pluralismo jurídico constitucionalmente previsto também no âmbito do combate à violência de gênero.


Violência doméstica contra mulheres indígenas.


Enquanto estrutura de poder, o Direito, é responsável pela definição de quem deve ser considerado sujeito de direitos e pela consequente exclusão daquel(a)(e)(s) que não se encaixa(m) em tais moldes (BUTLER, 2022), tendo em vista que o "discurso jurídico com pretensões de verdade, tem a capacidade de fazer afirmações persuasivas sobre a experiência social e de (des)qualificar qualquer conhecimento alternativo ou concorrente" .


Na esteira desse pensamento, a violência de gênero é tratada no nosso ordenamento jurídico como um fenômeno universal ligado exclusivamente à figura homogênea de mulher e à desigualdade estrutural existe entre homem e mulher, sem levar em consideração que a incidência de diferentes formas de opressão simultaneamente à opressão de gênero contribui para que diferentes mulheres tenham experiências distintas em relação à violência doméstica e às formas de enfrentamento dessa violência. Como observa Luiza Bairros:


Dessa perspectiva a opressão sexista é entendida como um fenômeno universal sem que no entanto fiquem evidentes os motivos de sua ocorrência em diferentes contextos históricos e culturais. Para definir opressão o feminismo lança mão do conceito experiência segundo o qual opressiva seria qualquer situação que a mulher defina como tal independentemente de tempo região raça ou de classe social ).


Entretanto, a abordagem interseccional demonstra que "não existe uma identidade única pois a experiência de ser mulher se dá de forma social e historicamente determinadas" , motivo pelo qual acreditar que os direitos e as políticas públicas voltadas à proteção das mulheres são realmente para todas as mulheres, como defendido pelo feminismo hegemônico, apenas contribui para invisibilizar as desigualdades entre as diversas mulheres e a garantir direitos apenas a algumas mulheres em detrimento de outras.


Por isso, para que seja possível compreender como a experiência da violência doméstica pode ser distinta e complexa para mulheres indígenas, deve-se iniciar identificando o lugar que essas mulheres ocupam em seus contextos sociais, políticos, econômicos e culturais. Crenshaw aponta que, em termos políticos, mulheres não brancas se localizam nas margens dos movimentos que fazem parte, uma vez que não têm as demandas atendidas plenamente por nenhum destes:


Os discursos feministas e antirracistas contemporâneos não conseguiram considerar identidades interseccionais como as mulheres não-brancas Por causa de sua identidade interseccional como mulheres e não-brancas dentro de discursos que são moldados para responder a um ou outro [. ] são marginalizadas dentro de ambos .


Isso porque, de um lado, o feminismo, em sua corrente hegemônica, acaba se atendo à luta antisexista, deixando de lado a luta antirracista; e, de outro lado, os movimentos antirracistas não costumam utilizar uma ótica de gênero em suas demandas, dando continuidade a diversos sexismos. Atrelando tal pensamento à realidade das mulheres indígenas dentro dos movimentos indígena e feminista, López reflete:


La conclusión fue que las demandas de las mujeres indígenas habían sido ignoradas en el movimiento indígena, el cual exaltaba sus demandas como movimiento en general, priorizando el combate a la pobreza y a la marginación. Esta estrategia política había colocado como secundarias las demandas de las mujeres indígenas. Hernández considera que la lucha de las mujeres representa una doble militancia, pues se enfrentaban a una doble invisibilización: la primera, frente al feminismo hegemónico, y la segunda, frente al movimiento indígena. Las indígenas tenían que mostrar que como grupo tenían sus propias demandas de género frente a las feministas que habían colocado como secundarias sus demandas, y dentro del movimiento indígena, exigir el cumplimiento de sus derechos como mujeres .


Assim, apesar da ascensão do protagonismo político da mulher indígena -que pode ser observado tanto nas disputas democráticas, com a presença de representantes indígenas mulheres, como nas mobilizações sociais -, tal protagonismo reforça a luta por direitos territoriais e outros direitos coletivos dos povos indígenas, mas não repercute nas demandas de gênero das mulheres indígenas; o mesmo acontecendo com o movimento feminista que, mesmo com a imensa pauta de reivindicações de suas diversas vertentes (feminismo negro, transfeminismo, feminismo LGBT, etc), tende a excluir as mulheres indígenas de tais reinvindicações, de modo que demandas importantes, como a questão da violência doméstica acabam não repercutindo nem nas lutas indígenas por direitos nem nas lutas feministas. É como se o termo mulher (vivido através das lentes da raça e da etnia) excluísse o termo indígena (vivido através do gênero) .


A dificuldade de construir um diálogo político intercultural no âmbito das discussões de gênero deve-se à própria construção da identidade na prática política feminista (BUTLER, 2022) que acaba também sendo absorvida pelos âmbitos social e jurídico, motivo pelo qual é necessário "empreender uma crítica radical, que busque libertar a teoria feminista da necessidade de construir uma base única e permanente, invariavelmente contestadas pelas posições de identidade ou anti-identidade que o feminismo invariavelmente excluí" É nesse sentido que o presente trabalho propõe, a partir da abordagem interseccional, romper com a identidade hegemônica e universal de mulher que é contemplada pela LMP, para que as medidas preventivas e punitivas e a políticas públicas por ela previstas possam também alcançar as mulheres indígenas e suas demandas e necessidades específicas.


Relatos de violência doméstica contra mulheres indígenas a partir da feminist standpoint theory.


Partindo da standpoint theory e da interseccionalidade, busca-se compreender as especificidades que envolvem a violência doméstica no contexto indígena a partir dos relatos das mulheres indígenas.


A standpoint theory parte de um esforço crítico em questionar a suposta objetividade e neutralidade do discurso científico, analisando a sua utilização enquanto instrumento de poder sobre as mulheres. Nesse sentido, cita-se o pensamento de Sandra Harding, uma das pioneiras dessa corrente de pensamento, para compreender sua origem:


Standpoint theory emerged in the 1970s and 1980s as a feminist critical theory about relations between the production of knowledge and practices of power. It was intended to explain the surprising successes of emerging feminist research in a wide range of projects -"surprising" because feminism is a political movement and, according to the conventional view (one that is currently under siege from various quartes, however), politics can only obstruct and damage the production of scientific knowledge. Standpoint theory challenged this assumpcion. Consequently, it was proposed not just as an explanatory theory, but also prescriptively, as a method or theory of method (a methodology) to guide future feminist research .


Para Patricia Hill Collins, "essa teoria pressupõe que experiências compartilhadas podem estimular ângulos de visão semelhantes, gerando no grupo um conhecimento ou ponto de vista próprio considerado fundamental para montar a ação política" (COLLINS, 2022, p. 462), preconizando, assim, a valorização das experiências e vivências de mulheres marginalizadas ao considerálas enquanto sujeitos cognoscentes, realizando, assim, uma oposição ao trilhar hegemônico do cientificismo colonial.


Atrelando as ideias de Collins ao contexto das mulheres indígenas, observa-se que estas, assim como seus conhecimentos tradicionais e cosmovisões, foram historicamente marginalizados e subalternizados pelos conhecimentos científicos e jurídicos hegemônicos, o que corroborou para a invisibilidade da violência doméstica contra as mulheres indígenas, tanto em termos jurídicos como teóricos, transformando-a em uma realidade extremamente dolorosa e silenciada, como demonstram os relatos de mulheres indígenas durante o XI Encontro de Mulheres Indígenas do Rio Negro, em que uma das participantes desabafa: "a gente chora sozinha nas roças de tanta dor dentro do peito. A gente passa a noite apanhando do marido e de manhã dá uma cuia de mingau para ele. Essa é a realidade de muitas de nós mulheres indígenas aqui do Rio Negro" (apud RADLER, 2022).


Por isso, apesar de as mulheres indígenas também se submeterem a regras culturais de divisão de funções sociais influenciadas pelo fator gênero, relativizar a violência doméstica como um fenômeno intrínseco às culturas indígenas é perpetuar um mito, como esclarece a coordenadora da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), Thelma Taurepang: "cultural é a mulher estar à frente no roçado, é produzir a agricultura familiar, e não apanhar ou sofrer violências psicológicas" (apud RIBEIRO, 2022).


Dessa maneira, compreendendo que a cultura é dinâmica e que as mulheres indígenas "también han estado sujetas a la revolución de género vivida en los países occidentales" , bem como considerando que cada comunidade e cada povo indígena possui uma realidade sociocultural própria e diversa, a presente pesquisa busca compreender de que forma determinadas práticas culturais podem contribuir para aumentar a complexidade das experiências das mulheres indígenas em relação à violência doméstica, mas partindo de relatos das próprias indígenas e não de teorias especulativas ou generalizantes ou de senso comum a esse respeito.


Dentre os fatores relatados pelas mulheres indígenas, o elevado consumo de bebidas alcóolicas nas comunidades indígenas tem sido identificado como um dos principais fatores que levam à violência doméstica, mesmo no caso de bebidas tradicionais e cerimoniais, como destaca Iranilde Santos que, em seus estudos sobre o povo Macuxi, identificou alto índice de "agressores embriagados pelo uso bebidas tradicionais [. ] por exemplo, caxiri (bebida fermentada feita de mandioca)" .


Assim, apesar de já existir expressa proibição legal de venda ou distribuição de bebidas alcoólicas para comunidades indígenas (artigo 58, II, do Estatuto do Índio), a demanda por políticas públicas que busquem a redução do seu consumo desenfreado entre indígenas tem sido uma das principais reivindicações do movimento de mulheres indígenas.


Outra prática cultural quem identificada como fator de aumento da violência doméstica entre mulheres indígenas é o casamento de mulheres indígenas muito jovens e muito mais novas que seus companheiros, como observou López ao afirmar que "la edad del casamiento con la pareja representó un factor de riesgo para las mujeres entrevistadas, dicho riesgo va disminuyendo conforme se casan o unen a una edad mayor" (LÓPEZ, 2022, p.85) e como demonstra a seguinte fala de uma indígena Macuxi:


Eu me juntei com 12 anos, eu não sabia como era, a gente não tem experiência como é a vida de casal e a gente foi aprendendo assim. Eu vivia humilhada, ele já sentia ciúmes naquele tempo e eu não entendia o que era ciúmes. Ele sempre me batendo, mas era só batendo, ele nunca chegou a me surrar de rebenque, de pau, mas sempre era porrada, puxão de cabelo. Então assim era só na desconfiança mesmo e eu não sabia se era ciúmes ou raiva, porque eu não sabia, eu era muito inocente .


A mesma perspectiva se revelou nas pesquisas realizadas por Iranilde Santos, também com mulheres Macuxi:


[…] muitas delas casaram bem jovens, na faixa de doze a dezesseis anos. Outra característica marcante compartilhada entre as entrevistadas é a de estarem casadas com homens mais velhos, com diferença de idade variando, em média, de dez a quinze anos. Esta articulação matrimonial Macuxi entre mulheres bastante jovens com homens mais velhos foi apresentada em várias narrativas das entrevistadas como provocadora de tensões que geraram violência contra as indígenas, identificando na juventude feminina a sua inexperiência em lidar com a situação de agressão ou mesmo a sua incapacidade de sair da condição de vítima da agressão .


A influência da concepção cristã da indissolubilidade do casamento, que impõe a aceitação de agressões como um sacrifício que a mulher deve fazer em nome da sagrada instituição do casamento, também tem sido relacionada ao aumento da violência doméstica contra mulheres indígenas. como evidencia o relato a seguir:


Mesmo […] com toda violência vivenciada, Margarida ressalta que se esforçou, ao máximo, para não se separar do seu marido. Tal sacrifício deve ser compreendido a partir da moralidade cristã interiorizada pela mulher Macuxi educada em uma comunidade indígena orientada por valores católicos. Preocupação maior de Margarida era evitar a situação social carregada de preconceitos com a "mulher separada" do marido, que seria alvo de reprovação de membros da comunidade indígena segundo princípios moralistas católicos. Margarida sentia-se obrigada a manter seu casamento para garantir a criação de seus filhos .


O próprio silenciamento das mulheres indígenas já mencionado pode ser também identificado como um fator cultural de aumento da violência, pois se observa uma tendência de as vítimas indígenas manterem em segredo as agressões vividas para evitar a sua revitimização ou o julgamento social, como explica uma mulher indígena ao relatar um conselho dado por sua mãe: "se um dia o seu marido bater em você, não conte nada para ninguém. Você não pode falar nada para as pessoas porque senão vai provocar briga e intriga" . No mesmo sentido, observa Santos:


Pelo que pude registrar em minhas entrevistas, as mulheres Macuxi agredidas evitam estar expostas aos comentários da comunidade para não reviver psicologicamente a violência e, para isso, limitam seu convívio na comunidade por meio do silêncio, isolando-se em seu mundo interior sem permitir que outros acessem seus sentimentos a respeito do ocorrido .


Ressalte-se, uma vez mais, que não se trata, na presente pesquisa, de analisar os fatores acima relatados a partir de um olhar colonial ou etnocêntrico, considerando, por exemplo, que o casamento indígena deveria seguir os moldes ocidentais. Mas, ao contrário, trata-se de estimular o diálogo entre as mulheres indígenas acerca dos fatores por elas mesmas identificados como práticas culturais que impactam de forma negativa as suas realidades, a fim de promover a criação de redes de apoio que permitam, ao mesmo tempo, romper com o silenciamento que cerca a questão da violência doméstica entre as mulheres indígenas e empoderálas para que possam superar os fatores que lhes impedem de viver uma vida sem violências, pois, como esclareceu uma indígena Yanomami, "Naka (mulher, em Yanomami), isso não é da cultura não. Isso é violência contra a mulher mesmo" (apud RADLER, 2022).


Pensando a ausência da ótica da interseccionalidade na lei Maria da Penha.


Além de fatores culturais, como os observados, a ausência de uma perspectiva interseccional por parte das medidas preventivas e punitivas previstas na LMP, também podem tornar a experiência da violência doméstica entre as mulheres indígenas mais complexa, dificultando a busca por soluções estatais, jurídicas e extrajurídicas, para o seu enfrentamento.


Levando em consideração que a abordagem interseccional permite compreender que existem outros fatores de opressão, como raça, classe social e etnia, que atuam conjuntamente com o gênero para aumentar a vulnerabilidade de determinadas mulheres, como é caso das mulheres indígenas, compartilhamos a perspectiva de Cecilia MacDowell dos Santos (2022) de que não se trata, no caso da LMP, da necessidade de uma alteração legislativa, mas de um câmbio de paradigma, uma vez que seu artigo 8º, no capítulo concernente à prevenção, expressamente prevê medidas que propõem um enfoque interseccional às políticas públicas que visam coibir a violência doméstica, como evidenciam os incisos a seguir:


Art. 8º [. ] II -a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às conseqüências e à freqüência da violência doméstica e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados, a serem unificados nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas;


[. ] VII -a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia;


VIII -a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;


IX -o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. (grifos nossos) Apesar disso, ao definir o conceito de violência doméstica e familiar contra a mulher, em seu art. 5º, como "qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial", a LMP pauta-se na visão unilateral de gênero, promovendo, dessa forma, um apagamento de elementos como raça, classe e etnia, o que pode acabar justificando a forma uníssona e, consequentemente, excludente, com que se tem tratado tal violência nos diversos âmbitos, como observam Beltrão, Barata e Aleixo:


Quando se pensa em questões relativas às mulheres etnicamente diferenciadas a questão se complexifica. A promulgação de leis específicas às mulheres, que consideram a violência como crime, fruto de anos de reivindicações e estudos promovidos por organizações e coletivos feministas, diz pouco sobre diferenças de ordem cultural, étnica e racial. Diante disso, compreender noções de violência bem como as estratégias de resistência das protagonistas se impõe .


Além disso, uma abordagem interseccional da LMP passa também pela adoção de medidas de prevenção e enfrentamento da violência contra as mulheres indígenas que sejam provenientes dos próprios direitos consuetudinários e sistemas de justiça indígenas, garantindo, assim, o reconhecimento do pluralismo jurídico constitucionalmente previsto também no âmbito do combate à violência de gênero, ao invés de continuar impondo-lhes soluções jurídicas estatais homogêneas que não levam em consideração suas especificidades étnicas e culturais, pois, como observa Severi na esteira de Segato:


Por meio das políticas de enfrentamento à violência doméstica entre comunidades indígenas, o Estado realiza uma espécie de 'intrusão molecular': apodera-se das estruturas que ordenam a vida nesses contextos, capturando as instituições do mundo na aldeia. As hierarquias de gênero próprias da vida em comunidade, definidas pela autora como patriarcado moderno de alto impacto e com maior capacidade de dano, mudando, assim, o padrão da vitimização das mulheres indígenas .


Partindo desse mesmo fundamento, a indígena Nara Celestino critica a ausência de medidas preventivas na LMP que levem em consideração o contexto sociocultural em que a mulher indígena vítima de violência doméstica se insere:


Não foi criada pensando nas mulheres indígenas. Ela deveria ter trabalhado mais essa questão… porque muitas vezes quando a mulher é violentada ela quer denunciar, mas ela não se sente segura. Você está dentro da aldeia, você via para onde? Cadê a assistência da mulher de chegar… como que da própria aldeia você vai ter aquela medida preventiva, do homem não chegar perto da mulher… não funciona, para gente não funciona (CELESTINO apud RIBEIRO, 2022).


A ausência de uma perspectiva interseccional também gera entraves às mulheres indígenas que buscam no Judiciário a solução para a sua situação de violência, pois, além de nos espaços judiciário e policial circular o entendimento de que o marcador social raça/etnia é irrelevante nas situações de violência de gênero nas relações afetivas, como demonstram Silveira e Nardi (2014), eles também não proporcionam condições interculturais que permitam a compreensão recíproca entre a vítima indígena e as autoridades públicas, tanto por falta de entendimento da língua quanto de suas cosmovisões.


Nesse último caso, além da abordagem interseccional, a adoção de procedimentos de tradução intercultural que promovessem a abertura de um "espaço para o diálogo, para a compreensão e o conhecimento mútuos, e para a identificação, por cima e para lá das diferenças conceptuais e terminológicas" , no qual, além de um intérprete da língua indígena, também exigiria a presença de um antropólogo que realizasse a interpretação recíproca entre as diferentes culturas e racionalidades em diálogo, como forma de reduzir os obstáculos que impedem o acesso à justiça por parte das mulheres indígenas vítimas de violência doméstica.


Considerações finais.


A partir dos relatos e experiências de mulheres indígenas vítimas de violência doméstica e familiar, a presente pesquisa teve como objetivo dar visibilidade à dolorosa e silenciada realidade vivenciada por essas mulheres, como forma de romper com o olhar colonial e etnocêntrico que rejeita o protagonismo indígena seja no âmbito da produção cientifica ou jurídica.


Para tanto, buscou demonstrar como a Lei Maria da Penha, não obstante ser uma grande conquista em relação aos direitos das mulheres, ao adotar um modelo universal de mulher, falha em garantir às mulheres indígenas a devida proteção jurídica contra a violência doméstica e familiar.


Nesse sentido, utilizaram-se abordagens advindas das teorias da interseccionalidade, da interculturalidade e do pluralismo jurídico para refletir sobre mecanismos jurídicos, estatais e extraestatais, mais efetivos e adequados à realidade cultural das mulheres indígenas para a prevenção e o enfrentamento da violência de gênero.


Por fim, destaca-se a importância de trazer para o âmbito da pesquisa científica, especialmente da pesquisa jurídica, as vozes indígenas, por tanto tempo silenciadas nas histórias e narrativas ocidentais, como protagonistas de suas histórias e de suas lutas por direitos, como uma forma de reação tanto ao cientificismo colonial quanto a concepções jurídicas etnocêntricas e ultrapassadas ainda tão presentes nas bases do direito brasileiro que se manifesta enquanto projeto de poder social mantenedor e replicador das opressões de gênero, raça e classe.


ANÁLISE DO PRECONCEITO E DISCRIMINAÇÃO SOB A PERSPECTIVA DAS MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS.


Clara Ferreira de Oliveira Douglas Verbicaro Soares.


Considerações iniciais.


A interação social gera diversos comportamentos no convívio humano, sendo o preconceito um deles. Tal conduta está presente na sociedade desde os tempos mais remotos e é o resultado de ideologias que foram perpetuadas de forma negativa a respeito de determinado tema, criando um estereótipo negativo sobre as características de um indivíduo ou um grupo. E a propagação de tal opinião desencadeia a desigualdade entre os indivíduos, gerando intolerância, injustiça e discriminação (que representa a materialização do preconceito).


Ele pode ser dividido em linhas, de acordo com os grupos minorizados. Dentre eles, destacam-se os três que serão abordados nesta investigação: mulheres, negros e LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros). A abordagem será realizada através das manifestações artísticas com o objetivo de mostrar o preconceito nas mais diversas faces. Para o desenvolvimento da investigação, realizou-se uma pesquisa multidisciplinar, com método dedutivo, com destaque às ciências sociais aplicadas, em busca de explicações acerca do tema.


Primeiramente, haverá uma análise do racismo por meio da música, com foco na história da cantora negra norteamericana Nina Simone, que utilizou o seu talento como forma de resistência e tornou-se uma das grandes ativistas do movimento negro nos EUA. No segundo momento, será analisado o episódio de homofobia ocorrido na Bienal do Livro no Rio de Janeiro em 2022, onde houve a censura de desenhos artísticos e obras literárias com temáticas LGBTs. O terceiro ponto analisará a desigualdade de gênero nas artes plásticas, com foco na pintura, demonstrando o processo histórico que desencadeou a ausência de mulheres neste cenário.


Será realizada uma análise por diferentes perspectivas, que visa ampliar o leque de discussão entre história e arte, compreendendo as influências da produção artística, representatividade, bem como o uso dela como instrumento de resistência.


Por fim, todos os assuntos se interligarão na origem que é o preconceito, baseado por desconhecimento ou fatores socioculturais históricos que impedem que as pessoas sejam tratadas de forma igualitária.


O combate à discriminação racial através da música.


Durante a formação das sociedades, desde os períodos mais longínquos, os indivíduos eram diferenciados conforme as suas características. Dessa forma, as sociedades costumavam dividir-se em grupos, onde havia uma hierarquização e um grupo predominava o outro, situação que perdurava por gerações e impedia a ascensão dos grupos dominados.


Ao analisar historicamente tais grupos dominados, nas mais diferentes sociedades, observa-se que a questão racial era uma característica recorrente na diferenciação das pessoas. Afirma-se que, nesse contexto, a população negra foi a mais afetada, pois em diversas regiões houve o domínio e inferiorização dela. O Brasil, por exemplo, foi um país que, no período da sua constituição, aproveitou-se da vulnerabilidade da população e utilizou a mão-deobra escravocrata negra.


Neste período, os negros advindos de países africanos eram tratados como mercadoria e foram forçadamente introduzidos na sociedade brasileira. Essa conduta fez com que eles fossem inferiorizados, permanecendo no último patamar hierárquico e, com o tempo, juntaram forças, criaram movimentos e mostraram resistência. Após muita luta e interesses políticos, obtiveram a liberdade, contudo, permaneceram marginalizados perante a sociedade.


Nos Estados Unidos da América, o cenário era semelhante, pois também era utilizado o regime escravocrata negro, principalmente nos Estados do Sul. Entretanto, com a vitória da Guerra Civil, os Estados do Norte puseram fim à escravidão, porém, houve grande resistência do Sul para que houvesse a libertação dos negros.


Assim, começaram a surgir grupos paramilitares racistas, assim como o Ku Klux Klan, que defendia a supremacia branca. Ademais, houve a implantação de políticas segregacionistas com legislações diferentes para negros e brancos, os benefícios eram desproporcionais e os negros foram privados de direitos básicos . Eram praticamente dois mundos em um só país.


A partir da década de 1950, foram criados grupos que intensificaram a luta pelos direitos civis dos negros e, assim, surgiram nomes representativos, como Martin Luther King e Malcom-X, grandes ativistas que dedicaram suas vidas à comunidade negra. Neste cenário, artistas também estavam presentes e utilizaram seus talentos como instrumentos de resistência, dentre eles, destaca-se Nina Simone, uma cantora negra que usou a música para tratar do racismo.


Nina , nome artístico de Eunice Kathleen Waymon, nasceu na Carolina do Norte (EUA) em uma família de origem humilde. Aos seis anos, após descobrirem seu talento para música na igreja, começou a estudar piano. Aos dez, realizou o seu primeiro recital na biblioteca da cidade, momento em que viu seus pais serem retirados da primeira fileira para cederem a pessoas brancas, episódio que marcou significativamente a sua vida e impulsionou a luta pelos direitos dos negros .


Em 1950, Nina Simone mudou-se para Nova Iorque para prosseguir os estudos de piano, ela tinha o sonho de ser reconhecida como a primeira pianista clássica negra. A partir desse momento, adotou o nome artístico para que a família não soubesse que estava tocando nos bares da cidade. No mesmo ano, tentou ingressar no Curtis Institute, mas foi rejeitada pela cor da pele. A negativa da faculdade fez o sonho de Nina se distanciar e, no mesmo período, ela se tornava uma grande estrela dos bares da cidade. Anos depois, em 1957, Simone assinou seu primeiro contrato com uma cantora e iniciou sua grande carreira de sucesso. Ela teve grandes composições, era constantemente convidada para os programas de rádio e televisão, tornou-se uma artista destaque do Jazz .


Apesar da ascensão na carreira, ela não ignorava os conflitos raciais que aconteciam nos EUA. E, por vivenciar o racismo, começou a compor músicas que tratavam da temática, transformando sua arte em política, tornando-a um objeto de resistência. Dessa forma, Nina se tornou um símbolo de expressão dos direitos civis e da luta do movimento negro.


A primeira composição voltada à luta dos direitos civis foi Mississippi Goddam, que foi baseada na morte de quatro garotas afro-americanas que estavam na igreja. Assim, Simone demonstrava raiva e indignação sobre a segregação racial a qual enfrentava a população negra. A letra da música trazia uma ideia de uma revolução violenta que não deveria haver pacificação até que ocorresse um equilíbrio nas relações entre negros e brancos.


Outras músicas que detinham esse tom político eram Pirate Jenny e Old Jim Crow, as quais criticavam as antigas leis de segregação racial dos estados do Sul dos Estados Unidos. A partir de um certo momento, Nina Simone passou a dedicar toda a sua produção musical à luta da comunidade negra .


Em 1967, Simone mudou de gravadora e interpretou importantes músicas para o período, assim como: Backlash Blues, I Wish I Knew How It Would Feel To Be Free (hino do movimento dos direitos civis) e Turning Point (música que questiona as origens do racismo). Em 1968, com a morte de Martin Luther King, ela escreveu a canção: Why? The King of Love is Dead (DCO, 2022).


Entretanto, meados dos anos 70, Nina Simone passava por problemas pessoais e financeiros, recebendo até ameaças de prisão por não ter realizado o devido pagamento dos impostos, sob justificativa de ser em protesto ao envolvimento do país na Guerra do Vietnã. E, por estar totalmente dedicada à luta pelos direitos civis, as gravadoras não tinham mais interesse em seu trabalho. O fato de ela ser declaradamente uma ativista a fez ser evitada pelas casas de show, programas de rádio e tv, pois a população evitava se envolver com a causa .


Assim, farta da violência e dos conflitos, sentiu-se rejeitada por uma cultura racista e resolveu ir para a África e depois para a Europa. A partir desse momento, a sua história com a música não foi mais a mesma e, em 2003, Nina faleceu em decorrência de um câncer de mama .


Nina Simone deixou um legado incontestável, afinal, diferentemente da maior parte dos artistas, ela aproveitou-se da visibilidade que tinha e demonstrou os problemas sociais que a população negra enfrentava. Ela dedicou sua vida ao ativismo sem analisar as consequências que a sua carreia poderia sofrer e realmente sofreu. E, ao analisar a sua trajetória, observa-se que não há mudanças sem luta. É necessário ser resistente para conscientizar o mundo, sendo possível realizar isso através da Arte, assim como Nina Simone fez. A arte é política e a música pode ser um instrumento transformador.


Temáticas LGBTs e as discussões de obras literárias e desenhos artísticos.


A sociedade, desde os tempos mais remotos, estabelece atribuições e características entre as pessoas. O sexo das pessoas foi uma característica fundamental para o início da taxação e do reparto de papel no seio social. Segundo Freire :


Provavelmente nenhuma outra característica é mais importante desde o ponto psicológico que ao que classifica as pessoas em varões e mulheres, e em características masculinas e femininas. O sexo é um dos principais elementos diferenciadores que impregnam toda a estrutura social e dicotomiza a conduta humana. É um organizador básico em todas as culturas e sociedades e que guardam uma especificidade dependendo do momento histórico. É a existência de um modelo normativo estabelecido e determinado a um ou a outro sexo.


Não obstante, através dos padrões de comportamentos vividos, compartidos e disseminados durante a evolução histórica e inevitável da vida social dos humanos, os róis de sexo antes estabelecidos começaram a ser estereotipados . Logo, contribuíram para a formação de generalizações e crenças culturais sobre a explicação dos sexos e sua importância para o meio social.


Dessa forma, entendem-se as mudanças sofridas pelas categorias de gênero como um produto da própria evolução histórica da humanidade, importante construção das relações sociais que definem e moldam as atitudes dos indivíduos de acordo com a realidade de uma época, baseada nas necessidades de uma sociedade. Divisões de características e atribuições destinadas à diferença do sexo biológico e suas implicações diretas nas atribuições comportamentais das pessoas em sociedade (VERBICARO SOARES; SILVA; UÑA, 2022, p. 7).


Portanto, uma das primeiras atitudes humanas, ao se encontrar com um novo ser é de classificá-lo em um sexo, para assim, poder estender a essa nova pessoa uma série de atribuições impositivas de condutas e ideias de comportamento. Contudo, essa imposição desencadeou a taxação de uma suposta inferioridade a certos grupos sociais, refletindo em um tratamento desigual e causando a exclusão.


Ao longo do tempo, surgiram novas composições de relacionamentos que, aos poucos, causaram mudanças na sociedade. Nesse contexto, destacam-se os integrantes da comunidade LGBT, que por se comportarem diversamente dos "padrões sociais", não são totalmente aceitos pela sociedade e são tratados de maneira distinta dos indivíduos heterossexuais (VERBICARO SOARES; CRUZ, 2022, p. 304).


O fato de pessoas do mesmo sexo se relacionarem ainda incomoda parte da população, que taxa tal comportamento como errado ou inadequado, acarretando na constante inferiorização e discriminação delas. Segundo.


O discurso social sobre a homossexualidade se baseia na construção de uma série de noções semânticas recortadas e moralmente sancionadas pela cultura sexual hegemônica. Expressões aparentemente objetivas como "coletivo gay" ou "comunidade homossexual" e a mesma ideia de homossexual foram aceitas passivamente pela sociedade e constituem ideias que recriam no seu interior uma tabla de valores dominantes e o respectivo sistema de relações sexuais socialmente legitimadas.


Para o autor, estas ideias são as que serão usadas em quase todos os tipos de discursos contra a homossexualidade. Os distintos juízos de valor que se formulam a partir do repertório de unidades semânticas não neutras, já segadas pela ideologia sistêmica -que contém a crença na existência de uma forma normal de prática sexual: o coito entre um homem e uma mulher . Com base nesse entendimento, Chaves recorda que essa crença levaria implícita a não aceitação de toda forma alternativa de relação sexual entre pessoas do mesmo sexo. Para o autor, esta proibição socialmente generalizada e individualmente internalizada se denomina tabu .


As crenças e emoções contrárias às minorias, todos os anti-homossexuais, provavelmente, não se baseavam em nenhum julgamento objetivo, mas apoiavam-se somente no que ouviam dizer quando participavam de conversações em sociedade, uma sociedade por si, parcial na representação das minorias, atribuindolhes gênese, vida e forma independente da realidade.


As ideias contrárias às minorias se intensificaram pelo mundo, mais especificamente nos países com fortes influências da religião: católica ou católica ortodoxa, judaísmo, cristianismo, islamismo, devido às ideias de que: os homossexuais que estariam numa categoria de doentes, anormais, se encontram na situação de pecadores, de antinaturais , ou seja: as mais terríveis características que fossem ser atribuídas a uma pessoa .


Pois bem, tendo em vista esses fatores, observa-se que os casais LGBTs não detém a mesma liberdade de comportamento que os casais "tradicionais", sendo reprimidos por suas condutas consideradas "inadequadas". Dentre os discursos pregados pela sociedade tradicional, comumente se fala sobre o respeito, mas a não aceitação, deixando explícito o preconceito. E isso interfere até mesmo na arte, pois expressões artísticas que detém conteúdo LGBT são constantemente censuradas por serem "inapropriadas", principalmente para crianças e adolescentes, com a justificativa de que seria uma influência negativa para eles.


Nesse sentido, em setembro de 2022, Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro à época, determinou que os organizadores da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro recolhessem a obra: Vingadores, a cruzada das crianças, sob a justificativa de que havia conteúdo sexual para menores no livro. No mais, alegou que Livros assim precisam estar embalados em plástico preto lacrado e do lado de fora avisando o conteúdo e que fez isso objetivando a proteção das crianças, para que não tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades (EL PAÍS, 2022).


Diante disso, fiscais da Secretaria Municipal de Ordem Pública percorreram o evento com o intuito de recolher publicações que não tivessem de acordo com o art. 78 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que preconiza:


As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo. Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca .


A Prefeitura entendeu que o HQ detinha mensagens pornográficas ou obscenas, pelo fato de conter uma imagem de um beijo entre dois super-heróis homens. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a medida que autorizava tal censura, pois a cena não está em conflito com o art. 78 do ECA, não havendo justificativa para o recolhimento das obras.


Esse episódio homofóbico demonstrou uma ameaça à liberdade de expressão e realçou o preconceito da população brasileira, pois houve repercussão nacional, onde muitas pessoas concordaram com a medida da Prefeitura. Certamente, se o beijo do HQ fosse representado por um casal heterossexual, não seria considerada uma cena obscena ou pornográfica.


As temáticas LGBTs são constantemente censuradas no Brasil, seja numa apresentação de teatro, exposição, novelas e afins. E, quando alguma expressão artística com esse tema é levada ao público, há uma condenação por grande parte da população, que promove até mesmo um boicote.


A censura é a conduta que mais impede a liberdade de expressão e a arte desde os tempos do Regime Militar (VERBICARO SOARES; DEMÉTRIO; MORAIS, 2022, p. 89). E não são somente os produtores ou idealizadores dos movimentos artísticos que sofrem os efeitos da censura, mas toda a cadeia cultural é afetada. Afinal, a população não terá acesso àquele conteúdo, logo, não haverá o acesso a novas informações, formulação de opiniões e formação de um senso crítico.


Com os atos de censura, a sociedade não aborda algumas temáticas, sob a justificativa do "inapropriado" e ignora temas de relevância social que devem ser debatidos. Nesse sentido, é possível correlacionar o episódio da Bienal a outras temáticas polêmicas no país, por exemplo, a educação sexual nas escolas, que é considerada uma influência negativa para as crianças.


As manifestações artísticas são essenciais para a abordagem do papel sexual nos padrões normativos estabelecidos socialmente, suas repercussões, seus modelos e suas implicações na vida individual de uma pessoa, como também de seu comportamento para com o grupo. Entender o comportamento humano é fundamental para compreender o futuro das relações sociais, sendo fundamental nas temáticas LGBTs.


As novas exigências sociais constituem os próximos passos para um futuro diferente. As novas uniões estão presentes atualmente e alavancam os seguimentos comportamentais exigidos em sociedade. Através do questionamento e políticas públicas e privadas de educação e conscientização humana, os novos tempos são exteriorizados no sentido de trazer a necessidade de se adequar às novas realidades democráticas e anseios coletivos, o do respeito mútuo e do tratamento igualitário.


O preconceito e a discriminação de gênero na pintura.


Recorrentemente se fala sobre a desigualdade de gênero no âmbito trabalhista, tal contraste é vislumbrado desde a contratação até a questão salarial. E, no cenário das artes, a situação não difere.


Desde os tempos mais remotos, especificamente fim do século XIX e começo do século XX, a presença de mulheres no mundo das artes era muito restrita. Entretanto, isso não significa que as mulheres não produzissem obras artísticas ou que não eram qualificadas para ocupar as galerias de arte, mas havia barreiras que impediram a participação feminina neste cenário.


A atuação profissional das mulheres, a princípio, limitava-se ao campo educacional e outras funções que remetiam ao cuidado e serviços delicados, logo, não eram bem aceitas nos espaços artísticos. A Escola de Belas Artes até o final do século XIX, as mulheres não podiam frequentar a Escola de Belas Artes, dessa forma, elas se limitavam aos ateliês ou às poucas Academias particulares que aceitavam mulheres. Segundo Perrot.


Escrever foi difícil. Pintar, esculpir, compor música, criar arte foi ainda mais difícil. Isso por questões de princípio: a imagem e a música são formas de criação do mundo. As mulheres eram improprias para isso. Como poderiam participar dessa colocação em forma, dessa orquestração do universo? As mulheres podem apenas copiar, traduzir, interpretar.


A realidade brasileira não era diferente do que predominava mundialmente, segundo.


Durante o século XIX, a arte parecia ser uma profissão exclusivamente masculina. Os interessados formavamse na Academia Imperial de Belas Artes, onde adquiriam os conhecimentos necessários para se tornarem artistas e, posteriormente, viverem de suas classes e das encomendas oficiais e privadas que, vez por outra, aconteciam. As poucas mulheres que ousaram ingressar nesse sistema dominado pela academia eram julgadas por seus pares de modo pejorativo, como amadora.


Em 1816, foi fundada a Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, tornando-se referência nos estudos das Artes apenas em 1826. Em 1840, a Academia começou a promover exposições abertas para alunos e não alunos, permitindo a participação de artistas mulheres, sob a categoria de "amadora" e, em 1881, o Liceu de Artes e Ofícios abriu suas portas às mulheres .


Logo, tais impedimentos transformaram o espaço das artes em algo predominantemente masculino. A mulher era vista como uma inspiração para as obras, sendo retratada sob a perspectiva do olhar e desejo masculino, mas não como criadora/autora. Segundo Priori (2022, p. 4):


Escrever sobre política, economia, filosofia, história e arte, para citar alguns exemplos, não era coisa para mulheres, esses temas eram tidos como sendo da alçada dos homens. E quando elas ousavam escrever e discutir sobre política, fazer pinturas de cenas históricas, dançar, representar, compor e cantar, quando se expressavam com liberdade temática, poética e crítica eram alvos de críticas e zombarias, acusadas de quererem "tomar o lugar dos homens", de quererem "ser homem", eram rechaçadas em suas expressões, como se estivessem rompendo a "ordem natural" de posição do mundo. Isso acarretava o não reconhecimento social, mantendo-as na invisibilidade no mundo das artes e na história da arte.


A falta de representatividade feminina influencia até hoje. Afinal, o número de artistas homens é significativamente maior do que o de mulheres. E, nesse sentido, não cabe o argumento da ausência de mulheres artistas talentosas. Destarte, observa-se que a não aceitação no meio artístico junto à desqualificação da mulher impossibilitaram-na de fazer parte da história. Por fim, muitas artistas não são citadas nos livros de História da Arte, algumas foram estigmatizadas e outras sequer são reconhecidas como tais.


Entretanto, com o tempo, as mulheres começaram a inserirse gradualmente no campo de trabalho formal, afastando-se das funções domésticas e delicadas como de costume. O trabalho não era mais no lar, elas começaram a sair para trabalhar e, consequentemente, começaram a reivindicar mais direitos.


Nos anos 60, o movimento feminista se fortaleceu e algumas pautas começaram a ser discutidas, especialmente no tocante à liberdade e o papel da mulher na sociedade. Logo, essa realidade influenciou diretamente à Arte e fez com que as artistas começassem a produzir obras voltadas para tais questões .


Na década de 80, surgiu um grupo nos EUA denominado Guerrilla Girls, formado por artistas anônimas com o objetivo de lutar por igualdade no mundo da arte. Elas protestavam em frente aos museus de forma anônima, vestidas com máscaras de gorila e com nomes de artistas já falecidas. Elas utilizavam Culture Jamming na forma de pôsteres, livros, outdoors e aparições públicas para expor discriminação e corrupção. Um dos cartazes mais famosos produzido pelo grupo trazia um questionamento: As mulheres precisam estar nuas para entrar no Metropolitan Museum? Menos de 5% dos artistas nas seções de Arte Moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos .


Essa reflexão demonstrava a ausência da mulher na história da arte como criadora, mas a permanência da tradição dos nus femininos na pintura clássica, evidenciando objetificação das mulheres. A arte ocidental é marcada por uma cultura patriarcal e machista, na qual o nu feminino era um tema de representação recorrente.


Apesar de muita luta, a desigualdade de gênero ainda predomina os espaços destinados à Arte. As estatísticas não tiveram mudanças expressivas, em 2022, foi realizado um levantamento das obras de arte em exposição no Museu de Arte de São Paulo (MASP), que resultou em apenas 6% serem de mulheres e 60% das pinturas com nus serem femininos (MASP, 2022).


Pois bem, ainda é um problema atual, as mulheres são constantemente silenciadas, respingando até no mundo da arte, que é muito machista. É necessário ter mais obras que retratem o pensamento feminino e pinturas que representem as lutas sociais das mulheres em exposições de galerias. Afinal, assim como a arte transforma o mundo, ela também deve ser transformada. Deve haver mapeamentos detalhados nos museus e demais espaços, a fim de identificar profundamente as deficiências e, a partir disso, criar incentivos à participação efetiva de mulheres nesse campo.


Esse estímulo poderá ser realizado pelos órgãos do governo com a devida competência. E, com isso, há uma possibilidade de mudança no campo artístico, diminuindo o machismo e promovendo uma maior conscientização social no Brasil.


Considerações finais.


O estudo concluiu que, apesar de ter havido mudanças, o preconceito ainda influencia fortemente a sociedade. No tocante ao racismo, a arte foi um meio de resistência utilizado pela cantora Nina Simone na luta pelos direitos civis dos negros. Contudo, esse ativismo fez com que ela fosse excluída, pois suas canções tocavam em assuntos que não eram abordados nos meios de comunicação, tendo sua carreira foi encerrada antes do previsto.


Em relação à comunidade LGBT, observou-se que as produções artísticas com essa temática são constantemente censuradas. O episódio de homofobia ocorrido na Bienal demonstrou o pensamento de parte da população brasileira, sendo possível correlacioná-lo com outras temáticas polêmicas de grande importância que são taxadas como "inapropriadas".


O último ponto questionou a ausência de mulheres nas Artes Plásticas, especificamente na pintura, demonstrando a predominância de artistas homens, bem como a visão masculina nas obras. Realizou-se uma abordagem histórica e quantitativa, comprovando que os números de obras de artistas homens expostas nos museus ainda são absurdamente maiores que os de artistas mulheres.


Por fim, compreendeu-se que a liberdade de expressão é essencial para as manifestações artísticas, pois a arte também é política, sendo um importante instrumento de resistência, onde os grupos minorizados podem se expressar. Em contrapartida, o acesso a esses grupos deve ser garantido, com o objetivo de extinguir qualquer preconceito ou censura. Assim, haverá uma democratização da arte, garantindo a participação de forma igualitária a toda sociedade.


FREIRE. Ana.


FEMINILIDADES E SEXUALIDADE EM GRAFITOS ESCOLARES.


Adriano Rogério Cardoso Tânia Regina Zimmermann.


Considerações iniciais.


N as escolas os (as) estudantes, muitas vezes, experienciam seus amores, afetos, há contribuições significativas nos processos de constituição de suas personalidades, de suas subjetividades, além de adquirirem conhecimentos educacionais, curriculares, para a formação de cidadãos (ãs) críticos (as), conscientes de suas subjetividades e de seus direitos e deveres sociais. A escola por lidar com pessoas acaba deparando-se com temas sociais, religiosos, políticos, considerados tabus, tais como: sexualidade, questões de gênero, feminilidades, como ser/estar mulher e carecem ser repensados, discutidos tanto nas políticas curriculares quanto nos processos de formação de professores (as).


A não discussão de tais questões estão na contramão dos direitos humanos e contra a vida, por negligenciar a igualdade de gêneros, (re)produzir conformismos discursivos contrafeministas, reproduzir ou não combater os discursos de preconceitos de gêneros, de raça, no interior das escolas, alimentando um discurso preconceituoso, misógino, perigoso que preconiza a inferioridade e submissão das mulheres diante da hegemonia patriarcal masculina. homens e mulheres deveriam se aliar para romper com a mentalidade patriarcal que oprime a ambos .


A sexualidade não é algo natural, dado , inerente, se fosse assim, todos (as) viveriamos nossos corpos e experiências universalmente e isso não acontece. Vivenciamos nossas sexualidades de modo subjetivo, ainda falamos sobre sexo e sexualidade com restrições. A sexualidade não é apenas uma questão pessoal, ela é histórica, social, política, aprendida, envolve rituais, linguagens, fantasias, símbolos, representações, convensões, é constituida ao longo de toda a vida, de distintos modos por todos (as) os (as) sujeitos (as) (LOURO, 2022). A sexualidade é um dispositivo histórico, isto é, uma invensão social por se constituir historicamente .


Para este artigo procuramos refletir sobre às feminilidades e sexualidade expressas em grafitos presentes em um ambiente escolar. Trata-se de um recorte da dissertação de Mestrado em Educação e tem como título "Representações da sexualidade e dos gêneros através dos grafitos em uma ambiência escolar" desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Unidade Universitária de Paranaíba, MS, Brasil, em agosto de 2022.


Os grafitos foram coletados duante os anos de 2022 e 2022, em uma escola pública estadual, no noroeste do estado de São Paulo. A escola oferece ensino fundamental II e Ensino médio. Funciona em três períodos (manhã, tarde e noite). As imagens foram fotografadas com o auxílio de um celular, em horários que não haviam estudantes nas dependências da escola ou nas salas de aula.


Ser homem ou mulher, não é um estado predeterminado, é tornar-se, é uma construção ativa, é um vir a ser. Segundo "[. ] a filósofa feminista pioneira Simone de Beauvoir colocou isso em sua famosa frase: 'Não se nasce mulher; torna-se.' [. ] Ninguém nasce masculino, é preciso tornar-se um homem" (CONNELL; PEARSE, 2022, p. 38). Somos seres performativos e nos eventos sociais em que estamos inseridos há esforços para canalizar comportamentos das pessoas considerados adequados para cada gênero. Os esforços não estão apenas nas mãos dos legisladores, mas também nas atitudes de pais, mães, professores (as), publicitários (as), apresentadores (as) de talk-shows, etc., todos (as) contribuem na criação e manutenção das diferenças ao exporem masculinidades e feminilidades (CONNELL; PEARSE, 2022, p. 38), aqueles (as) que trans itam, questionam, desviam estão fora da norma binária.


No processo de constituição da feminilidade temos exemplos nas mídias, nas ruas, em grupos familiares, escolares, de amigos, em atividades esportivas em grupo, que nos modelam como femininos ou masculinos . Somos panópticamente observados (as) e ensinados (as) a nos comportarmos e sermos pertencentes a um dos binários normatizantes . As cobranças machistas cis + hétero + normativas e imposições ao processo de constituição da masculinidade são tóxicas, preocupantes e colocam a condição feminina em situção de inferioridade e subalternidade (ROSA, 2022; LOURO, 2022). Os feminismos tem lutado contra isso.


Segundo Rosa (2022) a cisheteronormatividade surge a partir de conceitos de teóricos de gênero e sexualidade que apresentam como norma a heteronormatividade, a cisnormatividade ou cissexismo. O cis é um conceito de gênero, indicativo de que o (a) sujeito (a) está em conformidade com seu corpo, sexo e psiquismo, isto é, homem ou mulher estão satisfeitos com seu gênero e sua condição. A heteronormatividade é um conceito de sexualidade que abarca, o desejo sexual direcionado ao sexo oposto ao seu.


Em relação ao embasamento teórico metodológico tratase de uma pesquisa descritiva-exploratória de cunho qualitativo, como afirma ) "[. ] o objeto das ciências sociais é essencialmente qualitativo" e consideramos que melhor auxilia na compreensão desse fenômeno social expressado nos grafitos escolares.


Para as discussões aqui recorremos aos elementos de Análise Crítica do Discurso (ACD) presentes nas relações discursivas de poder e dominação hegemônica de , , atreladas aos ideais de Van Dijk (2022) que abordam o abuso de poder dos dominantes sobre os dominados, por discursos abusivos atravessados que nos cercam. reflete sobre a pedagogia da sexualidade e na lida com as imagens buscamos alguns elementos semióticos de linha peirciana, pela interpretação de Lucia Santaella (2012; 2022) que nos possibilitam raciocínios pelas leituras dos grafitos.


Percebemos a força, a importância da palavra por meio de ações discursivas intencionais e controladoras de alguns poucos, impondo imperativos a maioria como verdades inquestionáveis. As práticas discursivas são carregadas de efeitos ideológicos, auxiliam na manutenção e produção de desigualdades, incluem questões de gênero, sexualidade, classes sociais, pessoais, religião, raça e se estendem às subjetividades , bem como, sobre a construção da masculinidade, feminilidade e homofobia, naturalizando ódios, medos e violências múltiplas. Bell Hooks (2013) relata-nos sobre formas libertarias de educação que corroboram com a composição de nossas observações e análises.


Na lida com as imagens, Santaella (2012; 2022) apresenta elementos semióticos que possibilitam a exploração analítica dos grafitos fotografados. "O próprio ato de fotografar ou filmar um determinado evento já inclui a 'transcrição' de uma ideia em uma representação, no caso visual" . Os grafitos, ao nosso ver, são textos verbo-visuais significativos captados e recortados pelas câmera de um celular. As fotografias devem ser vistas como "ferramentas para chegar às repostas" dos elementos socioculturais presentes nos grafitos. A semiótica nos permite raciocinar sobre as expressões e mensagens dos grafitos, de acordos com a leitura e inferências dos pesquisadores deste artigo. Nós sabemos que o discurso é algo carregado de efeitos ideológicos e impõem seu poder abusivo incessantemente a tudo e a todos (as), inclusive nas imagens analisadas .


Em relação aos níveis interpretativos das imagens "distribuem-se em três camadas" a primeira é a "camada emocional, ou seja, a qualidade de sentimento e a emoção que o signo é capaz de produzir em nós"; a segunda é "a camada energética, quando o signo nos impele a uma ação física ou puramente mental"; e a terceira é "a camada lógica, esta a mais importante quando o signo visa produzir cognição" . As três camadas caminham juntas no processo de raciocínio.


Tomamos os conceitos acima para possibilitar a fluição de um turbilhão de idéias e deixar que os grafitos sobre gênero e sexualidade nos falem, demonstrem as linhas lógicas condutoras de significados.


Desenvolvimento.


A mulher é um símbolo sexual, na visão machista deve ser delicada, maternal, sensual e feminina , poetas as comparam às flores, singelas, troféus, jóias, etc. Segundo Del Priore (2014) os séculos do Renascimento cavaram um fosso entre os sentimentos e a sexualidade. Mulheres jovens eram vendidas nos mercados matrimoniais, excluiam o amor, proibiam as relações sexuais antes do casamento, segundo as igrejas cristãs sexo apenas para procriação o contrário associava-se a prostituição, idolatrava-se a pureza feminina na figura da virgem Maria, tentações femininas eram algo diabólico e precisava ser evitado.


Na atualidade as mulheres devem ter corpos sarados, esculpidos em acadêmias, elas são comparadas às frutas, devem apresentar cintura fina, corpos esguios, quadris largos, seios avantajados, cabelos cuidados e longos. Trata-se de um perfil feminino idealizado, cobiçado na cultura brasileira atual. De acordo com Eva Illouz 1 (2021), em uma entrevista para o jornal El País, conduzida por Álex Vicente, os atributos corporais, o belo, o sexo, ditam normas e criam novas desigualdades sociais, pois vivemos um momento histórico colonizado pela a hiperssexualização e o (a) indivíduo (a) tira proveito de sua pessoa, seus atributos corporais e sexuais no contexto do capitalismo.


1 Eva Illouz é socióloga franco-israelense, especialista no estudo das consequências do capitalismo nas nossas relações amorosas. Professora da Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais (EHESS) de Paris, publicou dois novos ensaios: "O Fim do Amor" e "O Capital Sexual na Modernidade Tardia", coescrito com Dana Kaplan. Nas imagens deste recorte não identificamos destaques para experiências sexuais em que a feminilidade esteja na condição de protagonistas. Embora saibamos que após a revolução tecnológica, sexual, o surgimento da pílula, os divórcios, os movimentos LGBTs, os movimentos feministas dos anos 1960 e 1970, mudanças amorosas surgiram principalmente em relação a liberdade sexual das mulheres (LINS, 2012), porém, as imagens e ) sugerem inferioridade, submissão e passividade feminina.


Figura 2-Desenho (masturbação masculina)


Fonte: acervo fotográfico do pesquisador Segundo Eva Illouz (2021) a sexualidade desempenha um papel importante de ascensão social ao universo corporativo capitalista, as pessoas tiram proveito de seus corpos, sua sexualidade principalmente as mulheres. No contexto histórico atual há um grupo que consegue tirar proveito econômico pelo corpo, pela imagem, já um outro grupo não, surge então, a desigualdade social pelo sexo. Não queremos parecer puritanos (as) apenas estamos apresentando observações. A capacidade de explorar a beleza feminina, não é algo novo, já existia nas sociedades pré-modernas, mas apenas para mulheres de inferior status social, atualmente é possível usar de forma legítima o corpo feminino e sua beleza para obter valor econômico, a prostituição continua na marginalidade. O Tinder e Instagram são exemplos que ditam normas da beleza, os perfís pouco importam, a imagem sempre em destaque, atores, modelos, influencers são exemplos de trabalho e prestígio da atualidade (ILLOUZ, 2021), ter um corpo bonito é indício de poder sexual. As mulheres são objeto de desejo e há consumo elevado de pornografias pelo masculino. Consumimos uns aos outros como mercadorias. Fonte: acervo fotográfico do pesquisador A presença da nudez feminina, a posição de quatro, em situação de subalternidade, inferioridade diante da hegemonia masculina . A servidão feminina ao homem aparece nas imagens grafitadas.


Segundo Del Priore (2014), J.K. Tuckey apresenta explicações sobre a poligamia tropical masculina associada ao clima quente do Brasil, no século XIX. Em relação as mulheres Tuckey escreve que " aos quatorze anos tornam-se mães, aos dezesseis desabrochou toda a sua beleza, e, aos vinte estão murchas como as rosas desfolhadas no outono . Assim como ocorrem com as frutas e flores tropicais, se o homem ficar circunscrito a uma mulher murcha ) ele precisará passar quase dois terços de seus dias unido a uma múmia repugnante e inútil para a sociedade. Discurso misógino, preconceituoso, com elementos do masculinismo e que ainda atravessa nossa sociedade. 4 nos chama a atenção pelo tamanho desproporcional da cabeço em relação ao corpo. Os cabelos são curtos, orelha grande, sobrancelhas arqueadas, olhos com bolsas, sugerindo olheiras, boca grande, dentes falhos, aparecendo apenas dois dentes. A imagem traz no pescoço uma gargantilha que assemelha a uma coleira. A posição da imagem feminina esta de quatro. Os seios caídos e disformes. Magra, sem a mão direita. Será essa a visão masculina sobre o feminino, da mulher murcha? Mulher objetificada e submissa. Outra questão é o culto à magreza esquálida, podendo levar algumas mulheres e até homens, aos quadros dos transtornos alimentares como a anorexia e bulimia. Tudo em nome de padrões sociais de beleza corporal. Percebemos nas redes sociais como instagram, facebook a valorização e exploração dos corpos, nas imagens expostas, que podem proprocionar consumos de produtos, culto a imagem e ao corpo como sinal de sucesso. Observando a Figura 5, questionamos: será que o não encontro de uma parceria, de um namorado, companheiro, marido deveria ser algo preocupante e importante em nossa sociedade? Por que a preocupação em ter alguém? As pessoas não podem viver sozinhas, se assim quiserem? Um (a) companheiro (a) é sinônimo de felicidade? Na sociedade em que estamos inseridos somos continuamente estimulados (as) a ter alguém, uma parceria, do contrário a felicidade não estará completa aos olhos da sociedade e da religão cristã. A mulher sem marido, é tida como titia, não amada e incompleta. Após a segunda guerra mundial a mulher solteira de 25 anos era estigmatizada de solteirona, titia era uma situação indesejada, de incompletude pois, ela "[. ] não é esposa e nem mãe. Sujeita às gozações, a 'solteirona' " . Há uniões matrimoniais em que não existem o desejo sexual, nem vida a dois, são opacas, ancoradas por convenções sociais e conveniências .


A imagem ) apresenta atributos femininos, cílios, sobrancelhas bem definidas (artifíciais), lábios carnudos, brincos, seios a mostra, gargantilha no pescoço e nariz largo. No balão indicativo das falas de personagens de história em quarinhos (HQ), com os dizeres: ""Procuro um namorado, a tarde". Mulher procurando um namorado é algo representativo, a busca pelo companheiro, principe encantado e com isso a completude de sua felicidade, essa é uma visão do amor romântico .


Segundo as pessoas poderiam viver bem melhor se refletissem sobre as crenças e valores que nos são colocadas desde que mascemos, sobre amor, sexo, relações afetivas, pois o desconhecido gera insegurança e é preciso coragem para enfrentá-lo. Existem relações matrimoniais apenas por aparências, conveniências sociais e não afetivas. Nem toda relação ou casamento é sinônimo de felicidade e de práticas sexuais entre o casal.


Nós somos extimulados a vivenciar relações amorosas, o amor romântico. Na atualidade estamos em uma fase de transição do amor romântico e outras conjunções subjetivas de sexualidade. As relações heterossexuais e monogâmicas não são as únicas constituições de relacionamentos vigentes, embora moralmente são as pregadas como normatizantes .


Não somos contrários as relações heterossexuais monogâmicas, se os (as) envolvidos (as) estão em comum acordo e felizes é o que importa, porém outras constituiões também devem ser respeitadas, sabemos que há relações poligâmicas, trisais, pessoas que são bissexuais, homossexuais, transexuais, assexuai, enfim, os seres humanos desde que não descumpram com a legalidade e que os (as) envolvidos (as) estejam em comum acordo podem viver suas sexualidades, parcerias e suas subjetividades (LINS, 2022). Na Figura 6 observamos as vestimentas da imagem masculina, bermuda e camiseta e um balão indicativo de fala em HQ contendo um coração desenhado. A Figura 6 nos possibilita algumas observações, pode estar sugerindo que ele esteja envolvido, apaixonado por ela. Indicativo de que o masculino pode e deve se apaixonar, demonstar sentimentos e afetividades. Não sabemos se esse grafito foi elaborado por alguém do sexo masculino ou feminino. O importante é que os gêneros devam caminhar juntos contra dógmas discursivos misóginos que segregam gêneros, pessoas, amores, independentes das combinações e configurações estabelecidas. Masculinos e femininos devem caminhar unidos contra preconceitos, misóginia, patriarcado, colonizadores da sexualidade e dos gêneros.


Na a imagem feminina apresenta cabelos encaracolados, longos em comparação a figura masculina. Ela usa vestido e a frase: " Não existe amor perfeito, mas sim amor verdadeiro!" esta ao lado da imagem feminina. De acordo com Lins (2012; 2022) existem difrentes formas de amar e de relacionarmos: poliamor, vida a três, há inumeros aplicativos que possibilitam relacionamentos, encontros e sobre o amor no século XXI, todo mundo quer amar alguém ou alguéns. Depois da pílula anticoncepcional, da revolução sexual, do divórcio, dos movimentos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer/Questionando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Poli, e mais (LGBTQIAP+) amar passou a ser plural, pautado pelo desejo e não mais pelo amor romântico em que dois deveria ser um.


A escola é um ambiente que devido ao tempo de permanência dos (as) estudantes, a fase da puberdade, o desabrochar da adolescência, da sexualidade ocorrem e se fazem presentes. Os grafitos são uma das expressões da sexualidade, das dúvidas, incertezas, inseguranças sobre relacionamentos afetivos, daí a importância em se discutir tais questões em sala de aula e nos ambientes escolares, para que isso seja melhor desenvolvido os processos de formação docente devem contemplar tais práticas, além das políticas educacionais e documentos oficiais como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 20018) deveriam contemplar, questões de gênero e sexualidade.


O amor não é algo fixo ao longo da história, exige coragem para se relacionar, surgem diferentes formas de mar e de relacionarse .


Exigir que os (as) adolescentes deixem suas sexualidades fora dos muros das escolas torna-se algo impossível. Cabe aqui o papel dos (as) professores (as) orientando, ouvindo, acolhendo, sanando dúvidas, incertezas, tratando questões de gênero e de sexualidade de modo transversal, interdisciplinar, de forma cotidiana e natural.


Considerações finais.


As considerações aqui observadas nos levam a crer que os grafitos são uma importante fonte a ser observada, segerem expressões de subjetividades dos (as) estudantes, expressam questões de gênero e de sexualidade.


Nas duas últimas décadas do século XX surgem diferentes formas de amar, embora percebemos a procura pelo namorado, pelo amor e pela felicidade. Associando esta última ao companheiro, na visão do amor romântico, monogâmico, em que os dois devam ser único, na modernidade esse amor esta dando lugar ao desejo e o amor passa a ser plural.


A escola esta inserida na sociedade, não perceber isso é algo preocupante. Os processos de formação docente precisam abarcar questões de gênero e sexualidade assim como tais temáticas devam fazer parte do cotidiano escolar. A sexualidade não é deixada fora dos muros escolares pelos (as) estudantes. Por que os documentos de base nacional comum curricular e a formação docente invisibilizam essas temáticas?


UM ESTUDO SOBRE A INCLUSÃO DE MULHERES TRANS NOS ESPORTES: O SEXO BIOLÓGICO É DETERMINANTE?


Gabrielle Keller Sanches Pereira Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães.


Considerações iniciais.


N o Brasil e no mundo, é constante que pessoas transgêneros são socialmente discriminadas, mais especificamente as mulheres trans, que sofrem antes, durante e após as transições de gênero. Dessa forma, as mulheres trans estão passando ao longo dos tempos por lutas de inclusão na sociedade, em especial no ambiente esportivo que é um local em que predomina o sexo masculino e possui diversos preconceitos enraizados acerca dos gêneros.


Nesse sentido, é necessário que haja um debate maior sobre desigualdades de gêneros, no universo desportivo, uma vez que as mulheres trans também são martirizadas por mulheres cis, visto que estas alegam que a mulher trans possui vantagens por ser biologicamente um homem. Sendo necessário também, discutir os conceitos expostos pela medicina.


Nesta perspectiva, o presente estudo tem como escopo, por meio de um estudo bibliográfico, analisar de que modo ocorre a inclusão de mulheres trans nas ciências desportivas, assim como discutir como propostas legislativas como o Projeto de Lei nº 346/2022, que tentam impedir o acesso de mulheres trans nos esportes profissionais, assim como vetar a participação dessas mulheres em competições com o as olimpíadas. A questão que se coloca é: a inclusão de mulheres trans nas modalidades esportivas, deve considerar apenas o sexo biológico? De outro modo, buscaremos responder se é o sexo biológico que define a sexualidade de alguém de forma determinante, de modo a impedir que mulheres trans possam ser incluídas em práticas desportivas com mulheres cisgênero.


Contexto histórico e as terminologias sobre transgêneros.


Para iniciar a discussão acerca do tema, é necessário inicialmente compreender os conceitos sobre gênero e saber quando eles surgiram. Os primeiros estudos relacionados a sexualidade humana com o surgimento do termo transgênero iniciaram na década de 70, com os psicólogos John Money e Anke Ehrhardt, ambos pesquisavam como a sexualidade é subjetiva e o sexo biológico não é algo que define o gênero do indivíduo, pois para os psicólogos o gênero é construído com base nas ações sociais, uma vez que para eles o conceito de gênero não é restrito ao fato de ser considerado homem ou mulher em suas características físicas .


Posto isto, Money e Ehrhardt escreveram o livro "Homem e Mulher, menino e menina" (1972), o livro conta um caso sobre dois irmãos gêmeos que foram submetidos a cirurgia de circuncisão, tendo um deles sofrido um acidente cirúrgico no processo que acarretou na perda do seu órgão sexual primário, e Money teria orientado a família de que o garoto então chamado de John fosse Joan, uma garota, injetassem hormônios femininos e fizessem uma cirurgia de construção de um órgão sexual feminino. Assim, Money comprovaria que o gênero pode ser facilmente alterado e quando John fosse inserido na identidade feminina, ele estaria também construindo socialmente o seu gênero.


Throughout the 1970s the term 'gender dysphoria' replaced that of 'transsexuality' in medical and psychological writing. Locked into the notion of 'gender dysphoria' is the idea of the 'wrong body,' which suggests a state of discord between 'sex' (the body) and gender identity (the mind). In matching the gendered body and the gendered mind, surgery was (and still is) positioned as a route to gendered harmony. Here a further shift in understandings of gender diversity is witnessed. Rather than a privileging of the 'sexed' body, the mind is seen to hold the key to a coherent gendered 'self.' The site of pathology was thus transferred from the body to the mind .


No trecho acima, Hines reforça a ideia do desenvolvimento terminológico de gênero na década de 70, em que o termo "disforia de gênero" foi substituído por "transexualidade" na medicina e psicologia. Havendo assim, uma combinação do corpo com o gênero e da mente com o gênero, não tendo apenas o corpo como identidade de gênero. A filósofa feminista Judith Butler, também defende que o sexo é uma construção social e que parte de discursos heterossexuais, sendo o sexo uma norma que faz parte de uma prática regulatória, construindo-se a partir da cultura, da história e nas relações sociais. Butler afirma que:


Constituído por posições e essas posições não são meros produtos teóricos, mas são princípios organizadores totalmente embutidos de práticas materiais e arranjos institucionais, aquelas matrizes de poder e discurso que me produzem como sendo viável. Com efeito, esse eu não seria um eu pensante e falante se não fosse pelas próprias posições a que me oponho, pois elas, as que sustentam que o sujeito deve ser dado de antemão, que sustentam que o discurso é um instrumento ou reflexão desse sujeito, já fazem parte do que me constitui ).


Com isso, questiona por que o corpo é construído com base em um modelo heterossexual, e a autora chama a relação de sexo, gênero, prática sexual e desejo de matriz heterossexual. A partir dessa matriz, Butler expõe que a sexualidade vai ser aplicada ao corpo físico, e todas mulheres que saírem do padrão heteronormativo serão estereotipadas como não femininas, sendo a aparência um requisito para o gênero. Assim, a identidade de gênero, então, é como cada indivíduo se sente em relação a si mesmo, com base nas suas ações entre corpo e mente e não apenas ao seu sexo biológico, compreendendo-se melhor nos trechos a seguir:


É uma experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos e outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos. 1.


Identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente de sexo biológico. Trata-se da convicção íntima de uma pessoa de ser do gênero masculino (homem) ou do gênero feminino (mulher) .


O transgênero está vinculado ao conceito de identidade de gênero, pois é a pessoa que possui a identidade de gênero para além do seu sexo biológico. Então entende-se que o homem trans é aquele cujo sexo biológico é o feminino, no entanto se identifica com o gênero masculino. Assim como, a mulher trans é aquela que desde o seu nascimento possui sexo biológico masculino, mas identifica-se com o gênero feminino . É neste sentido que a sexualidade é construída, conforme os sentimentos, ações e escolhas de uma pessoa.


Após diversos estudos e conquistas sociais como: a homossexualidade ser retirada da lista de Classificação Internacional de Doenças (CID) na década de 90. Em 2022 a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a transexualidade da lista também, saindo da categoria de "distúrbios mentais" e passando a ser considerada como "condição relativa à saúde sexual" .


No entanto, mesmo com o avanço da medicina e da psicologia para compreender e agir de forma mais inclusiva, ainda existem diversos estigmas. Culturalmente os padrões de gênero sempre foram impostos pela heteronormatividade, onde o correto é o homem de nascença agir como "macho", não podendo chorar, não demonstrar sensibilidade, e a mulher agir com delicadeza, elegância, constituindo seu papel de "fêmea", dona do lar, e tudo que fosse diferente disto seria considerado como algo anormal, como uma doença .


1 Definição contida nos Princípios de Yogyakarta: Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Yogyakarta, Indonésia, 2006, p. 7.


As dificuldades de inclusão social e laboral para as mulheres transgêneros na sociedade brasileira.


Com o avanço da medicina, as pessoas que nasceram biologicamente no sexo masculino, mas que não se reconhecem como sendo desse gênero e sim pelo gênero feminino, podem optar pela cirurgia de mudança de sexo. Nesse contexto, não é obrigatório ter realizado cirurgia para ser reconhecido como pessoa trans e será feito por direito a expedição de novos documentos com o nome social do gênero que a pessoa se identificar (ABGLT, 2022).


As pessoas trans sempre sofreram com as dificuldades de inclusão na sociedade, pois diversas vezes foram caracterizadas como pessoas doentes, estranhas, perigosas e inclusive pecadoras, uma vez que não se encaixavam em nenhum padrão construído pela sociedade. O mais difícil para estas pessoas é explicar que não há necessidade de justificar que precisam ser aceitas no meio social, que são pessoas comuns e iguais a todas, conforme o art. 5º da Constituição Federal de 1988.


As mulheres transgêneros carregarão o fardo da discriminação social duas vezes, primeiro por serem uma pessoa transgênero e somado a esta condição por serem mulheres. Sabe-se que as sociedades são majoritariamente machistas, e no contexto histórico do papel da mulher, a sua função era de cuidadora do lar, havendo uma diferença significativa entre os trabalhos realizados entre elas e os homens. Este machismo é reproduzido até hoje, e não só por homens, mas também por mulheres. E as mulheres trans lutam para serem reconhecidas e respeitadas em todos os grupos sociais, sendo também uma luta diária por espaço nos ambientes laborais .


A ocupação laboral das mulheres trans é muito questionada, mesmo que a Constituição Federal de 1988 e a Consolidação das Leis do Trabalho garantam o direito ao emprego a todos a sociedade vê uma mulher trans como alguém que não merece os mesmos direitos que todos, surgindo com isso a chamada transfobia: O termo transfobia, através de sua tradução do termo original anglo-saxão transphobia, é um conceito em ascensão para designar e analisar as múltiplas violências contra pessoas trans -pessoas que vivem a transgeneridade. Normalmente, o termo pode ser evocado para representar um grupo heterogêneo de violências específicas que atingem mulheres transexuais, travestis, homens trans, pessoas não binárias, entre outras (PODESTÀ, 2022, p.1).


Para Berenice , existe o chamado transfeminicídio. A autora chegou à conclusão de que o motivo dessa violência é construído pela discriminação de gênero e não pela orientação sexual da vítima, sendo praticada de forma muito violenta, sempre com o intuito de desfigurar o corpo e não é respeitado em noticiários a identidade de gênero da pessoa morta. Bento também afirma que essa violência e exclusão dar-se-á na infância, conforme o trecho a seguir:


O processo de exclusão das pessoas trans começa muito cedo. Quando as famílias descobrem que o filho ou a filha está se rebelando contra a "natureza" e que desejam usar roupas e brinquedos que não são apropriados para seu gênero, o caminho encontrado para "consertá-lo" é a violência. Geralmente, entre os 13 e 16 anos as pessoas trans fogem de casa e encontram na prostituição o espaço social para sobrevivência financeira e construção de redes de sociabilidade (BENTO, 2014, p. 2).


De acordo com o boletim nº 03/2022 de Assassinatos contra Travestis e Transexuais do ANTRA 2 , o Brasil teve um aumento de 39% nos assassinatos de pessoas trans no primeiro semestre do ano de 2022, e este número continua aumentando pois os Estados não possuem nenhuma ação para combater este crime. O boletim também informa que durante o período de pandemia da COVID-19, é preocupante a quantidade de pessoas trans nas ruas, sem emprego, sem renda, passando por diversas dificuldades, e apresenta os seguintes dados: a estimativa é que apenas 4% da população Trans feminina se encontra em empregos formais, com possibilidade de promoção e progressão de carreira de acordo com dados levantados pela ANTRA. De igual modo, vemos que apenas 6% estão em atividades informais e subempregos. Mantémse aquele que é o dado mais preocupante: 90% da população de Travestis e Mulheres Transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda. 80% das travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo, relataram perda de até 100% em seus ganhos .


Sendo assim, a prostituição é o meio utilizado para buscar renda e liberdade das agressões que as mulheres trans sofrem dentro de seus próprios núcleos familiares. Por falta de políticas públicas e ações de inclusão, a mulher trans não possui a escolha de conseguir um emprego formal, e não consegue espaço em áreas como no esporte, que é um dos setores mais machistas e celetistas. O que gera uma contradição enorme, pois os esportes deviam ser o meio de inclusão social mais ávido, promovendo a inserção de todos os grupos sociais para que estimule não só um trabalho físico, mas também mental.


Institutos Legais no âmbito das ciências esportivas e o Projeto de Lei 346/2022.


No Brasil existem leis que protegem o incentivo do esporte e estabelecem as normas e condutas que devem ser seguidas no meio desportivo. A Lei nº 9.615, de 24 de Março de 1998 é uma dessas, batizada como Lei Pelé, em seu artigo 2º dispõe sobre os princípios que devem ser seguidos. Junto com a Lei Pelé, também existe o Comitê Olímpico do Brasil (COB), fundado em 8 de Junho de 1914, e é uma organização filiada ao Comitê Olímpico Internacional (COI), tendo a função de representar o esporte no Brasil e proteger os princípios olímpicos no território nacional 4 . O COB é responsável 3 Art. 2º O desporto, como direito individual, tem como base os princípios:


III -da democratização, garantido em condições de acesso às atividades desportivas sem quaisquer distinções ou formas de discriminação; (grifo nosso) 4 Informações retiradas no site do Comitê Olímpico do Brasil. Disponível em: .


por fiscalizar se as normas e regras de prática desportiva estão sendo respeitados, conforme o artigo 47 da Lei Pelé prevê. Ademais, de acordo com o inciso III do artigo 2º da Lei Pelé exposto alhures, o direito à prática desportiva é uma garantia a todos, sem fazer qualquer discriminação seja de cor, raça, religião, gênero e sexualidade, logo é assegurado o direito de pessoas trans participarem em campeonatos esportivos, pois por interpretação das leis, no Brasil não existe dispositivo legal que proíba transgêneros no esporte.


Além disso, em 2003 foi formulado o Consenso de Estocolmo sobre redesignação sexual nos esportes, discutido por uma comissão do COI para estabelecer as condições que seriam aplicadas para que atletas trans pudessem competir oficialmente, as quais seriam: cirurgia de redesignação sexual obrigatória; reconhecimento legal do país de origem e tratamento hormonal apropriado. Contudo, o Consenso de Estocolmo exigia que o atleta cumprisse essas condições 2 anos, no mínimo, antes das competições . Entretanto, o Consenso de Estocolmo não havia padrão, as federações e confederações podiam atuar conforme suas próprias regras, aceitando ou não atletas trans (SILVEIRA; VAZ, 2014, p.469).


Em novembro de 2022, foi publicado um documento pelo Comitê Internacional Olímpico, acerca das diretrizes para transgêneros, e admitindo que desde o Consenso de Estocolmo houve um crescimento no reconhecimento da importância da autonomia de identidade de gênero na sociedade, refletindo em leis de inclusão social para pessoas LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros) no mundo todo, sendo assim, o COI reformou as condições aplicadas em 2003, apresentando as seguintes condições para aqueles que fazem a transição de homem para mulher: a atleta declarou que sua identidade de gênero é feminina. A declaração não pode ser alterada, para fins esportivos, por um mínimo de quatro anos; a atleta deve demonstrar que seu nível total de testosterona no sangue esteve abaixo de 10 nmol / L por pelo menos 12 meses antes da sua primeira; o nível de testosterona total da atleta no sangue deve permanecer abaixo de 10 nmol / L durante todo o período de elegibilidade desejada para competir na categoria feminina; a conformidade com essas condições pode ser monitorada por meio de testes. No caso de não conformidade, a elegibilidade do atleta para competição feminina será suspensa por 12 meses .


Após essas diretrizes, houve um número crescente de atletas trans, principalmente mulheres trans, competindo oficialmente em vários países e em distintas modalidades, porém somado a este fato está a problematização do assunto. No Brasil, a polêmica está em torno do Projeto de Lei n. 346/2022, proposto por Altair Moraes, Deputado do Republicanos, e ainda está sendo movimentado na Assembleia Legislativa de São Paulo. Este Projeto de Lei é contra a participação de mulheres trans em campeonatos esportivos femininos oficiais apenas no Estado de São Paulo. Sustenta que o sexo biológico é o único que pode ser levado em consideração, mas não só o deputado e outros parlamentares que são favoráveis à aprovação da lei, mas outras atletas mulheres cisgênero 5 também (GLOBO ESPORTE, 2022).


O projeto de lei vem afligindo diversas atletas trans, sobretudo a jogadora de vôlei Tiffany Abreu, que joga pelo clube Vôlei Bauru de São Paulo, e também foi a primeira mulher trans a disputar uma partida oficial da Superliga Feminina de Vôlei. Caso o projeto de lei seja aprovado, Tiffany não poderá disputar as partidas da fase classificatória da Superliga que forem realizadas em São Paulo (GLOBO ESPORTE, 2022).


Mas de acordo com as diretrizes do COI, a atleta Tiffany cumpre todas as determinações e foi autorizada pela Federação Internacional de Vôlei a jogar pelo Vôlei Bauru, seu atual clube. Todavia apenas pela presença de uma atleta trans atuando junto com mulheres cis, trouxe opiniões comparativas acerca do condicionamento físico entre ambas, se de fato mulheres 5 Um termo utilizado por alguns para descrever pessoas que não são transgênero (mulheres trans, travestis e homens trans). "Cis-" é um prefixo em latim que significa "no mesmo lado que" e, portanto, é oposto de "trans-" (GLAAD, 2022 O trecho acima é referente à conclusão que especialistas possuem sobre as diferenças entre pessoas trans e cis. Após audiência pública na Câmara dos Deputados em 2022, as opiniões sobre as supostas vantagens foram de que não existem vantagens por conta do sexo, em razão de que sempre haverá, dentro do âmbito desportivo, pessoas que vão levar vantagem entre si, tendo o Doutorando em Educação Física, Rafael Marque, indagado do por que ninguém questiona a supremacia africana nas provas de corrida (AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS, 2022).


O corpo é um texto socialmente construído, um arquivo vivo da história do processo de (re)produção sexual. Neste processo, certos códigos naturalizam-se, outros, são ofuscados e/ou sistematicamente eliminados, posto às margens do humanamente aceitável, como acontece com as pessoas transexuais .


A Federação Internacional de Atletismo (IAAF), após reunião realizada em Doha, no Catar, anunciou as novas regras de aptidão de mulheres trans. A concentração de testosterona de uma atleta terá que ser inferior a cinco nanomols por litro de sangue, o que antes era de 10 nanomols (GLOBO ESPORTE, 2022).


Essas regras sobre o nível de concentração de testosterona no sangue acarretam um debate sobre o exame antidoping, pois para Rebecca Ann Lock, o doping tem a função de comprovar se uma mulher está de acordo com os padrões de corpo conforme a visão da matriz de heterossexualidade, estudada por Judith Butler. Para Lock, a sociedade impõe um padrão corporal entre os gêneros, e se uma atleta mulher cis não estiver dentro dos padrões de "feminilidade", ela terá que ser submetida ao doping .


A atuação de atletas transgêneros: uma abordagem do direito comparado O primeiro momento em que atletas transgêneros tiveram a oportunidade de competir em jogos, antes mesmo da autorização de comitês olímpicos, foi em 1982 com o chamado Gay Games, foi fundado pelo médico e decatleta olímpico Dr. Tom Waddell. O Gay Games é inspirado nas Olimpíadas, recebe atletas de todas as orientações sexuais e ocorre em diversos locais do mundo. A sua primeira edição foi realizada em San Francisco -Califórnia, e a próxima edição está programada para ocorrer em Hong Kong (2022). O Gay Games possui como princípio fundamental a inclusão, e que nenhum indivíduo seja excluído de participar por conta de sua orientação sexual, gênero, raça, religião, nacionalidade, origem étnica, crença (s) política (s), habilidade atlética / artística, desafio físico, idade ou estado de saúde. Oficialmente, a primeira atleta trans, pioneira do movimento trans nos esportes foi Reneé Richards, ex-jogadora de tênis que após cirurgia de redesignação de sexo na década de 70 ficou mundialmente conhecida. Richards teve diversos movimentos contra a sua participação no US Open, torneio de tênis que ocorreu em Nova Jérsei (1976), tais movimentos a levaram até a Suprema Corte do Estado de Nova York, que decidiu permitir a participação da atleta no torneio, tendo o juiz 7 do caso aceitado Richards como uma mulher (SI TENNIS, 2022).


Após alguns anos, em 2022 na Itália, surgiu a primeira atleta trans na modalidade do vôlei, Alessia Ameri, e jogou oficialmente 6 Trecho retirado do site da Federação de Jogos Gays. Disponível em: . 7 Alfred Ascione afirmou que "os medos infundados e os equívocos dos réus devem dar lugar à opressora evidências de que essa pessoa agora é mulher.". Disponível em:. Mas é possível observar que não existem ordenamentos jurídicos específicos, seja nacional ou internacionalmente. A atuação de mulheres trans no esporte parte de regras e concessões de cada federação esportiva em suas distintas modalidades de acordo com o que foi sugerido pelo Comitê Olímpico Internacional. Por exemplo, em um mesmo Estado é possível que ocorra no campo do vôlei ser aceito uma atleta trans, porém não ser aceito no handebol. No entanto, atualmente diversos países estão acolhendo e garantindo leis que protegem a comunidade LGBT. A Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA), todos os anos coleta dados sobre os desenvolvimentos legais que aconteceram ao redor do mundo, como também os locais que ainda possuem ausência de leis positivas. O mapeamento trans ainda está na sua 3ª edição, foi lançado em setembro de 2022, e já detalha o impacto de leis sobre pessoas trans em 143 Estados, todos membros da Organização das Nações Unidas (ONU).


Considerações finais.


Considerando que os estudos sobre sexualidade humana iniciaram na década de 70, este assunto ainda causa bastante "pânico" nas pessoas, em razão da existência de um modelo societal pautado no binarismo (feminino-masculino), e exclui outras formas de existências, tal como os dados assustadores do extermínio de pessoas trans, revelam. Mesmo que o Comitê Olímpico Internacional tenha estabelecido diretrizes autorizando a participação de mulheres trans em campeonatos oficiais femininos, e que diversos clubes já estejam incorporando as atletas trans em seus times, a sociedade brasileira não consegue ainda vislumbrar mulheres transgêneros competindo no ambiente desportivo. Isto revela o quanto no Brasil há uma mentalidade nitidamente conservadora presa a uma cultura patriarcal e sexista que alimenta os estereótipos de gênero Os empecilhos gerados pela sociedade são exclusivamente de cunho discriminatório, não havendo fundamentações jurídicas ou científicas que corroborem com a proibição de mulheres transgêneros nos esportes. Ademais, não é possível fundamentar em questões de desempenho físico conforme o sexo biológico, uma vez que ainda não existem estudos mais aprofundados sobre o tema, e que é possível verificar atletas mulheres cis com resistência e força físicas maiores que homens cis. Ainda que no Brasil, e em outros países, existam políticas para redução de desigualdades para o coletivo trans, a realidade social nos mostra que os desafios da inclusão são enormes, principalmente no mercado de trabalho e em especial nos esportes.


É urgente a necessidade de desconstruir a imagem de que na sociedade existem apenas homens e mulheres cis, rompendo assim com o binarismo de gênero. Certamente será um passo importante para a igualdade de gênero e assim estabelecer normas mais diretas e eficazes dentro das ciências esportivas, pois ainda há obscuridade e omissão, posto que o Comitê Olímpico Internacional apenas sugeriu diretrizes, cabendo às federações e comissões esportivas fazerem uso da discricionariedade, para adotar ou não. provimento ao Recurso Extraordinário n. 1.045.273/SE, fixando o entendimento com repercussão geral da matéria, pelo impedimento de reconhecimento de novo vínculo familiar concomitante, inclusive para fins previdenciários, ante a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes. No julgado foi fixada a seguinte tese:


A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 1.045.273/SE. Relator: Min. Alexandre de Moraes, de 18 de dezembro de 2022. Diário da Justiça, 07 jan. 2021).


O julgado tem origem no autuado Tema 529 do Supremo Tribunal Federal, tendo como verbete de discussão a "possibilidade de reconhecimento jurídico de união estável e de relação homoafetiva concomitantes, com o consequente rateio de pensão por morte". A repercussão geral foi fixada na seguinte ementa: Narra-se a busca de reconhecimento post mortem de sociedade de fato homoafetiva pelo companheiro sobrevivente, mantida durante o período de 1990 a 2002, com a declaração dos respectivos direitos previdenciários de pensão por morte do de cujus.


Apesar de ter sido julgado procedente o pedido no juízo singular, o Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe admitiu a existência da relação homoafetiva, mas julgou improcedente a pretensão decorrente, em razão a existência de reconhecimento judicial de união estável heteroafetiva anterior, impossibilitando a declaração de reconhecimento de constituições familiares concomitante, ou seja, julgou-se pela impossibilidade jurídica do reconhecimento da vigência de união estável concomitante ou paralela independente da sexualidade afetiva.


Em seu voto, o Relator destacou que o reconhecimento da união estável paralela caminharia ao encontro da bigamia, na qual impede a constituição de nova entidade familiar por pessoas casadas ou com união estável juridicamente reconhecida, desde que não esteja separada de fato do vínculo afetivo.


Entendeu-se, portanto, que um relacionamento afetivo paralelo ao casamento ou a união estável, ainda que seja público, de convivência contínua e duradoura, estabelecida com objetivo com animus de constituição de família, será caracterizado concubinato por configurar causa impeditiva ao casamento.


Ao partir pelo princípio monogâmico, o Relator observou o compromisso de fidelidade em todos os aspectos afetivos familiares entre os cônjuges ou companheiros durante a união familiar, exaurindo a possibilidade de compartilhar juridicamente de seus efeitos em relacionamentos concomitantes. Segundo o magistrado: Dessa forma, em que pesem os avanços na dinâmica e na forma do tratamento dispensado aos mais matizados núcleos familiares, movidos pelo afeto, pela compreensão das diferenças, respeito mútuo, busca da felicidade e liberdade individual de cada qual dos membros, entre outros predicados, que regem inclusive os que vivem sob a égide do casamento e da união estável, subsiste em nosso ordenamento jurídico constitucional os ideais monogâmicos, para o reconhecimento do casamento e da união estável, sendo, inclusive, previsto como deveres aos cônjuges, com substrato no regime monogâmico, a exigência de fidelidade recíproca durante o pacto nupcial (art. Concluiu-se que a existência de declaração judicial da existência de união estável, per si, impede o reconhecimento de união paralela estabelecida por um dos conviventes em período concomitante, inclusive para fins previdenciários, por ser causa impeditiva dos elos matrimoniais, desde que não esteja separada de fato ou judicialmente.


Contudo, buscando ampliar os horizontes da matéria, a compatibilizar com a realidade social, o voto divergente advertiu que não se cinge a controvérsia no reconhecimento da união estável homoafetiva, entendimento anteriormente pacificado sobre sua possibilidade no julgamento da ADPF 132 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132/RJ. Relator: Min. Ayres Britto, de 05 de maio de 2011. Diário da Justiça, 14 out. 2011), mas a repercussão se discute o reconhecimento das uniões estáveis concomitantes, sejam elas homo ou heteroafetivas, com efeitos no campo previdenciário.


Observou que a proteção constitucional da entidade familiar, independentemente de sua constituição de gênero, garante o direito ao cônjuge ou companheiro como dependente do segurado, os benefícios do Regime Geral da Previdência Social, demonstrada a boa-fé objetiva das uniões estáveis concomitantes. De acordo com o Ministro: Como se vê, o casamento anulável ou mesmo nulo produz todos os efeitos até o dia da sentença que o invalida. Na situação dos autos, por causa da morte, cessaram as relações jurídicas, mas os efeitos, de boa-fé, devem ser preservados. Ademais, a boa-fé se presume, inexistente demonstração em sentido contrário, prevalece a presunção, especialmente porque não se cogita de boa-fé subjetiva e sim de boa-fé objetiva. Desse modo, uma vez não comprovado que ambos os companheiros concomitantes do segurado instituidor, na hipótese dos autos, estavam de má-fé, ou seja, ignoravam a concomitância das relações de união estável por ele travadas, deve ser reconhecida a proteção jurídica para os efeitos previdenciários decorrentes Prevalecendo o entendimento firmado pelo voto do Relator, a decisão deixou de analisar possibilidades fáticas da entidade familiar, a acompanhar a realidade social contemporânea, projetando uma possível modificação na proteção e garantia de direitos anteriormente assegurados.


Da fundamentalidade da entidade familiar.


A Declaração Universal dos Direitos Humanos garante o direito de homens e mulheres constituírem família, sendo a base fundamental da sociedade que deve ser protegida por ela e pelo Estado. É garantido o direito ao casamento, contraída pela vontade livremente consentida de seus indivíduos de maior idade, sem qualquer discriminação, que terão igualdade de obrigações e direitos em sua constituição e dissolução .


Essa proteção também é assegurada pela Convenção Americana dos Direitos Humanos, para quem ainda garante a igualdade de direito dos filhos seja nascidos ou não na constância do casamento, cujos interesses devem ser protegidos na convivência dos pais quando da dissolução da unidade conjugal .


Veja-se que a constituição da família é um direito essencial do homem, devendo ser protegida e respeitada pela sociedade e pelo Estado, repelindo qualquer forma de discriminação, garantindo o pleno exercício de seus direitos e obrigações de seus indivíduos.


Com a proteção complementar instrumental internacional dos direitos humanos, a família se institucionaliza como base da sociedade brasileira, tendo especial proteção do Estado no reconhecimento da união estável entre homem e mulher como entidade familiar, não podendo ser impostas restrições para sua conversão em casamento . A entidade familiar também poderá ser formada por qualquer dos pais e seus descendentes.


Trata-se de um dos pilares que fundamentam a dignidade da pessoa humana, na construção do Estado Democrático de Direito que tem por objetivo a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, seco, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação .


A celebração do casamento será gratuita, sendo civil e com mesmo efeito no religioso, nos termos da lei, sendo dissolvido pelo divórcio. Há igualdade de direitos e deveres dos indivíduos na sociedade conjugal, vedada qualquer interferência no planejamento familiar.


Noutro norte de proteção pelo Estado, deve ser assegurada a assistência a cada pessoa integrante da entidade familiar, criando mecanismos para coibir quaisquer tipos de violência no âmbito de suas relações.


Buscando reconhecer os direitos dos casais homoafetivos na construção familiar, o Supremo Tribunal Federal julgou a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, devendo ser excluído qualquer impedimento para o reconhecimento desse direito (BRASIL, STF, ADI n. 4.277/DF e ADPF n. 132, 2011.).


Observa-se, portanto, será entidade familiar aquela formada pela união de pessoas, independentemente do gênero sexual, ainda que constituída por qualquer dos pais e seus descendentes, devendo ser protegida pela sociedade e Estado contra qualquer forma de discriminação.


A união estável e os direitos sucessórios.


A união estável entre pessoas, independentemente da opção sexual, será configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família, sendo reconhecida como entidade familiar , lhes guardando os deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, no sustento e educação dos filhos .


Havendo qualquer dos impedimentos legais (art. 1.521, Código Civil, 2002.) não se reconhecerá a constituição da união estável, constituindo concubinato das relações não eventuais, salvo se a pessoa casada se achar separada de fato, por mais de dois anos, ou judicialmente. Contudo, não haverá impedimento para caracterização da união estável quando constatadas qualquer das causas suspensivas do casamento .


Mediante pedido dos companheiros ao juiz, a união estável poderá ser convertida em casamento, com respectivo assento no Registro , aplicando-lhes o regime da comunhão parcial de bens nas relações patrimoniais, salvo disposição contratual expressa dos companheiros.


O Supremo Tribunal Federal afastou a diferença entre cônjuge e companheiro para fins sucessórios, inclusive em uniões homoafetivas, ou seja, os efeitos de direitos, deveres e obrigações dos companheiros na união estável equipara-se aquelas legislativamente atribuídas ao casamento, sendo-lhes assegurado igualdade de direitos sucessórios aplicando as disposições do art. 1.829 do Código Civil .


Contudo, será reconhecido direito sucessório ao cônjuge ou companheiro sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo comprovado que tornara impossível a convivência sem que haja culpa do sobrevivente .


Além disso, será concedido direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, sem prejuízo de sua participação que lhe caiba na herança, já que equiparado como herdeiro necessário, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar .


Direitos previdenciários na união estável.


A previdência social é constitucionalmente assegurada institucionalmente organizada na forma de Regime Geral da Previdência Social, tendo caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios de preservação do equilíbrio financeiro e atuarial do segurado .


Deve-se atender, na forma da lei, a cobertura dos eventos de incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada; a proteção da maternidade, especialmente da gestante; a proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes do segurado de baixa renda; e, pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependente, com valor mensal não inferior ao salário mínimo vigente na época de sua concessão .


A Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, disciplina os planos de benefícios da Previdência Social, tendo por princípios e objetivos assegurar meios indispensáveis para manutenção do segurado e seus dependentes, compreendendo as seguintes prestações: Art. 18. O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços: I -quanto ao segurado: a) aposentadoria por invalidez; b) aposentadoria por idade; c) aposentadoria por tempo de contribuição; (Redação dada pela Lei Complementar nº 123, de 2006) d) aposentadoria especial; e) auxílio-doença; f ) salário-família; g) salário-maternidade; h) auxílio-acidente; i) (Revogada pela Lei nº 8.870, de 1994) II -quanto ao dependente: a) pensão por morte; b) auxílio-reclusão; IIIquanto ao segurado e dependente: a) (Revogada pela Lei nº 9.032, de 1995) b) serviço social; c) reabilitação profissional .


De acordo com a legislação, na condição de dependentes do segurado, são beneficiários dos planos previdenciários, o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave, sendo presumida sua dependência do segurado .


Os pais, o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental ou deficiência grave, cuja dependência econômica ao segurado deverá ser comprovada .


Nesse mister, os direitos previdenciários do cônjuge ou companheiro sobrevivente devem ser reconhecidos, independentemente da preexistência jurídica de casamento ou união estável do de cujus separado de fato há dois anos ou judicialmente.


O entendimento majoritário míope formado na análise das relações sociais contemporâneas compreendeu-se pela impossibilidade de reconhecer a concomitância de relações conjugais, inclusive para fins previdenciários, e por consequência, nos direitos sucessórios, seja entre uniões estáveis ou casamento e união estável, passando a reconhecer juridicamente os direitos daquela primeira relação constituída. Esse foi o entendimento sedimentado.


Contudo, se da liberdade humana lhe concede ao indivíduo constituir relacionamentos conjugais concomitantes, inclusive com a existência de filhos, deve-se suportar as consequências jurídicas dos direitos decorrentes.


Na simples leitura o julgado, parece que o de cujus mantinha uma união estável heteroafetiva reconhecida judicialmente anteriormente, concomitante com uma relação homoafetiva que se buscava o reconhecimento da união estável, inclusive para fins sucessórios. Não trouxe informações sobre a realidade da convivência conjugal.


Dessa forma, se essas relações conjugais foram públicas, de forma contínua e duradoura, com a vontade livre dos indivíduos na constituição de família, ao contrário senso, deveriam ser juridicamente reconhecidas, inclusive para fins sucessórios, já que beneficiárias do segurado pelo regime de previdência social.


O reconhecimento de união estável anterior, por si só, não afasta o reconhecimento de união estável posterior, já que ausentes elementos probatórios da separação de fato do consorte, por mais de dois anos, ou da dissolução extra ou judicial daquela relação. Se nesta segunda relação, preenchidos os requisitos para configuração da união estável, deve lhe ser assegurada o reconhecimento com todos os direitos provenientes da relação, sejam previdenciários ou sucessórios.


Não cabe ao judiciário intervir na liberdade dos indivíduos no planejamento ou constituição da entidade familiar, mas garantir todos os direitos humanos e fundamentais necessários para sua manutenção e subsistência.


Veja-se que das relações sociais contemporâneas pode haver a manutenção pelo indivíduo de duas uniões estáveis concomitantes, ou o indivíduo coabitar na mesma casa da primeira relação estável, sem que haja compromisso dos deveres conjugais, mantendo-se uma segunda união estável, ou o indivíduo coabitar na segunda união estável, mas juridicamente manter-se vinculado com a primeira relação estável, entre outras formações que o judiciário eximiu de garantir os direitos decorrentes dessas relações.


Esperava-se que o Tribunal constitucional cumprisse com seu papel de guardião dos direitos e deveres fundamentais, mas em sua nova formação institucional, por meio desse julgado, anunciase uma mudança na proteção dos direitos que juraram garantir.


Considerações finais.


Nesta pesquisa, analisou-se o julgado do Supremo Tribunal Federal na análise fática e jurídica do Recurso Extraordinário n. n. 1.045.273/SE, com repercussão geral, afastou a possibilidade de reconhecimento de união estável concomitante, inclusive para fins previdenciários, ante a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes.


Apesar da matéria pacificada, das relações sociais contemporâneas suscitarão sua reanálise em casos diversos, como da relação de concubinato, embora mantido em convivência pública, contínua e duradoura, com existência de filhos, constituída de forma secundária e concomitante, onde o(a) consorte sobrevivente continua com a manutenção da relação conjugal, após o falecimento do primeiro cônjuge ou companheiro, mantendo-se a susbsistência afetiva em todos seus aspectos na velhice. Não há dúvidas que a união estável deverá ser reconhecida, inclusive para fins previdenciários e sucessórios.


A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO EXÉRCITO BRASILEIRO.


Amanda Karoline Carvalho Barros Douglas Verbicaro Soares.


Considerações iniciais.


O presente artigo tem por objetivo analisar a inclusão e participação das mulheres nos quadros das Forças Armadas Brasileiras, em especial no Exército Brasileiro. O ponto de partida centra-se nas Forças Armadas de forma geral, uma vez que estas são historicamente reconhecidas pelo ambiente estigmatizado e predominantemente masculino.


Fato que o cenário modificou-se ao longo dos anos, garantindo-se a participação feminina. No entanto, desde logo questiona-se se esta participação é efetiva e isonômica, de modo que homens e mulheres possuem as mesmas oportunidades e chances de ascensão dentro da carreira ou não.


A premissa parte da análise histórica acerca da inclusão feminina nos quadros da Marinha, seguida pela Força Áerea e por fim, o Exército. A escolha pelo Exército como objeto de estudo se justifica pela demora em aceitar em seus quadros a participação de mulheres. Ainda, necessário o estudo e debate acerca da desigualdade de tratamento de genêno dentro de lugares tradicionalmente reconhecidos como masculinos.


Para o presente estudo, quanto à metodologia adotou-se a pesquisa básica e aplicada, com os métodos qualitativo e conceitual, utilizando pesquisa bibliográfica referente ao tema em artigos, periódicos e livros a respeito da temática.


A inclusão das mulheres nos quadros das Forças Armadas -da Marinha ao Exército Brasileiro.


Historicamente, as Forças Armadas -Exército, Marinha e Força Aérea -surgiram como instituições voltadas para garantir a defesa da Pátria. Constitucionalmente, consoante ao disposto no art. 142 da Constituição Federal da Republica Brasileira , as Forças Armadas são definidas a seguir:


Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.


Durante as grandes guerras ocorridas ao redor do mundo, a participação feminina em instituições militares passou a ser necessária, uma vez que as mortes decorrentes dos combates passavam a crescer exponencialmente (JUS, 2022). Desta forma, as mulheres passaram a desempenhar papel de importância para as nações durante o período de guerras, ocorrendo assim a migração do papel das mulheres de "donas de casa" para participantes frente aos combates militares no âmbito público, fora do ambiente privado/doméstico. Contudo, conforme destaca :


No Brasil, assim como se via em boa parte dos países ocidentais, as mulheres também passaram a ser inseridas no meio militar. Todavia, o processo que se deu no Brasil apresentou particularidades, uma vez que foi por fatores domésticos que ocorreu a principal motivação para tal feito. O processo de incorporação regulamentada das mulheres nas Forças Armadas brasileiras se deu a partir dos anos 1980, sendo a Marinha a primeira das Forças a permitir tal acesso.


Ressalta-se que a participação citada e datada de meados de 1980, corresponde à incorporação regulamentada, ou seja, com respaldo formal e legalizado. Entretanto, a primeira participação feminina registrada no Exercício Brasileiro ocorreu em 1823, quando Maria Quitéria de Jesus assentou praça em Unidade Militar e lutou pela manutenção da independência do . Deste modo:


"No Brasil, segundo a Enciclopédia Barsa, a mais antiga história que se tem registros é a da brasileira Maria Quitéria de Jesus Medeiros, natural da região de Cachoeira, Feira de Santana, na Bahia, em 1792. Por ocasião das lutas pela independência do Brasil, em 1822, não obtendo permissão de seu pai para alistar-se, fugiu de casa, disfarçou-se e alistou-se como homem num Regimento de Artilharia e depois serviu no Batalhão de Caçadores Voluntários do Principe D. Pedro I, passando a ser conhecida como Soldado Medeiros" ).


Aponta-se ainda que já há registros datados de 1943período da Segunda Guerra Mundial -do envio de 73 mulheres a Europa, dentre as quais 67 eram enfermeiras hospitalares e 06 especialistas em transporte aéreo. Mas, somente na década de 80 houve a institucionalização da participação feminina nas Forças Armadas, diante da criação do Corpo Auxiliar Feminino da Reserva da Marinha do Brasil e do Corpo Feminino da Reserva da Força Aérea Brasileira (BRASIL, 2022). Nota-se que a Marinha Brasileira foi a pioneira em conceder de forma legalizada a participação feminina, seguida pela Força Aérea. Enquanto o Exército Brasileiro, por sua vez, somente possibilitou o ingresso feminino na década de 90, ao abrir concurso público para a Escola de Administração do Exército (EsAEx).


A EsAEx -atualmente Escola de Formação Complementar do Exército (EsFCEx) -surgiu em 1988 visando preparar os recursos humanos voltados para a administração militar, afim de aprimorar os procedimentos na área administrativa. Em 1989, a Lei 7.831 de 02 de outubro de 1989 criou o Quadro Complementar de Oficiais (QCO), composto por pessoas de nível superior visando o desempenho de atividade complementares .


Somente em 1992 há a inserção das mulheres no Exército com a formação da Turma Maria Quitéria, com a matrícula de 49 mulheres, na qual, neste mesmo ano saíram formadas com a patente de 1º Tenente . Frisa-se que a inclusão das mulheres teria por finalidade suprir demandas nos campos administrativos e áreas técnicas.


Em estudo minucioso, apresentou importantes informações baseadas a partir do acompanhamento de uma turma de alunos no Curso de Formação de Oficiais do Quadro Complementar (CFO/QC) da Escola de Administração do Exército (EsAEx). Conforme a especialista em: "Considerando o ano de 1992 como marco da inserção feminina no Exército, neste ano de 2009 completa 18 anos de permanência feminina na instituição, o que faz com que exista mulheres do QCO no círculo de oficiais superiores. O gráfico abaixo mostra o número de mulheres e homens que fizeram o curso de formação desde o ano .


No entanto, o que chama a atenção são os dados obtidos a partir dos questionários aplicados pela autora, os quais demonstram que para as mulheres consultadas à época, a situação de convivência com o sexo exposto era diferente do ponto de vista inverso: O fato que nos chama atenção foi que enquanto 12,5% das mulheres consideraram a presença do sexo oposto como interferência negativa, 28,6% dos homens, ou seja, um número maior apresenta a mesma consideração. As respostas mais listadas entre homens foram: a cobrança tenderia a ficar amenizada pela presença das mulheres, haveria a propensão dos instrutores homens em favorecer as alunas, o entendimento de que as mulheres não teriam as mesmas capacidades/habilidades que um homem e de que não mantém reservas sobre alguns assuntos. Já, para as mulheres, a interferência negativa é com relação ao preconceito que sofrem nas funções de comando, e que são subestimadas em sua capacidade física e intelectual .


A pesquisa revela que aqueles oficiais que passam pelo Curso de Formação e convivem com as mulheres em turmas mistas possuem uma visão diferente daqueles que não passaram por esta convivência. Ressaltando que, a convivência proporciona a visão da heterogeneidade. Deste modo, homens reconhecem a importância das mulheres nos âmbitos trabalhistas, ainda que isto não enseje que não ocorram preconceitos pautados no gênero.


De suma importância destacar ainda que desde o primeiro ingresso oficial de mulheres no Exército Brasileiro em 1990 até 2011, as mulheres eram limitadas a participarem de funções voltadas para a área administrativa e técnicas -enfermagem, medicina, odontologia, direito, o que colocava em questão a necessidade da atuação feminina frente a linha militar.


Contudo, em 2012, a presidente Dilma sancionou a Lei n° 12.705 atendendo a uma demanda reprimida do público feminino para o ingresso na linha militar bélica do EB. Agora as mulheres podem ingressar na linha de ensino bélico da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e da Escola de Sargentos de Logística (EsSLog), limitando-se aos cursos de Intendência e Material Bélico. Vale lembrar que as mulheres ainda não podem realizar os demais cursos da linha militar bélica, ofertados pela AMAN (para formação de oficiais) e pela Escola de Sargentos das Armas -EsSA (para formação de sargentos). São eles: Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações (JUNIOR, 2022).


Então, todas as informações demonstram que dentre as Forças Armadas existentes, o Exército Brasileiro sempre fora a última a proporcionar a entrada do sexo feminino em seus quadros. Não há uma análise fechada do porquê tal fato ocorreu, no entanto, é válido que a presença feminina, mesmo que limitada às áreas administrativas, médicas e jurídicas demonstraram a necessidade de proporcionar uma heterogeinização dos quadros do Exército.


A prática da formação militar mista possibilitou a imbricação do conceito de gênero nas relações sociais entre os sujeitos militares (mulher e homem) que são construídos pela escola de formação militar, assim como na incorporação da mulher nos círculos hierárquicos que disciplinam a profissão e confere à militar todas as prerrogativas derivadas pelos postos e graduações ocupados ao longo de sua carreira .


As hipóteses construídas, tendo como fim sugerir explicações e possíveis respostas para a pergunta problema , assentam na explicação de que as participações das mulheres nas Forças Armadas brasileiras encontram suas maiores limitações quando se analisa as posições de comando e combate, uma vez que justificativas de ordem biológica, física e cultural são as mais apresentadas por aqueles que se mostram contrários a uma maior participação feminina no meio militar. Ou seja, a análise da mulher militar apenas como "mulher" e não como "militar" representa um limitante para uma maior participação delas, pois amparadas nas visões estereotipadas, que seguem padrões socialmente construídos, as mulheres são vistas como não pertencentes ao meio militar. Todavia, esse posicionamento muda quando se analisa a participação das mulheres em quadros complementares e de apoio, sejam temporários ou permanentes, visto que a condição "natural" da mulher segue esses padrões. Ou seja, a ocupação das mulheres em funções técnicas, administrativas e da área da saúde seriam aquelas que mais se adequam ao perfil feminino, sendo a sua participação nesses quadros mais aceita pela instituição militar .


Em seu estudo acerca das questões de gênero nas missões de paz e corporações envolvidas -ONU, Forças Armadas, Forças Policiais e o Itamaraty -a Prof. Renata Giannini coloca em um gráfico, de forma sintética, o histórico da participação femininas das forças armadas.


O estudo desenvolvido por , abre uma série de questões acerca de como a participação femininas nessas corporações se mostra fundamental para as missões de paz, especialmente em países que passam por grandes catástrofes ou encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade. A referida autora faz menção a Resolução 1325 da ONU, importante instrumento de 2000, que visa aumentar e igualar a participação de mulheres em processos de prevenção e resolução de conflitos.


No que tange às Forças Armadas:


No âmbito institucional, no entanto, as três forças armadas precisam implementar políticas pró-equidade de gênero, voltadas não somente a aumentar o número de mulheres incorporadas nas carreiras, mas também eliminar ou diminuir as barreiras para o ingresso em armas, especialidades e funções, particularmente referentes a comando e combate. Atualmente, o número de mulheres nas Forças Armadas brasileiras chega a pouco mais de 7%8 e a maioria é composta por médicas, enfermeiras, tradutoras, advogadas e intérpretes .


Cabe destacar que a Resolução 1325 (2000) introduziu a agenda de Mulheres, Paz e Segurança nas atividades do CSNU e constitui o marco principal para orientar a ação dos Estados Membros. Foi a primeira resolução do Conselho a destacar a necessidade de participação plena e igualitária das mulheres em todos os processos de prevenção e resolução de conflitos, promoção, manutenção e consolidação da paz. Salientou, igualmente, os impactos desproporcionais dos conflitos armados sobre mulheres e meninas e a consequente necessidade de se incorporar a perspectiva de gênero na proteção de civis .


Assim, partindo deste ponto de vista, a inclusão de mulheres nos quadros das Forças Armadas surgiu da premissa de melhorar a imagem daquelas instituições, diante da redemocratização pela qual o país passava. Este fator fica ainda mais claro quando percebese que a participação feminina ocorreu em tempos distintos em cada força. Não houve uma regulamentação geral. A Marinha foi a primeira, seguida pela Aeronáutica e por fim o Exército. Quanto a este último, as principais mudanças passaram a ocorre já no século XXI, após 20 anos da primeira turma de mulheres ingressantes em seus quadros.


Foi em 2012, através da Lei nº 12.075, sancionada pela então Presidenta Dilma Rousseff, que foi permitida o ingresso das mulheres nos cursos de formação de militares de carreiras, em especial para atuarem como combatentes, em áreas que antes eram restritas ao sexo masculino. Assim, as mulheres puderam participar do concurso para adentrarem aos quadros da ExSExc, posteriormente passaram para a Agulhas Negras e há a previsão da formação de 40 mulheres para o ano de 2021 (BBC, 2022). Logo mais, este histórico será abordado de forma mais profunda, uma vez que representa um grande marco para o histórico da participação feminina no Exército do país.


Outro importante aspecto é a ligação de como a inclusão das mulheres nas Forças Armadas pode influenciar a imagem de cada Estado no cenário internacional. A atuação das mulheres representa, além do avanço nas questões de gênero, uma forma estratégica na resolução de conflito exteriores. Ademais, é fato que a sensibilidade das mulheres pode vir a melhorar as missões, principalmente humanitárias promovidas pelas Forças Armadas, a exemplo daquela ocorrida no Haiti . Afinal, alguns países já se destacam pela inclusão de mulheres em seus quadros, a exemplo dos Estados Unidos.


A presença qualitativa (e quantitativa) das mulheres nas Forças Armadas nacionais tem relação direta com sua atuação nas forças de paz da ONU. A ausência de mulheres em posições de combate nas forças armadas brasileiras, em particular no Exército (que mais envia efetivos a missões de paz), significa que são poucas os militares (brasileiras enviadas a missões de paz e que nenhuma delas estaria em contato com a população local exercendo atividades de proteção. A exceção são as que atuam na área de saúde, principalmente, que têm algum contato com a população durante atividades civil-militares em locais como o Haiti .


No entanto, apesar de todas as conquistas e inclusões até o presente momento, é fato que ainda há uma desigualdade dentro dos quadros militares. Poucas mulheres alcançam altas patentes e há uma clara distinção entre ser militar e ser mulher. Assegurar a inclusão de mulheres nos quadros militares não ensejou, automaticamente, uma igual de gênero. Impiedoso lembrar que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe, no que tange aos direitos e garantias fundamentais em seu art.5º:


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I -homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição (BRASIL, 2022).


Neste escopo, o trabalho desenvolvido por debate acerca das consequências da lógica de dominação e divisão sexual do trabalho dentro das Forças Armadas Brasileiras. Seguido a lógica abordada pela autora, podemos inferir que a questão de gênero dentro das forças armadas não está ligada tão somente à disponibilização de vagas em seus quadros, mas perfaz uma questão ainda mais complexa envolvendo uma abordagem social.


A imagem das mulheres -comumente chamadas de sexo frágil -vem de uma construção social que acabou por dividir homens como pessoas dominadoras -e chefes de famíliaenquanto as mulheres seriam responsáveis pelos cuidados dos lares, pela parte afetiva e sentimental no âmbito familiar. Assim, a imagem da mulher seria inerente a um ser frágil, emotivo e que tende sempre a propor mais diálogos entre si. É esta imagem então que é transmitida as corporações e aqueles que irão conviver com mulheres no meio de trabalho.


Logo, suscita-se a definição de Divisão Sexual do Trabalho:


A divisão sexual do trabalho é a divisão de atribuições, tarefas e lugares sociais para mulheres e homens, decorrentes das relações sociais de sexo. Essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade e tem por característica a destinação prioritária dos homens a atividade produtivas (ocupações de forte valor social agregado, como comércio, indústria, empreendimentos e na política) e a mulheres à esfera reprodutiva (atividade relacionadas a cuidados e afazeres domésticos). Essa divisão repercute fortemente nos cargos e funções ocupados pelas mulheres e em seus rendimentos, já que são destinadas às mulheres principalmente tarefas e ocupações que remetem a cuidado e serviços que são menos valorizados socialmente (SECRETARIA, 2022).


Logo, há uma organização seguindo dois princípios: separação e hierarquia. Segunda , o primeiro mantém o homem na esfera pública (produtiva) e a mulher na esfera privada (reprodutiva); enquanto o segundo atribui maior valor ao trabalho do homem em relação ao da mulher.


Bem, hierarquia é um dos grandes pilares dentro da lógica das Forças Armadas, conforme nos indica o art. 142 da CF. Assim, considerando que atualmente a maior parte das mulheres presentes no Exército Brasileiro está de forma temporária, é por lógica que em grande parte do tempo estarão em posição inferior. Afinal, as patentes mais altas são ocupadas por homens, o que reforça a desigualdade de oportunidades ao longo dos anos. De fato, busca-se uma isonomia entre homens e mulheres dentro das Forças Armadas como um todo, entretanto, também é notório que tais mulheres levarão anos -ou até décadas -para atingirem altas patentes.


Outra problemática encontra-se voltada para a questão sociológica do "ser mulher". Em profundo estudo realizado por Giannini; Folly e Lima (2022) e publicado pelo Igarapé Institute, as pesquisadoras apontam que ao adentrarem nos quadros das Forças Armadas, as mulheres passam a lidar com questões de gênero que há séculos são debatidas. O fato de serem mulheres, a adequação ao meio majoritariamente masculino, precisam lidar com a família, com o pré e pós gravidez e principalmente, notam que às vezes ainda se encontram em posto inferiores .


Com efeito, a pesquisa realizada mostrou que muitas das dificuldades enfrentadas por mulheres que optaram pela carreira militar são também compartilhadas por mulheres civis. Incluem, por exemplo, a expectativa social sobre seu papel diferenciado como mãe e esposa, as dificuldades de reinserção após a maternidade, e a associação entre fragilidade, sensibilidade e emoção à mulher, o que insere desafios extras para que possam ascender na carreira (IGARAPÉ INSTITUTE, 2022).


Desta forma, garantir que as mulheres ingressem de forma igualitária nos quadros do Exército Brasileiro tornou-se uma questão que suscita o debate acerca do direito de igualdade entre os gêneros nas Forças Armadas.


Formas de ingresso das mulheres no Exército Brasileiro: O marco histórico trazido pela Lei nº 12.075/2012 e o ano de 2022.


Atualmente, não há serviço militar obrigatório para as mulheres -conforme é previsto na Constituição para os homens, mas há a oportunidade das mesmas servirem de forma voluntária, dividindo-se entre militares de carreira ou temporariamente. Para as mulheres que visam a carreira como militares, a forma de ingresso pode ser feita através da participação nos concursos para seguintes as escolas militares: Escola de Formação Complementar do Exército (EsFCEx), Escola de Saúde do Exército (EsSEx), Instituto Militar de Engenharia (IME) e Escola de Sargentos de Logística (EsSLog) (BRASIL, 2022).


Em casos de ingressos para participação temporária, a mulher deverá buscar as seleções que são realizadas pelas Regiões Militares.


Como apontado anteriormente, somente após a sanção da Lei nº 12.075/2012 foi permitido a participação feminina em concurso voltados para as escolas preparatória para a atuação na parte bélica:


O Concurso de Admissão da EsPCEx é a única forma de ingresso para a carreira de Oficial Combatente do Exército e este ano ofereceu 450 vagas para matrícula em 2022, sendo 400 para sexo masculino e 50 para sexo feminino. Continuou valendo, em atendimento à Lei nº 12.990/14, a reserva 20% das vagas do concurso para negros, portanto, foram reservadas, dentre as vagas citadas, 80 para o sexo masculino e 10 para o sexo feminino (BRASIL, 2022).


Outro ponto de destaque: a inclusão das mulheres nos quadros da EsPCEx não significou total abertura para a participação feminina. Com a aprovação satisfatória, após 46 semanas de curso, o segundo passo é o ingresso na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Na referida academia, as mulheres que compõe a primeira turma poderão escolher entre Intendência e Material Bélico. Por outro lado, aos homens é assegurado que escolham entre as especializações de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia, Comunicações, Intendência e Material Bélico (BRASIL, 2022).


Isso representa uma limitação para as alunas do sexo feminino. Representa e reforça que a inclusão das mulheres nos quadros terrestres será gradual e levará anos para que homens e mulheres possam chegar a altas patentes de forma igualitária. Novamente, um lapso temporal que poderia ser evitado, mas que ao contrário, reforça uma desigualdade de oportunidades dentro da corporação.


Contudo, é notório que houve uma preparação e atenção a igualar os tratamentos -ao menos durante o curso de formaçãoentre os homens e as mulheres. Conforme informado pelo próprio Exército, na EsPCEx, rapazes e moças terão a mesma rotina de estudos e práticas, que inclui técnicas militares, como ordem unida, regulamentos e normas do Exército, armamentos, topografia e orientação, idiomas e treinamento físico .


Além da abertura da primeira turma mista na EsPCEx, o ano de 2022 também trouxe importante acontecimento: a promoção das primeiras coronéis do Exército. Após vinte e cinco anos, as primeiras ingressantes do Exército alcançaram a patente de Coronel. Como é notável, a progressão na carreira militar é longa, o que levanta o debate acerca de quanto tempo será necessário para que as mulheres da primeira turma na EsPCEx levarão para alcançar altas patentes.


Assim, por todo o exposto, é possível considerar que a inclusão das mulheres nos quadros do Exército Brasileiro representou um importante avanço para a trajetória da luta feminina em busca da igualdade de gênero. Contudo, o avanço ainda não garante que na prática há de fato uma igualdade, pois conforme apontado, ainda serão anos para que homens e mulheres estejam em patamares iguais dentro do Exército.


Considerações finais.


A sanção da Lei nº 12.075/2012 foi um marco para a participação feminina dentro dos quadros do Exército Brasileiro, ao permitir que as mulheres possam prestar concurso para as escolas preparatórias voltadas para a atuação bélica. No entanto, apesar das conquistas alcançadas, o cenário de desigualdade de gênero ainda persiste, pois incluir as mulheres de forma tardia resultou em diferentes níveis de oportunidades.


Enquanto os homens já ocupam altas patentes e cargos no Exército, no que tange a parte bélica, somente em 2021 teremos as primeiras mulheres aptas a percorrem este caminho. Ademais, é de suma importância destacar que as questões sociais são grandes fatores a influenciar o desempenho das mulheres neste caminho. O ser militar e ser mulher por vezes se embatem e geram conflitos de ordem social.


Logo, afirma-se que a questão de gênero em relação aos quadros do Exército perfaz questões e debates mais complexos que serão ensejam estudos capazes de abordar ainda a lógica de dominação e a divisão sexual do trabalho. Disponibilizar as vagas para a atuação na frente bélica representou um importante passo dentro de uma longa estrada que está em desenvolvimento.


Deveras, ter representação feminina dentro das Forças Armadas como um todo -cada uma em tempo diferente e de maneiras diferentes -traz à luz que mesmo após anos e anos de debates e lutas pela igualdade de gênero, alguns setores caminham a curtos passos. Assim, o direito de gênero e a luta feminina por oportunidades iguais continuam em um percurso sem previsão de término, mas que aos poucos apontam e fazem grandes mudanças.


PERSPECTIVAS DE DISCRIMINAÇÃO SOBRE ORIENTAÇÃO HOMOSSEXUAL NAS FORÇAS ARMADAS BRASILEIRAS.


Silvia Rafaela Demétrio Costa Douglas Verbicaro Soares.


Considerações iniciais.


D iante da persistência de obstáculos estruturais que reforçam práticas preconceituosas e discriminatórias dentro das Instituições Militares Brasileiras, unida à escassez de estudos que deem maior visibilidade ao tema, a presente investigação tem por objetivo dar ênfase às questões enfrentadas por pessoas homossexuais nas Forças Armadas no país. Nesse viés, propõe-se o levantamento do questionamento social a respeito das diversas opressões sofridas por pessoas homossexuais nessas instituições de defesa nacional, essencialmente regidas pelo imperativo categórico do heteronormativismo e do ideário masculino restrito.


Nesse sentido, o presente estudo visa retratar como a homossexualidade é vista nesse contexto militarizado. Para o estudo foram realizadas algumas indagações: Qual é a situação enfrentada por pessoas homossexuais nas Forças Armadas Brasileiras? No que os argumentos discriminatórios são embasados? Há algum impedimento legal para a participação de pessoas homossexuais nas Forças Armadas? Como o Brasil lida com a pauta e qual o posicionamento de outros países em relação a essa problematização da homossexualidade?


Para que os objetivos e respostas para os questionamentos fossem alcançados, foi trabalhada uma pesquisa multidisciplinar, de modo amplo, explorando pontos de aceitação e de exclusão no ingresso e permanência de pessoas homossexuais em instituições militares. Igualmente, para o trabalho foi utilizado, majoritariamente, o método dedutivo, além de pesquisa bibliográfica e documental.


O trabalho foi dividido essencialmente em quatro partes. A primeira delas destina-se a situar o leitor a respeito de como é vista a homossexualidade na esfera militar. Por sua vez, a segunda parte evidencia a intolerância vivida por pessoas homossexuais nas Forças Armadas. Para a terceira parte, foi pensada a exposição de dispositivos legais que possam ou não reforçar a discriminação desse grupo. Por fim, a quarta parte dispõe sobre dinâmicas de aceitação e políticas adotadas em países a favor da incorporação de militares homossexuais, seguidas das considerações finais e referências.


A homossexualidade no âmbito militar brasileiro.


No presente tópico busca-se retratar como é vista a homossexualidade no âmbito das instituições militares. Notória é a problemática vivida por pessoas homossexuais na esfera das Forças Armadas, onde a sua existência/visibilidade vive baixo constante negação por parte de inúmeros militares. Por esta razão, é viável o contraponto de explicitar no estudo os relatos de quem vive a realidade do cerceamento motivada por pertencer a uma diversidade sexual, ou seja, distinta da heterossexual dominante, fator que impede que militares homossexuais possam expressar suas sexualidades em dignidade enquanto pessoas humanas.


Mesmo em um contexto contemporâneo, onde temas como a homoafetividade são cada vez mais debatidos socialmente no Brasil, a homossexualidade ainda é vista através de tabus e estereótipos, pela simplória justificação de se distinguir do padrão heterodominante, supostamente natural e excludente, transmitido secularmente por uma forte ideologia judaico-cristã no . Ainda que a sociedade de modo geral tenha apresentado progressos no respeito e aceitação da diversidade sexual, a participação de pessoas homossexuais em atividades militares continua sendo razão de um preconceito infundado, fator que comprova a incidência de obstáculos velados à própria liberdade sexual dentro das Organizações Militares.


Quanto aos problemas narrados, na maioria dos casos, os mesmos reforçam estereótipos preconceituosos que a presença de pessoas assumidamente homossexuais representaria, por exemplo: uma hipotética quebra aos pilares da hierarquia e da moral impostos pela instituição . Em contrapartida, há repressão aos comportamentos identificados como afeminados, ou que representem algum tipo de ameaça aos temas da disciplina e hierarquia no âmbito militar. Nesse contexto é importante recordar que a imagem supostamente esperada de um integrante das Forças Armadas de um país é idealizada entre hinos da instituição como um "homem forte, viril", sendo uma pessoa homossexual considerada (por muitas pessoas) como o contrário desse ideal, portanto sua aceitação acaba sendo questionada.


A respeito disso, José Fontenele (2022) aponta que:


Cria-se uma expectativa de que o militar será um homem másculo, duro, ríspido, intransigente e sem resquícios de sentimentos que não pode apresentar comportamentos considerados socialmente femininos tanto na esfera pessoal como profissional. Um homem gay, em sua forma mais estereotipada, seria então o completo oposto do homem militar: ele gesticula, tem a voz afeminada e demonstra seus sentimentos livremente, sendo assim considerado inapto para servir às forças de defesa do seu Estado simplesmente pelo seu comportamento e preferências sexuais .


Além da imagem estereotipada, esse grupo enfrenta ainda o preconceito daqueles que, ainda hoje, argumentam que com a presença de pessoas homossexuais desenvolver-se-ia o assédio sexual ao restante do grupo, de maioria heterossexual. Fato completamente descabível e sem comprovação, uma vez que o combate ao assédio independe da orientação sexual do indivíduo, e deve ser punida e evitada em qualquer aspecto. Portanto, a presença de uma pessoa homossexual não deveria ensejar esse tipo de questionamento.


Discriminação velada vivenciada em Instituições Militares Brasileiras.


Mesmo que não demonstrada de forma explícita, a intolerância geralmente ocorre cotidianamente na caserna. A discriminação costuma ser justificada com argumentos de ordem moral e religiosa, uma vez que a homossexualidade, em praticamente todas as partes da América Latina, ainda é vista como desvio ou depravação moral, uma doença, uma anomalia ou indignidade social .


De modo geral, segundo Costa e Biar, a perseguição ocorreria de maneira velada. Em seus estudos, afirmam as autoras que: esse tipo de perseguição pode ser definido como uma sanção profissional aplicada por um superior a seu subordinado por razão aparentemente não relacionada à discriminação sexual, embora esteja claro para esse subordinado que se trata disso (COSTA; BIAR, 2022, p. 413). Os motivadores podem partir da assumida opção sexual divergente da maioria, ou até mesmo por performances sexuais e identitárias (COSTA; BIAR, 2022, p. 413), mesmo que não assumidamente gay. Além disso, os autores destacam ainda que há ocorrências de assédio moral, violência física e até mesmo desligamento desses membros.


As narrativas daqueles que são contrários à integração e permanência de pessoas que mantêm relações homoafetivas e que seguem carreira militar (ao mesmo tempo) resumem-se a opiniões revestidas de preconceito, sem fundamentação científica mínima. Dentre as falhas alegações, é comum o argumento de que pessoas homossexuais não seriam capazes de controlar impulsos sexuais, causando temor à integridade física e moral dos demais integrantes .


Um nítido exemplo de fala intolerante dá-se a seguir:


Com mais este passo dado em relação à liberalização sexual dentro das Forças Armadas, seria compelido a lutar contra o serviço militar obrigatório. Nenhum pai estaria tranquilo ao saber que seu filho, durante cinco dias de acampamento, foi obrigado a dormi numa minúscula barraca com um recruta homossexual sem poder reclamar, pois se assim procedesse seria punido por crime de discriminação sexual! (PEREIRA, 2011).


Tais argumentos frágeis são desfeitos ao passo que os países que decidiram por aderir a um posicionamento de aceitação de pessoas homossexuais, permanecem ainda com tal decisão, uma vez que a orientação sexual em nada influencia a competência e capacidade de um indivíduo no exercício da carreira militar. Assim, comprova-se de forma prática que a presença de pessoas homossexuais não influencia negativamente o padrão das atividades desenvolvidas, e que isso se resume a uma falácia.


No mesmo contexto da fala preconceituosa supramencionada, discursos intolerantes insinuam ainda que pessoas homossexuais representam um perigo para a coesão do grupo. Sobre esse argumento, Rocha (2022) traz em sua obra o posicionamento de Robert Maccon, que em 1993 realizou estudo crítico a respeito da permanência de pessoas homossexuais na atividade militar, e como isso afetaria a coesão do grupo.


De acordo com a pesquisa do autor, desnecessária seria a necessidade de nutrir simpatia por alguém para que se trabalhe com essa pessoa . A ausência dessa simpatia, para Maccon, seria a relação de hostilidade que a intolerância causa entre os membros, promovida pelo preconceito. trata da falta de interesse da gestão militar em "gerir a diversidade" em pleno século XXI:


A discriminação, sim, é perniciosa e disfuncional para a estabilidade do contingente e para a realização de tarefas coletivas, minando, por conseguinte, a coesão, a eficiência e o desempenho da missão. Do ponto de vista da definição de políticas de comando, "gerir a diversidade", mais do que assegurar a homogeneidade, constitui o grande desafio posto aos comandantes das Forças na gestão de pessoal nesta contemporaneidade .


Todavia, notório é o desinteresse de entidades superiores de assumir que persistem tais práticas discriminatórias para que providências sejam tomadas. Posicionando-se de maneira negacionista em diversos processos administrativos, os órgãos responsáveis pela resposta jurídica do Estado alegam "ausência de interesse subjetivo" das partes que cobrem posicionamentos ou medidas que coíbam a perpetuação de práticas homofóbicas dentro das Forças Armadas.


Destarte, apresentam inclusive a alegação constante de "não existência de objeto passível de análise pela Consultoria Jurídica" para que o assunto permaneça sob negação. Portanto, diante do apresentado, ressalta-se que a falta de posicionamento e comportamento omissivo das entidades brasileiras contribuem para a persistência da intolerância.


Dispositivos legais: o reforço da intolerância na norma.


Diante do tema, retoma-se o questionamento levantado anteriormente: Há algum impedimento legal para a participação de pessoas homossexuais nas Forças Armadas? Não, não explicitamente.


Entretanto, mesmo que não existam dispositivos legais que proíbam a integração ou permanência de pessoas homossexuais às Forças Armadas, no que diz respeito à questão legal, ainda existe o artigo 235 do Código Penal Militar (CPM), intitulado de "Crime de Pederastia ou outro ato de libidinagem", que vigora: Praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique, ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito à administração militar. Pena -detenção, de seis meses a um ano .


O artigo 235 do Código Penal Militar, ao longo dos anos, continua sendo alvo de críticas. Mesmo que não seja aplicada exclusivamente a atos homossexuais praticados em locais da esfera militar, a plataforma GLBTQ (2022) explica que a expressão "Pederastia", na antiguidade, referia-se a relações homossexuais entre um homem e um adolescente. Porém, atualmente, o mesmo termo que intitula o artigo 235 do CPM seria utilizado para se referir a qualquer relação entre indivíduos do mesmo sexo, independentemente da idade.


No julgamento da ADPF 29, o STF (Supremo Tribunal Federal) deferiu parcialmente a ação contra o artigo 235 do CPM, para que fossem excluídos os termos "pederastia" e "homossexual ou não", uma vez que essa diferenciação apenas contribui para a manutenção da intolerância já sofrida nesse âmbito. Na ementa da decisão, lê-se:


Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados (STF, 2022, p. 1).


A tipificação do artigo 235 do Código Penal Militar afronta o princípio básico da intervenção mínima, uma vez que é uma norma incriminadora desnecessária. Não porque a prática sexual entre qualquer gênero em âmbito militar seja aceitável, mas sim por esse tipo de problemática dever ser resolvida no âmbito administrativo. O entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso, que apresentou inicialmente voto pela total procedência do pedido, explica:


Para o Ministro, a redação do artigo 235 do Código Penal Militar criminaliza o sexo consensual entre adultos, desde que ocorram em duas circunstâncias: o agente seja militar e o ato ocorra em lugar sujeito à administração militar. Barroso citou que, na literalidade, o dispositivo criminaliza tanto atos homossexuais como heterossexuais. "A prática de ato sexual ou de atos libidinosos, ainda que consensuais, no local de trabalho, pode e frequentemente constituirá conduta imprópria, seja no ambiente civil ou militar, e no direito é um comportamento sancionado". Barroso destacou ainda que há, no dispositivo impugnado do Código Militar, uma criminalização excessiva e citou que o direito penal constitui o último e mais drástico instrumento a ser utilizado pelo Estado. A criminalização das condutas só deve ocorrer quando seja necessário, e quando não seja possível, proteger adequadamente o bem jurídico por outra via. Esse é o princípio da intervenção mínima do direito penal (GENJURIDICO, 2022).


O jurista Gustavo Nucci (2022), responsável pela matéria na plataforma GenJurídico, segue o mesmo entendimento acerca do tema. Para ele, o direito penal é a última opção para compor conflitos, corroborando com o entendimento supramencionado Verbicaro Soares (2022, p. 636) atesta que:


Hemos estado, en los últimos años, evidenciando que el artículo 235 del CPM no está actualizado y necesita un cambio estructural, urgente, de modo a adecuarse a las exigencias democráticas de trato igualitario y poner de una vez por todas, la incidencia de tratos discriminatorios hacia a las personas, motivado por orientación sexual.


Portanto, muitos são os desafios para o combate às práticas de preconceito e discriminação contra a homossexualidade no Brasil, em especial no que diz respeito à incidência de preceitos normativos, como o artigo 235 do Código Penal Militar de 1969, que promovem a desigualdade e o não respeito à diversidade sexual existente. Combater a vigências desses preceitos é fundamental para mudanças de paradigma e a para a construção de ações que viabilizem a aceitação/integração de pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade, em especial os homossexuais no âmbito das Forças Armadas.


Dinâmicas de viabilização da integração de pessoas homossexuais e políticas de enfrentamento à intolerância É de suma importância ressaltar que a adoção de políticas que promovam o enfrentamento da intolerância melhora muito além do "bem estar" da minoria sexual em questão. É direito fundamental de a pessoa humana exercer qualquer atividade, laboral ou não, com dignidade, sem ser submetida ao assédio moral ou a questões de violência encoberta.


Nos estudos , fazse menção ao primeiro relatório global apresentado em 2022, sobre o Índice Militar LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), organizado pelo Centro de Estudos Estratégicos de Hague. Estudo este que evidenciou o tratamento ainda diferenciado quando se trata de questões de gênero e sexualidade nas Forças Armadas. No mesmo sentido:


A maioria dos trabalhos enfoca o impacto negativo da presença de homossexuais nas Forças Armadas. O nosso foi solicitado pelo Ministério da Defesa da Holanda, o primeiro a aceitar gays em suas fileiras há quarenta anos, e queríamos abrir o debate sobre os aspectos positivos de sua contribuição. As Forças Armadas do século 21 precisam recrutar pessoas com base em talentos e habilidades, não em sua orientação sexual. É claro que uma pessoa que se define como parte do grupo LGBT trabalhará melhor se sentir aceita e não houver segredos sobre sua situação. Da coesão resultante, sem ameaças de chantagem ou problemas de segurança pessoal, todos se beneficiam (EL PAÍS, 2022).


O Canadá, que é um dos países que mais se destaca nesse relatório pela inclusão de pessoas assumidamente homossexuais ao seu posto militar, representa forte exemplo. Dentre diversas polêmicas que envolviam o antigo posicionamento adotado pelo exército canadense em casos de homofobia, diversos casos foram levados a julgamento na Suprema Corte do país .


Diante disso, reconhecendo o comportamento homofóbico dentro das tropas como um verdadeiro problema que violava os direitos básicos daqueles indivíduos, promovendo uma exclusão sem menor fundamento lógico que não fosse o preconceito, o Canadá passou a trabalhar cada vez mais esse aspecto. De acordo com a plataforma ViajaBi (2022), foi no ano de 1992 que o Tribunal Federal Canadense suspendeu o banimento de gays e lésbicas nas forças armadas e permitiu que eles pudessem viver com seus pares em bases militares.


Além de políticas que envolvem a promoção da diversidade e apoio a esses, como palestras e debates sobre o respeito e inclusão, uma das medidas adotadas no Canadá foi o processo de reparação, como demonstrado: O primeiro-ministro Justin Trudeau pede desculpas à comunidade LGBT+ na Câmara dos Deputados e o processo de reparações começam. A "Seção 159" seria revogada. Erros da purga que aconteceu entre as décadas de 1950 e 1990 e resultou em registros criminais de indivíduos, seriam corrigidos pela destruição de tais arquivos. Funcionários públicos e militares que perderam seus meios de subsistência por conta da política discriminatória baseada na orientação sexual participarão de um acordo de 110 milhões de dólares canadenses em uma ação coletiva (VIAJABI, 2022).


Contudo, não bastam apenas formas de educação. Em cenários de persistência da intolerância, urgem medidas que coíbam tais atos. Nas instituições militares canadenses, por exemplo, adotam-se diversas estratégias:


Algumas dessas alternativas baseiam-se na criação de instrumentos de fiscalização dos casos de infração denunciados, ou seja, geração de departamentos específicos para receber as denúncias, estudá-las, acompanhá-las ou não, aplicando rígidas normas regulatórias para punição dos culpados nos casos em que são detectados assédios, humilhação, violência física, psicológica etc. Os instrumentos previstos pelas Forças Armadas Canadenses parecem oferecer as condições necessárias para lidar com casos problemáticos e a estrutura desenhada e tornada visível para que os militares sejam motivados a denunciar casos de violação de direitos ).


Em contraponto, nem todos os modelos internacionais são de aceitação. Países como a Turquia ainda definem a homossexualidade no novo código de infração dos militares como "contato anormal" e está na lista dos piores descumprimentos, com punição prevista (EXAME, 2012).


Esses posicionamentos de rejeição, embasados em argumentos justificados pela religião, costumes morais e culturais precisam ser desconstruídos, uma vez que não se pode permitir que os direitos dos homossexuais continuem sendo violados seguidamente em tantos aspectos.


Considerações finais.


A presente investigação, permeada de questionamentos acerca das razões pelas quais pessoas homossexuais devem ou não ser aceitas no serviço militar, finda por compreender que a orientação sexual do indivíduo não influencia no desempenho de qualquer atividade laboral, inclusive no serviço militar. Portanto, esse grupo deve ser respeitado e cada vez mais ouvido, uma vez que a perseguição ocorre de forma velada.


Em contraponto, a pesquisa identificou e deu ênfase aos posicionamentos contrários à integração dessas pessoas às Forças Armadas. Entretanto, por identificar experiências positivas de diversos países que acolheram e deram voz a esses grupos. Além da aceitação, esses países promovem políticas de enfrentamento à intolerância, punindo ações discriminatórias, ao mesmo passo que reconhecem a diversidade.


Diante das realidades apresentadas, o estudo conclui pela necessidade de dinâmicas de viabilização da integração dessas pessoas. Além disso, faz-se importante também o levantamento dessa pauta, promovendo o questionamento social em torno dos estereótipos em que se ancoram tantos argumentos intolerantes que reforçam uma espécie de apartheid social. Assim, busca-se o exercício da atividade militar de forma livre de preconceitos, discriminações, tabus e não aceitação/integração sociais motivados por orientação sexual no Brasil.


A sensibilização para os temas de Direitos Humanos e diversidade sexual no país é necessária para mudanças na compreensão de que uma orientação sexual, no caso do estudo a homossexual, não deverá ser usada como fator limitador no desempenho de qualquer atividade profissional, muito menos na militar. Ser homossexual, heterossexual ou de pertencer a qualquer outra variante da sexualidade apenas atesta a existência de um pluralismo de pessoas dignas de respeito e acesso aos mesmos direitos e oportunidades.


Douglas Verbicaro Soares -Doutor em Pasado y Presente de los.


Derechos Humanos e Mestre em Estudios Interdisciplinares de Género en la Especialidad Jurídica, ambos pela Universidade de Salamanca (USAL/Espanha). Integra como pesquisador os grupos de pesquisas (CNPq): Núcleo de Estudos e Pesquisas Ovelário Tames/NEPOT (UFRR); Consumo e Cidadania (UFPA) e Consumo Responsável e Globalização Econômica (CESUPA). Atua como Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica e Direitos Humanos (NPJDH) na Universidade Federal de Roraima, do Curso de Doutorado em Direito (Dinter UERJ/UFRR) e, também, do Laboratório de Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade (LADIHGES) da UFRR. É professor do magistério superior do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima UFRR). E-mail: douglas verbicaro@yahoo.com.br Gabrielle Keller Sanches Pereira -Graduanda em Direito pela Faculdade Faci/WYDEN. Coordenadora Geral do Centro Acadêmico de Direito João Messias -CADJOM. E-mail: gabrielleksp@gmail.com José Luis Domínguez Álvarez -Personal Investigador en Formación (FPU17/01088) del Área de Derecho Administrativo de la Universidad de Salamanca, especializado en el estudio de la protección de datos de carácter personal ante la (r)evolución digital, la modernización de las Administraciones públicas, el desarrollo rural sostenible y la España vaciada, así como en la implementación de políticas públicas de igualdad y lucha contra la violencia de género. Premio extraordinario de acceso a la Universidad de Salamanca y Premio extraordinario del Grado en Ciencia Política y Administración Pública (mención Administración Pública) del Estudio Salmantino. Dispone de una quincena de artículos, numerosas contribuciones en obras colectivas y es autor de dos monografías. En la actualidad es estudiante del Programa de Doctorado "Administración, Hacienda y Justicia en el Estado Social" de la Universidad de Salamanca, desarrollando las labores conducentes a la culminación de su tesis doctoral bajo el título "Cambio de paradigma en la protección de datos de carácter personal y su interrelación con la Sociedad Digital". E-mail: jldol@ usal.es Julieta Evangelina Cano -Abogada, FCJyS, UNLP. Doctora en Ciencias Sociales, FaHCE, UNLP. Asesora del Ministerio de las Mujeres, Políticas de Género y Diversidad Sexual de la Pcia. de Buenos Aires, Argentina. Master en estudios interdisciplinares de género (U. Salamanca). Máster en Derecho (U. Palermo). Máster en Investigación aplicada en estudios feministas, de género y ciudadanía (U. Jaume I). Diplomada en Géneros, políticas y participación (UNGS). Docente de sociología jurídica, FCJyS, UNLP. Docente de Elementos de sociología y Estudios de género y derecho (IUPFA). Investigadora del Instituto de Cultura Jurídica FCJyS UNLP, categoría 4. Secretaria de la Especialización de posgrado en el Abordaje de las violencias interpersonales y de género, FCJyS, UNLP. Instituto de Cultura Jurídica, Universidad Nacional de La Plata, Argentina. E-mail: cano.julieta@gmail.com Lays Soares dos Santos Rodrigues -Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA), Mestra em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Advogada.


María Ángeles González Bustos -Profesora Titular de Derecho Administrativo de la Universidad de Salamanca. Entre las líneas de investigación se encuentran: Patrimonio de las Administraciones Públicas, Consumo, Relaciones interadministrativas, Igualdad y no discriminación, Administración Local, Urbanismo y Sostenibilidad, Medio Ambiente y Cambio Climático, Derechos de los ciudadanos, Información y Transparencia, Calidad normativa, Servicios Públicos, calidad alimentaria, contratación del sector público, sostenibilidad y mundo rural… Estas líneas de investigación se plasman en las numerosas contribuciones en Revistas Indexadas, así como publicaciones en las editoriales de prestigio nacional e internacional tanto de libros como de colaboraciones en libros (capítulos de libro). Es de destacar su.

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