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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Centro de Letras e Comunicação Programa de Pós-Graduação em Letras Dissertação Gênero, riso e violência: um olhar discursivo para o humor de Danilo Gentili.


Agradeço à minha orientadora Luciana Vinhas pelo cuidado e generosidade (intelectual e afetiva) com que me conduziu nesse processo de construção da pesquisa.


Agradeço às professoras e professores que me conduziram até aqui.


Agradeço em especial à professora Aracy Ernst pela apresentação à teoria materialista do discurso.


Agradeço às professoras Aracy Ernst e Rosely Machado por constituírem a banca de qualificação deste trabalho e por contribuírem com suas arguições para meu crescimento como pesquisadora.


Agradeço aos colegas pela companhia, pelas discussões teóricas e pela amizade construída durante esse percurso.


Agradeço à minha família pela paciência que tiveram comigo na reta final da escrita e, ao mesmo tempo, lhes dedico este trabalho em reconhecimento aos momentos em que os privei de minha companhia por necessidades acadêmicas.


Agradeço, especialmente, à minha mãe e irmãs por todo carinho e suporte, nelas encontro sustentação para seguir adiante.


Agradeço ao Julian pela companhia e pelo apoio, por ser um ponto seguro de sustentação frente aos problemas que surgem na vida.


Agradeço à CAPES pela bolsa de estudos concedida.


Introdução.


A presente pesquisa surge da necessidade de colocar em debate as práticas de opressão e exploração que constituem as relações de gênero em nossa sociedade. Neste trabalho, efetuamos um recorte das diversas identificações de gênero para focarmos a opressão do gênero hegemônico sobre as mulheres. No que concerne às relações de gênero, os séculos XX e XXI caracterizaram-se pelo ineditismo da elaboração de movimentos feministas, cuja pauta principal consiste na mobilização da sociedade pela eliminação da discriminação de gênero. Tais movimentos foram fundamentais na conquista de direitos vitais para as mulheres, como a institucionalização do sufrágio universal, o direito a métodos contraceptivos e o reconhecimento da violência contra a mulher como uma violação dos direitos humanos. Esta, por se dar majoritariamente no âmbito privado, não era entendida como um problema do poder público, mas sim um problema doméstico particular e familiar.


A partir da responsabilização do Estado frente ao problema da violência contra as mulheres, mudanças estruturais foram desencadeadas, resultando em leis, delegacias e centros especializados no atendimento às mulheres. Em âmbito legal, uma conquista importante na busca pela erradicação desse tipo de violência foi o decreto nº 1.973 do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em 1996. Este tratava da promulgação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, ocorrida em Belém do Pará no ano de 1994.


De acordo com o artigo 1° da Convenção, é considerada violência contra a mulher "qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada" . Na busca pela eliminação da violência contra a mulher criaram-se instrumentos com vistas à proteção das mulheres e seus dependentes e à punição aos perpetradores da violência. Nesse sentido, temos, como marco legal no país, a criação da Lei nº 11.340, sancionada em 2006 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A Lei 11.340 é nominada como Lei Maria da Penha em homenagem a Maria da Penha , sofreu duas tentativas de assassinato por parte de seu marido: a primeira resultou em uma paraplegia em decorrência de um disparo de espingarda enquanto dormia, e, na segunda tentativa, Maria foi submetida a eletrocussão. Em 1983, fazia apenas cinco anos da promulgação da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77), e o processo era muito vagaroso; no entanto, diante do risco de vida que a mulher sofria, foi-lhe permitido judicialmente afastar-se do convívio com o agressor sem caracterizar abandono de lar, isso para Sobre a efetividade da Lei Maria da Penha, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) 1 apontam para a diminuição de cerca de 10% na taxa de feminicídios praticados dentro das residências das vítimas no ano de 2022. Ainda segundo a instituição, para a investigação da efetividade de uma lei é necessário contrapô-la a um cenário de inexistência; referindo à Lei Maria da Penha, o Instituto alega que os números de homicídios de mulheres seriam muito maiores em um cenário de inexistência desta.


Mais recentemente, em março de 2022, foi sancionada pela ex-presidenta Dilma Rousseff a Lei nº 13.104, conhecida como a Lei do Feminicídio. Esta visa distinguir o crime de assassinato de mulheres motivado pela condição de gênero do 1 Informações disponíveis no levantamento realizado em 2022, intitulado Avaliando a efetividade da Lei Maria da penha. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td 2048.pdf. Acesso em: 24 out. crime de homicídio, visto que este pode se dar por diversas razões. Para qualificar feminicídio o crime deve envolver violência doméstica ou familiar, ou deve ser motivado pela discriminação de gênero. A Lei do Feminicídio é importante para dar visibilidade aos assassinatos de mulheres decorrentes da ideologia dominante assentada no modelo patriarcal que subjuga as mulheres, deixando-lhes na marginalidade das relações de poder, desenvolvendo ainda um imaginário em que a mulher é tida como propriedade do homem.


Lembramos dessas significativas e recentes conquistas, pois consistem em marcos legais brasileiros no que diz respeito à proteção da integridade da mulher.


Essas leis sancionadas são efeitos da resistência feminina, principalmente, na luta pelo cumprimento dos direitos humanos, e nos permitem pensar como os movimentos de resistência, como os movimentos das minorias podem romper com o ciclo da reprodução para emergir um ciclo de transformação das relações de opressão que subjazem às diferenças sexuais e de gênero. Mesmo diante da mobilização da resistência, a ideologia dominante que assegura a reprodução das relações de gênero ainda é modelada por configurações históricas determinadas que asseguram a dominação do homem e a subjugação da mulher. Daí advém nosso interesse em pesquisar a violência contra as mulheres.


Nesta pesquisa investigamos especificamente a violência de gênero em seu vínculo com o humor. Entendemos que o humor empregado nos gestos de violência pode reproduzir a violência contra a mulher por funcionar como um discurso sem efeito de verdade 2 . Como um discurso que "somente visa provocar o riso", o humor pode não ser identificado como reprodutor de violência. Esta, assim, continua sendo reproduzida e produzindo efeitos nas mulheres. Com base na proposta, apresentamos nos próximos parágrafos dados que justificam este objeto de reflexão.


Em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre a percepção da violência contra a mulher, o Instituto Datafolha levantou os seguintes dados 3 : em 2022, 27,4% das mulheres sofreram algum tipo de violência e 42% desses casos correspondem à violência sofrida no ambiente doméstico. Das vítimas, apenas 22,2% relatam ter prestado queixa aos órgãos competentes.


Quando questionadas sobre a violência por assédio, 37,1% das mulheres entrevistadas afirmaram ter sofrido algum tipo de assédio no último ano. Um ponto que se faz necessário destacar é o recorte racial das vítimas: a pesquisa aponta que mulheres negras estão mais expostas à violência do que as mulheres brancas, 28,4% e 24,7% respectivamente e, enquanto 39,7% das mulheres declaradas pretas relatam ter sofrido violência na rua, 23,2% das mulheres brancas relatam esse tipo de violência. Destacamos a necessidade de a reflexão sobre o gênero não ser destacada das relações de raça e classe, embora não seja esse o objetivo do presente trabalho. Esse levantamento de dados faz parte da segunda edição da pesquisa "Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil". Segundo os organizadores, o Estado brasileiro precisa avançar em políticas de prevenção à violência contra as mulheres, atuando na desnaturalização das normas sociais que corroboram para a perpetuação da desigualdade de gênero.


De acordo com o "Mapa da violência contra a mulher 2022" 4 , organizado pela Comissão de defesa dos direitos da mulher da Câmara dos notícias sobre casos de violência veiculadas na mídia, 68.811 são casos de violência contra a mulher, números referentes ao período de janeiro a novembro de 2022. Conforme a Comissão, como o Brasil não tem um banco de dados sistematizado para medir a ocorrência da violência contra a mulher, faz-se necessário buscá-los em fontes secundárias, e a mídia auxilia nessa tarefa. A base de dados utilizada foi o banco de matérias da Linear Clipping, empresa de monitoramento de notícias. Eis alguns dados levantados pela Comissão: a cada dezessete minutos, uma mulher sofre violência física; a cada trinta minutos, uma mulher sofre violência psicológica ou moral; e, a cada três horas, há um caso de cárcere privado. Descobrem-se ainda oito casos de violência sexual por dia e trinta e três casos de feminicídio a cada semana, geralmente executado por parceiros antigos ou atuais. E, de forma estarrecedora, a mídia apresentou 32.916 casos de estupro durante esse período de análise.


Percebe-se, por meio dos dados levantados, a presença de forte misoginia no país, que submete as mulheres a atrocidades num país dito civilizado.


Curiosamente, o levantamento apontou para um número de feminicídios superior ao número registrado pelos órgãos de Segurança Pública. Tal fenômeno é decorrente da invisibilização dos assassinatos de mulheres, que muitas vezes são caracterizados apenas como homicídio pelos agentes de segurança. Essa discrepância é entendida como um efeito da naturalização da violência de gênero promovida pela ideologia dominante.


Diante da violência crescente exercida contra as mulheres, violência exercida no nível físico, psicológico, patrimonial, sexual, com base no dispositivo teórico analítico da Análise de Discurso materialista (AD), nos propomos a analisar um vídeo produzido pelo humorista Danilo Gentili em resposta à deputada Maria do Rosário referente a uma notificação extrajudicial para apagamento de uma publicação sua no Twitter 5 . Inconformado com o que acredita ser uma tentativa de censura à sua liberdade de expressão, ele investe de forma agressiva contra Maria do Rosário. Um aspecto interessante é que Gentili, em sua resposta, se vale do humor em um gesto de agressão à deputada, o que nos faz questionar que papel tem o humor na reprodução da violência.


A violência, segundo nosso entendimento, pode ser reproduzida com o atravessamento do humor por este não ser considerado algo "sério", "verdadeiro", "real". Da perspectiva da Análise de Discurso materialista, concebemos a ideologia como uma "estrutura-funcionamento" (PÊCHEUX, 1997) que produz as evidências para os sujeitos, de modo que é pela ideologia que o humor é naturalizado e evidenciado como um discurso de brincadeira, produzido somente para o divertimento dos sujeitos. Ou seja, sob o modo humorístico do discurso, o efeito de brincadeira funciona como uma evidência aos sujeitos, o que produz, por consequência, o efeito de não reproduzir violência, isto é, por constituir uma evidência, o efeito humorístico se sobrepõe à violência presente no discurso; esta, no entanto, não cessa de produzir efeitos nos sujeitos. Assim sendo, o vínculo entre violência e humor é capaz de produzir a reprodução da violência de gênero.


Curiosamente, essa reprodução dá-se inclusive pelas próprias mulheres que, não percebendo sua submissão ao discurso hegemônico, disseminam seus pressupostos, contribuindo para o seu espraiamento na sociedade. Antecipamos que, conforme as análises desenvolvidas demonstrarão, o humor não é ingênuo nem inconsequente, ele trabalha em função de uma determinada posição política, ideológica e de classe; no caso, a ideologia machista, que pode apresentar-se de forma explícita ou velada. Perante esse cenário, julgamos necessário pesquisar esses processos discursivos a fim de identificar os mecanismos constituintes do humor e as estratégias discursivas referentes à violência contra a mulher.


Em filiação à Análise de Discurso, entendemos as relações de gênero a partir do processo de interpelação-identificação ideológica. Pensar as relações de força e os processos de identificação de gênero constituídos via interpelação é um processo promissor para a teoria pêcheuxtiana que, estabelecida no entremeio da linguística, da psicanálise e do materialismo histórico, propõe-se a analisar os processos discursivos que organizam as relações sociais, relações de opressão e exploração afetadas por sujeitos constituídos via interpelação ideológica e inconsciente, assim sujeitos à falha e à falta. Conforme : "a primeira [opressão] é cultural e social; gera uma situação de discriminação, atinge mulheres de diversas classes sociais e pode ter efeitos econômicos de maior ou menor peso. A exploração é um fato econômico e dá origem à divisão da sociedade em classes".


Ao abordar o gênero pela perspectiva discursiva, ambiciosamente, pretendemos contribuir para com a teoria iniciada por Pêcheux, cujo leque de trabalhos referentes à temática ainda é restrito. Trabalhamos também com uma materialidade bastante complexa, uma vez que esta é constituída pela língua, pela prosódia, pelo gesto e também por elementos musicais que, ao nosso ver, são fundamentais na constituição dos sentidos do corpus: o vídeo elaborado por Danilo Gentili em resposta à notificação extrajudicial movida por Maria do Rosário junto à Procuradoria Parlamentar, na qual a deputada solicitava o apagamento de algumas publicações de caráter agressivo realizadas pelo humorista em sua conta na plataforma do Twitter.


Todos esses elementos constituem o discurso humorístico que se relaciona de modo especial com o processo de interpelação-identificação ideológica.


Usualmente o humor é empregado pelos sujeitos-falantes como um modo de subversão às relações de opressão e exploração. Alguns trabalhos na AD apontam para o funcionamento do humor como um mecanismo que possibilita ao sujeito burlar as barreiras forjadas pela ideologia dominante e assim denunciar e resistir aos seus pressupostos. No entanto, no que concerne ao gênero, via de regra não é sob esse modo que ele se apresenta. Em nosso corpus identificamos o humor a partir de mecanismos técnicos como a mobilização de incongruências e alusões, bem como a utilização de ironia e deboche que constroem o riso na humilhação do alvo de sua enunciação; o humor, entretanto, no texto analisado, não é construído com vistas a modificar as relações de dominância, mas sim à afirmação dos pressupostos da ideologia dominante do patriarcado.


Ao fim da discussão, cientes de que ela de forma alguma se esgota com este trabalho, produzimos um efeito de fechamento no qual pretendemos responder aos questionamentos que deram origem a esta pesquisa, a saber:


• A violência contra a mulher pode se manifestar no discurso humorístico?


• Que diferença tem o humor com relação a outros tipos de funcionamento discursivo que autoriza a circulação de discursos sobre mulheres não permitidos sob o "modo sério"?


• Como funciona o processo de interpelação ideológica no discurso humorístico sobre a mulher? Na tentativa de responder a essas questões, mobilizamos os conceitos teórico-analítico da Análise de Discurso materialista para verificar as estratégias discursivas empregadas na constituição do humor dos enunciados, bem como os mecanismos discursivos utilizados em vista das posições-sujeito apresentadas, relacionando essas posições às formações discursivas correspondentes. Propomonos a examinar de que modo os mecanismos constituintes do discurso humorístico podem auxiliar na reprodução da ideologia dominante, que atualiza saberes vinculados ao cisheteropatriarcalismo.


O trabalho está dividido em seis partes:


A presente introdução compreende a apresentação de nosso problema de pesquisa, que consiste na utilização dos mecanismos do humor na reprodução da violência contra a mulher.


No segundo capítulo, apresentamos o corpus e a forma de análise do corpus; esclarecemos que optamos por começar deste modo, partindo da Análise de Discurso, para que a análise se faça ao longo dos capítulos num movimento contínuo e dialético. Assim, construímos nosso referencial teórico juntamente à análise em vez de dedicarmos uma seção exclusivamente para sua execução.


No terceiro capítulo, efetuamos um levantamento das teorias de gênero para compreender como esse conceito surgiu e se consolidou em diversas áreas do saber e para ressignificá-lo no campo da Análise de Discurso; pensar o funcionamento do gênero em outros campos nos auxilia a refletir sobre o seu espaço na teoria de Pêcheux, uma vez que o autor não teorizou diretamente sobre as questões de gênero, mas era defensor de alianças entre teorias por meio da problematização destas. Destacamos a relação entre gênero e Análise de Discurso explorando pela via da ideologia os processos discursivos que mantém as relações de opressão pelo gênero. Por último, chegamos ao sexto capítulo, que se propõe à discussão dos questionamentos que originaram essa pesquisa, bem como às reflexões sobre a contribuição do trabalho à teoria da Análise de Discurso.


Sobre o humor de Danilo Gentili.


Danilo Gentili é conhecido nacionalmente como um humorista polêmico e reprodutor de um "humor ácido". Seus simpatizantes o caracterizam como um humorista provocativo que não se cala diante da "censura" do politicamente correto 6 , suposta razão dos processos judiciais recebidos durante sua carreira.


Transcrição e descrição do vídeo.


Para a transcrição do vídeo, baseamo-nos no modelo elaborado por Ainda conforme , "trata-se de uma questão complexa definir com clareza o que e o quanto assinalar na superfície de uma conversação".


O linguista deve então transcrever tudo aquilo que julgar relevante para suas análises. Em nossa transcrição há um excesso de descrição de elementos gestuais, por exemplo; no entanto, julgamo-los essenciais para a construção dos sentidos do texto. Enquanto analistas de discurso, nosso gesto de interpretação é assentado no método teórico-analítico que nos permite, na intersecção das pistas da formulação (linguísticas ou não) com as condições de produção, remontar às posições e processos discursivos em jogo.


Para ascender ao processo discursivo, o analista de discurso molda seu dispositivo teórico-analítico de modo que possa apreender a materialidade discursiva do corpus em análise, ou seja, de forma que possa apreender o discurso em seu processo sócio-histórico-ideológico. Orlandi .


• /truncamentos bruscos: quando o sujeito corta uma unidade.


• (( ))comentários da pesquisadora descrevendo algo que ocorre.


• :indica alongamento de vogal e pode ser repetido de acordo com a extensão do alongamento. Aos elementos que constituem a formulação imagética, chama de "operadores discursivos não-verbais" e nos diz que a interpretação da No segundo comentário, feito por Feliciano, novamente há a defesa de que as teorias de gênero são forçadas à população e apresentá-las no ENEM seria um recurso desonesto. Essas constituiriam um "fétido cadáver" desenterrado pelo ministério da educação; o deputado, entretanto, se compromete a enterrá-las, a escondê-las novamente como algo ameaçador. Os estudos de gênero são apresentados como "teorias alienígenas", ou seja, nada têm a ver com o ser humano e em "nada acrescentam ao engrandecimento de nossa cultura e tradições", devendo ser "extirpadas dos currículos escolares", o que caracteriza um ato de censura. Percebemos que, apesar dos avanços das teorias, ainda há, por parte de grupos mais conservadores, forte resistência às questões de gênero, bem como sua deslegitimação como ciência ou teoria. Há a determinação do discurso religioso na compreensão das relações de gênero, o que impede o avanço de pautas vinculadas aos direitos de mulheres e de outras minorias na nossa formação social.


A historiadora Joan Scott, grande influenciadora das pesquisas sobre gênero no Brasil, ao ser questionada sobre a legitimidade do gênero como uma categoria de análise, vinte anos após a publicação de seu ensaio Gênero: uma categoria útil de análise histórica, responde o seguinte em entrevista a Lemos ):


representadas por formações discursivas). De acordo com , as teóricas feministas dedicadas ao estudo de gênero apresentam-se em três posições teóricas:


A primeira, uma tentativa inteiramente feminista, empenha-se em explicar as origens do patriarcado. A segunda se situa no interior de uma tradição marxista e busca um compromisso com as críticas feministas. A terceira, fundamentalmente dividida entre o pós-estruturalismo francês e as teorias anglo-americanas de relação do objeto (object-relation theories), se inspira nessas diferentes escolas de psicanálise para explicar a produção e a reprodução da identidade de gênero do sujeito.


Não focaremos nessas posições, pois nosso interesse é entender como essa pesquisadora compreende o gênero. A definição apresentada por Scott sobre o conceito de gênero é bastante complexa e com algumas divisões e subdivisões.


Segundo a autora, ela se dá na conexão entre duas proposições: "(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder" . Destaca-se ainda que as mudanças nas relações sociais correspondem às mudanças nas relações de poder.


Nessa conceituação, implicam-se ainda quatro elementos inter-relacionados, a saber: "os símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas" , bem como os conceitos normativos que restringirão a interpretação desses símbolos. Tais conceitos se apresentariam nas doutrinas religiosa, educativa, científica, política, jurídica, geralmente em posição binária; como símbolos teríamos, por exemplo, Eva e Maria, que são normatizadas como a pecadora e a virgem. pontua como terceiro elemento uma análise de gênero realizada sob viés político, que faça referência às instituições e à organização social com o objetivo de promover a desnaturalização das estruturas binárias. Por último, temos a compreensão de gênero constituído pela "identidade subjetiva". Enquanto historiadora, a autora destaca que a identidade subjetiva deve ser pensada junto à dimensão histórica, pois há a tendência a considerar as identidades de gênero constituídas unicamente pelo medo da castração, desconsiderando-se a importância da dimensão histórica nesse processo.


Todos esses elementos constituiriam a primeira proposição elaborada pela autora em sua definição de gênero. É importante destacar que é primeiramente pelo gênero que o poder é articulado, ainda que não seja sua única forma de articulação.


Conforme , "as estruturas hierárquicas dependem de compreensões generalizadas das assim chamadas relações naturais entre homem e mulher". No entendimento da autora, pesquisar as relações de gênero requer redefinir os paradigmas científicos e sociais para aliar as experiências subjetivas dos sujeitos às experiências políticas. Significa romper com o cristalizado; significa fazer uma nova história.


A historiadora Teresa de Lauretis nos conta que, nos anos 1960 e 1970, os estudos feministas limitavam o gênero à diferença sexual, entendida como a diferença entre masculino e feminino. Essa definição continha um problema, pois perpetuava estereótipos como a cultura da mulher, a feminilidade, a escrita feminina, bem como a inclinação natural da mulher à maternidade. O pensamento feminista, desse modo, apresentava-se afetado pelo patriarcado, reproduzindo estruturas binárias e "narrativas fundadoras" de origens biológicas, médicas, legais, filosóficas ou literárias.


Construído como oposição universal entre homem e mulher, o gênero construiu "A Mulher" como um ser universal, negligenciando as diferenças entre as mulheres. Nessa perspectiva, as mulheres seriam "diferentes personificações de alguma essência arquetípica da mulher, ou personificações mais ou menos sofisticadas de uma feminilidade metafisico-discursiva" .


Segundo a autora, há que se pensar um outro sujeito para os estudos feministas: um sujeito constituído no gênero, sem dúvida, mas não apenas pela diferença sexual, e sim por meio de códigos linguísticos e representações culturais; um sujeito "engendrado" não só na experiência de relações de sexo, mas também nas de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido. Faz-se necessário então, na investigação desse outro sujeito, compreender o gênero para além da diferença sexual. Para isso, a autora recorre inicialmente à teorização de Michel Foucault referente à sexualidade compreendida como "tecnologia sexual".


Esta corresponderia a um conjunto de técnicas que constituiriam discursos normativos sobre a sexualização de mulheres e crianças, procriação, e comportamentos sexuais saudáveis e anômalos. Em referência ao autor, propõe pensar o gênero como produto e processo de tecnologias sociais.


O gênero representa, então, uma relação social, e não um indivíduo, ou melhor, ele representa uma relação de pertencimento de um indivíduo a uma classe, bem como a relação desta a outras classes pré-constituídas. No "sistema sexogênero" pensado pelas cientistas sociais feministas, é a oposição biológica entre os dois sexos que irá predicar as relações sociais entre os indivíduos, sua representação em sistemas simbólicos, culturais e hierárquicos, sempre vinculados a fatores políticos e econômicos.


De acordo com a teórica, o funcionamento do gênero seria bastante similar ao funcionamento da ideologia teorizado por Louis Althusser: ambos seriam representantes das relações imaginárias dos indivíduos com as relações reais que lhes governam. Conforme a autora, nos estudos marxistas, as questões de gênero limitam-se às questões da mulher, que não seriam suficientemente interessantes à teoria marxista por situarem-se na esfera privada "e não na esfera pública,


propriamente social da superestrutura, onde a ideologia se insere e é determinada pelas forças econômicas e pelas relações de produção" .


A sua crítica aos autores se baseia no fato de eles não explorarem as relações de produção em sua intersecção com as relações de gênero, estas ainda entendidas como restritas à esfera privada, ignorando que as relações de produção intervêm nas relações de gênero e vice-versa. A definição de Louis Althusser sobre ideologia é interessante à autora sob o entendimento de que o funcionamento da ideologia, assim como constrói as relações de classe, também constrói o gênero. Fica a crítica da autora por o filósofo não ter teorizado sobre as relações de gênero na elaboração de seu conceito. ) retoma a proposição de Althusser de que "toda ideologia tem a função (que a define) de constituir indivíduos concretos em sujeitos" modificando-a da seguinte maneira: "o gênero tem a função (que o define) de constituir indivíduos concretos em homens e mulheres". Segundo a autora, É exatamente nessa mudança que a relação entre gênero e ideologia pode ser vista, e vista como um efeito da ideologia de gênero. A mudança de "sujeitos" para "homens e mulheres" marca a distância conceitual entre duas ordens de discurso, o discurso da filosofia ou da teoria política e o discurso da "realidade". O gênero é atribuído "e inquestionavelmente aceito" na primeira ordem, mas excluído na segunda. Diante da incapacidade de Althusser de conceber um sujeito feminino, de estabelecer a conexão entre gênero e ideologia, a autora afirma que, preso à ideologia de gênero, o filósofo produz uma teoria da ideologia que, validada por discursos institucionais, funciona como uma "tecnologia de gênero", esta compreendida enquanto "técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é construído" . Pensando o gênero como instância da ideologia, ela cita os estudos da feminista marxista Michèle Barrett, segundo a qual A ideologia do gênero teve um papel importante na construção histórica da divisão capitalista do trabalho e da reprodução do poder do trabalho' e é portanto uma demonstração precisa da 'conexão integral entre a ideologia e as relações de produção. Lauretis aborda também os estudos de Joan Kelly que, de acordo com a autora, apresenta uma forma conveniente de apresentar a relação entre ideologia e gênero a partir do pressuposto feminista de que o pessoal é político. Rompendo com a divisão de esfera privada e esfera pública, propõe-se pensar "vários conjuntos inter-relacionados de relações sociais -relações de trabalho, classe, raça e sexo-gênero" , nas quais os homens e mulheres posicionam-se e são afetados diferentemente:


Na "dupla" perspectiva da análise feminista contemporânea, continua Kelly, podemos perceber duas ordens, a sexual e a econômica funcionando juntas: "Em qualquer das formas históricas tomadas pela sociedade patriarcal (feudal, capitalista, socialista, etc.), um sistema sexogênero e um sistema de relações produtivas operam simultaneamente (. ) para reproduzir as estruturas socioeconômicas e o domínio masculino da ordem social dominante" (p.61). Dentro dessa "dupla" perspectiva, portanto, é possível perceber claramente como opera a ideologia do gênero: o "lugar da mulher", i.e., a posição atribuída à mulher por nosso sistema de sexo-gênero, como ela enfatiza, "não é uma esfera ou um território separado, e sim uma posição dentro da existência social em geral" (p.57). Pela relação do feminismo com a ideologia, outras opressões passaram a ser estudadas, como as opressões de raça e classe. Uma escritora internacionalmente reconhecida por trabalhar com questões de gênero, raça e classe é a filósofa Angela.


Davis. Segundo a autora, é impossível pensar o gênero dissociado das questões sociais e étnicas. Criticando a esquerda marxista pela prioridade dada às opressões de classe sobre as demais, a autora nos diz que não há hierarquização de opressões e sim relações mútuas ou cruzadas:


As organizações de esquerda têm argumentado dentro de uma visão marxista e ortodoxa que a classe é a coisa mais importante. Claro que classe é importante. É preciso compreender que classe informa a raça. Mas a raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida. A gente precisa refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras. Davis (2022) ainda diz que se não pensarmos como as identificações de raça, classe e gênero afetam umas às outras certas opressões se manterão invisibilizadas. Como exemplo, temos a emergência do racismo no movimento sufragista, que era um movimento de mulheres predominantemente brancas e de classe média pelo direito ao voto.


Uma referência brasileira a pesquisar as relações entre gênero, raça e classe foi a antropóloga Lélia nos diz que, no Brasil, vivemos o mito da democracia racial. Em um exemplo simples, ela nos conta de sua vida como mulher negra que, por vezes, tem vendedores ambulantes "muito cordiais" à sua porta questionando se "a madame está?" ao se deparar com sua figura. Nessa situação simples e corriqueira é possível perceber o papel da ideologia apresentando aos sujeitos as evidências que estes devem reproduzir, pois, "se é negra, é evidente que é doméstica". A autora retoma uma série de pré-construídos (aquele já-lá naturalizado que irrompe no fio do discurso) sobre os negros que reproduzem os saberes da ideologia dominante, tais como: negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc e tal. Daí, é natural que seja perseguido pela polícia, pois não gosta de trabalho, sabe? Se não trabalha, é malandro e se é malandro é ladrão. Logo, tem que ser preso, naturalmente. Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha , pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados. É possível relacionar o que a autora nos apresenta à teorização sobre os aparelhos de reprodução da ideologia. Fica pressuposto no trecho o funcionamento do aparelho repressivo (ARE) -perseguição pela polícia -e dos aparelhos ideológicos de estado (AIE) -jornal, rádio, televisão -pela manutenção da posição de inferioridade dos negros em nossa formação social. A autora descreve-nos um cenário que, depois de quase 40 anos, permanece quase que inalterado, efeito da eficiência da ideologia dominante racista e patriarcal: perseguição policial sistemática (esquadrões da morte, "mãos brancas" estão aí matando negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é a maioria da população carcerária deste país). Entendemos que as mulheres negras e indígenas sofrem opressões pelas quais as mulheres brancas não são submetidas e Davis (2022) e percorrem desde o processo de escravidão até os dias atuais, explorando as especificidades da luta da mulher negra em relação às demais. Devemos lembrar que vivemos no último país do ocidente a abolir a escravidão e que, quando o fez, não tinha políticas para integrar de outros modos as negras e negros na sociedade.


Eles foram libertos e largados à própria sorte, sem propriedade, sem dinheiro, sem trabalho, ou seja, sem opções para subsistir. Desse modo, conforme a autora, os fatores econômicos foram decisivos na subjugação da mulher, e estes também são fundamentais na determinação da superestrutura ideológica que sustentará essa relação. A autora entende que não é possível falar da mulher sem considerar as especificidades de classe, pois seus problemas, suas questões são outras conforme sua posição nas relações de produção e, para exemplificar, traz as diferenças entre a mulher burguesa histérica em Freud e a mulher proletária que sequer foi ouvida e não pode desempenhar sua "feminilidade" como a mulher burguesa, pois eram obrigadas pela sua inserção como força de trabalho a absorver os atributos "masculinos", exercendo os atributos "femininos" somente em casa. A autora conclui que o capitalismo, apesar de não ter fundado a opressão das mulheres, aproveitou-se dela para explorá-las de forma mais intensa e que não há possibilidade de emancipação das mulheres dentro desse sistema.


De acordo com , é pelo processo de interpelação, descrito por Althusser, que as representações de gênero se colam aos sujeitos. Por interpelação entende-se "o processo pelo qual uma representação social é aceita e absorvida por uma pessoa como sua própria representação, e assim se torna real para ela, embora seja de fato imaginária" Em nossa formação social, a ideologia dominante que molda os processos de identificação e subjetivação, reconhecimento e desconhecimento (entendidos por Althusser como duas funções da ideologia), reproduz como um de seus pressupostos a dominação do gênero hegemônico (o homem cisheteronormativo, ou seja, aquele em que as construções de sexo, gênero e desejo atendem à matriz da heterossexualidade) sobre os demais. Entendemos o gênero como uma construção discursiva pela qual o indivíduo é interpelado para identificar-se como sujeito-homem ou sujeito-mulher e assim realizar "'por si mesmo' os gestos e atos de sua submissão" .


O filósofo teoriza sobre a interpelação na condução dos sujeitos e nós o trazemos para pensar esse processo no campo das questões de gênero. Segundo , é pelo assujeitamento à ideologia que "os sujeitos 'caminham', eles 'caminham por si mesmos' na imensa maioria dos casos, com exceção dos 'maus sujeitos', que provocam a intervenção de um ou outro setor aparelho (repressivo) do Estado". É porque existem falhas no processo de interpelação ideológica que existem os "maus sujeitos" 32 ; estes seriam aqueles que ousam subverter as normas da ideologia dominante e passam a identificar-se com outras formações ideológicas. Nesses casos, o sujeito estaria à mercê do ARE, que deve atuar na correção ou aniquilação do subversor. Sem a pretensão de discussão no âmbito religioso, podemos pensar a criminalização do aborto como uma prática do ARE para reproduzir a mulher-mãe. A mulher que aborta seria um mau-sujeito da ideologia dominante por subverter seu papel de procriadora e assumir o controle total sobre o corpo que é dela, mas constantemente vigiado e controlado pelos aparelhos de estado. ) continua e nos diz que "a imensa maioria dos (bons) sujeitos caminha "por si", isto é, entregues à ideologia (cujas formas concretas se realizam nos Aparelhos Ideológicos de Estado)". Os bons sujeitos "inserem-se nas práticas, regidas pelos rituais dos AlE. 'Reconhecem' o estado de coisas existente", e vivem na ilusão/evidência de que "é verdade que é assim e não de outra maneira", ou seja, se as identificações de gênero foram construídas de modo a pôr o homem numa posição de privilégio em relação à mulher, é porque "só podia ser assim". Se Dessa abordagem "interpelativa", podemos concluir que o fato mesmo de identificar nas ações femininas uma cena linguística originária permite ao sujeito se produzir por sua própria ação. A potência de agir não é aqui possível senão pela manutenção dessa cena originária, que permite reapropriações, logo a abertura de um campo dos possíveis com base nas condições originárias de uma certa potência de agir, o que explica a extrema complexidade das recontextualizações identitárias de formações discursivas fragmentadas no interior mesmo de um tal mecanismo de interpelação no campo de gênero. Desse modo, em , o indivíduo, por sua inscrição no simbólico, é interpelado a constituir-se como sujeito e subjetiva-se a partir de um poder que o subordina. Esse processo, no entanto, permite, por retorno, o desenvolvimento de uma consciência de si. No que concerne às identificações de gênero, tal processo se apresenta fundamental para pensar os deslocamentos de poder que moldam as relações de gênero.


Zoppi-Fontana (2022), retomando Pêcheux, nos aponta que as práticas de resistência se dão dentro do próprio processo de interpelação ideológica. Na Análise de Discurso na qual nos filiamos não há exterioridade à ideologia: o sujeito pode se desidentificar da Formação Discursiva pela qual foi originalmente interpelado, mas nunca deixa de estar vinculado a uma formação discursiva. Ao romper com uma FD, ele necessariamente adere a outra e passa a reproduzir os pressupostos desta.


Na próxima seção desenvolveremos um gesto de interpretação de algumas SD apontadas no capítulo 2, seção 2.5. Considerando o debate até aqui engendrado, entendemos o gênero como uma construção histórico-ideológica que pode garantir aos sujeitos uma posição de dominação ou subjugação. Desse modo, o gênero está intimamente relacionado às relações de exploração e opressão. Em filiação a uma teoria materialista, é pressuposta a necessidade de considerar os processos de determinação histórica das relações de gênero, bem como os processos que produzem os sentidos "evidentes" sobre e para homens e mulheres.


As relações de gênero não podem ser consideradas dissociadas de suas condições de produção. Estas constroem e são construídas pelas formações imaginárias, inclusas nestas as relações de força, as relações de sentido e as relações de antecipação.


Da perspectiva discursiva pêcheuxtiana, consideramos o gênero como parte do processo de interpelação-identificação ideológica do indivíduo em sujeito. Como destacado anteriormente, é pelo processo de interpelação ideológica que se dão as evidências que nos constituem, bem como os processos de reconhecimento/ desconhecimento. É por meio desse processo fundador do sujeito que reconhecemos como elementos evidentes o mundo, as coisas, os pensamentos, as relações sociais, enfim, tudo que é simbolizado, como se seus sentidos fossem literais. Quando se diz que "é evidente que homem é homem e mulher é mulher", "é evidente que mulher tem feminilidade" (com os estereótipos que lhes são "característicos"), e "é evidente que o homem deve comportar-se de modo x e a mulher de modo y", reconhece-se a disparidade como algo biológico nesses seres distintos, e não como um processo sócio-histórico-ideológico: "é assim porque sempre foi assim". Desse modo, é possível encontrar evidências da ordem do ideológico passando-se por conhecimentos biológicos ou científicos como se estes fossem imunes ao ideológico.


A ideologia não é ocultação ou mascaramento: é por meio dela justamente que encontramos as evidências que nos constituem e constituem nossas relações sociais. Em outras palavras, é pelo processo de interpelação-identificação ideológica que são estabelecidas e normalizadas as relações de poder entre os gêneros, classes e raças.


O vídeo e o gênero.


Nesta seção, desenvolvemos um gesto de interpretação de algumas SD apontadas no capítulo 2, seção 2.5. Propomos articular nas análises conceitos basilares da Análise de Discurso, tais como ideologia, formação discursiva, condições de produção e memória discursiva, articulados à noção de gênero como construto discursivo, parte do processo de interpelação-identificação do indivíduo Segundo Dorow , assim como há a memória discursiva que comporta os já-ditos, há uma memória prosódica que elenca as entonações do dizer e atravessa os dizeres dos sujeitos. Esta corresponde ao "lugar das entoações as quais não só se ligam à afetividade, mas também às posições-sujeito e às formações discursivas" . Desse modo, segundo a autora: ritmo, a entoaçãosão efeitos da historicidade, determinados na própria estrutura do interdiscurso. No enunciado do humorista, temos como elemento material a entonação que, pela memória prosódica, nos remete a situações de escárnio. O humorista, na SD2, não verbaliza a ofensa, mas ela é realizada no nível da sugestão 33 (através do funcionamento do esquecimento n° 2, no qual o sujeito tenta controlar aquilo que diz, conforme será trabalhado na seção 4.1) pela oralidade, de forma ainda sutil. Na revelia de sua identificação, e produz sentidos. O termo é associado, principalmente, à prostituição; estigmatizada pela intersecção entre sexualidade e dinheiro, remete à mulher promíscua que tem relações sexuais com vários homens, e pode também aparecer associado às doenças sexualmente transmissíveis.


Apresenta-se como dominante o sentido de que ser puta é possuir falhas no caráter, falhas no senso moral; é uma mulher sem valor. A ofensa 'filho da puta' indica que ser filho da puta é ser filho do pior tipo de mulher, é ser bastardo, é estar fora do moralmente aceito; ser o filho da puta, portanto, é ser mau-caráter, é não ser confiável. Desse modo, pela redesignação proposta pelo humorista, através da formulação visual, impõe-se uma discursividade à Maria do Rosário que a afeta, a assedia e a deslegitima frente aos eleitores.


No leque das formações imaginárias, existe um imaginário bastante consolidado referente à designação puta assentado em uma formação discursiva conservadora e machista, pregadora da moral e da religiosidade que retorna na memória por pertencer ao discurso dominante, produzindo efeitos nos sujeitos independentemente da filiação discursiva. As questões de gênero são permeadas por pré-construídos da ordem da ideologia dominante cisheteronormativa que os apresenta como naturais e universais, invadindo diferentes formações discursivas.


Assim, mesmo que o sujeito se identifique com uma formação discursiva antagônica, feminista, pró-direitos sexuais da mulher, pró-regulamentação da prostituição, esses sentidos estão disponíveis e exercem efeitos no seu discurso, ainda que sob a forma de negação do pré-construído. significado como dinheiro, tostão, ou como adjetivo masculino para quem está muito irritado.


No mesmo dicionário, o significante puta é utilizado para referir-se à "mulher que se prostitui = meretriz, prostituta, rameira" ou "mulher que tem relações sexuais com muitos homens". Ao recorrer ao dicionário, não pretendemos estabelecer uma relação de transparência entre significante e significado, pois tal prática é contrária aos pressupostos básicos da AD; entretanto, compreendemos que os dicionários nos permitem a consulta a significados histórica e ideologicamente naturalizados pelas posições dominantes de uma formação social 36 . Puta e puto ganham sentidos negativos por se relacionarem, respectivamente, à identificação de gênero vinculada a uma prática sexual promíscua e à orientação sexual não-normativa.


Ambos são objeto de opressão em nossa formação social: xingar uma mulher de puta é chamá-la de promíscua; xingar um homem de puto é chamá-lo de homossexual. Os sentidos construídos sociohistoricamente sobre esses significantes oprimem toda a mulher que tem vários parceiros sexuais e todo homem que é homossexual. Utilizar esses adjetivos/substantivos como xingamentos revela o funcionamento da ideologia dominante na nossa formação social.


Percebemos que os verbetes puta e puto são investidos de sentidos negativos e costumam ser empregados para depreciar alguém, para enunciar uma submissão, enunciar o objeto de uma dominação de gênero. Essa designação, no entanto, é interditada ao homem cisheterossexual como sintoma de sua dominância sobre os demais gêneros, pois, na posição dominante, é este que impõe sentidos sobre os demais. Atentemos então que o homem pode ser designado como puto, mas, quando o é, se faz para depreciar sua homossexualidade (ou para chamá-lo de homossexual, mesmo que não o seja) e, curiosamente, o puto não é associado 36 Lembramos que antes da mudança de paradigmas proporcionada pelos movimentos feministas, puta também era utilizado para designar qualquer mulher que deslizasse do padrão convencional, isto é, a mulher que adotasse práticas similares aos homens, como trabalhar fora de casa, sair à noite, frequentar bares e boates, ter muitos amigos ao invés de amigas; aquela que se relacionasse sexualmente fora do casamento também seria puta; o homem, no entanto, não é julgado desse modo por (aqui parece um enunciado do senso comum) não reservar sua sexualidade somente para a esposa. Muitos desses sentidos ainda circulam: quando uma mulher é vítima de um estupro questiona-se o horário, o local, e a roupa utilizada, pois é tido como evidência que certos horários, locais e roupas são reservados para as putas e o estupro de uma puta não incomoda como incomoda o de uma "mulher decente", que só circula em horários comerciais, sai para estudar ou trabalhar e retorna para sua casa e se veste com recato para não provocar nenhuma "situação constrangedora". à prostituição como acontece com a puta, consolidando-se o imaginário de que a mulher é objeto consumível, objeto de compra, o homem não. Fernandes e Souza , "o termo puta assume sentidos de acordo com a formulação e a posição-sujeito que a mobiliza, a partir de uma dada formação discursiva da qual faz parte". Desse modo, gostaríamos de tecer algumas considerações referente à prostituta Gabriela Leite, autora do livro Filha, mãe, avó e puta.


Trabalhos como o de Fernandes e Souza.


Os termos filha, mãe e avó historicamente pertencem a uma rede parafrástica, a uma rede cristalizada de sentidos que enuncia um processo de crescimento e amadurecimento da mulher. O termo puta é inserido como um estranho entre os demais, como um elemento de outra rede de sentidos, talvez relacionada a termos como sexualidade, prostituição, marginalização. Sabemos, a partir de Pêcheux, que a relação de literalidade do significante é ilusória, que os sentidos se constituem a partir da determinação histórica dos processos de significação, a partir das posições ideológicas em jogo no processo de produção dos enunciados, assim: as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [. ] nas quais essas posições se inscrevem. Parece-nos haver divergências entre os sentidos elencados por Gabriela ao significante puta e os sentidos elencados pelo humorista ao mesmo significante, e as condições de produção se mostram essenciais para a construção desses sentidos. Gabriela, em diversas entrevistas, se declara como puta e associa a puta à prostituição. Essa prática, no entanto, não é motivo de vergonha, é profissão:


Por que eu gosto do nome [puta]? Por conta das minhas filhas mesmo. Por conta das filhas das minhas colegas também. Eu, que nunca fui uma grande mãe, eu pensei nisso. Eu tenho colegas que são grandes mães, mas que não querem que as filhas saibam que elas são putas. Eu, que não sou uma grande mãe, ficava preocupada por que que minhas filhas eram "filhas da puta", isso é, o maior palavrão da sociedade. Isso é horrível. Então a gente tem que mudar. "Filha da puta" deve ser um nome de orgulho pras filhas da gente. Então é esse o meu pensamento. E também acho que se a gente não toma as palavras pelo chifre e assume elas, a gente não muda nada 37 .


Diante do reconhecimento da naturalização do significante, e da estigmatização imputada pela sociedade patriarcal a essas mulheres, Gabriela 37 Este trecho faz parte de uma entrevista que constitui os extras do documentário "Um Beijo para Gabriela". Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CvKkGPiXv0o. Acesso em: 21 jul. 2022.


apropria-se do termo para ressignificá-lo em uma outra rede de sentidos que não os da marginalização e preconceito, para que se possa circular de um modo novo.


Curiosamente, Gabriela recusa-se a se designar como profissional do sexo, pois "profissional do sexo é qualquer coisa [. ] precisa ter identidade, aí a gente muda alguma coisa" 38 . A memória veiculada a esse significante desliza do âmbito da imoralidade e devassidão para um outro espaço, produzindo novas possibilidades de sentidos. Gabriela recusa-se também a tratar as prostitutas como vítimas da desigualdade do sistema capitalista: ela percebe a existência dessas mulheres, mas nos diz que muitas mulheres apenas optam pela prostituição como optam por qualquer outro trabalho, como foi seu caso. Segundo Gabriela, a prostituição é envolta em preconceito por aliar a sexualidade com dinheiro, pois a prostituição é um espaço de sexualidade e, como aquilo que é da ordem da sexualidade, do corpo, é motivo de dogmas, torna-se proibido: É muito engraçado porque eu não sou socióloga, eu não terminei meu curso, mas as pessoas botaram na cabeça que eu sou socióloga. Então as pessoas dizem assim "Gabriela, socióloga e ex-prostituta". É engraçado porque o que eu não sou, eu sou. E o que eu sou, eu não sou, pra ver a que ponto chega o preconceito, o estigma e tudo mais. Eu não sou socióloga, mas eu sou puta. Estou aposentada mas sou. [. ] Se a pessoa chega pra mim e pergunta o que eu sou eu digo "sou uma puta". Eu conto pra um cara num botequim que eu sou uma puta aposentada e sem aposentadoria, ele diz "Que isso, minha filha. A senhora foi, hoje a senhora não é mais. Hoje a senhora é uma mulher direita". Ele tava me defendendo de mim 39 .


Os enunciados colocados em circulação por Gabriela e Danilo confirmam a tese de Pêcheux segundo a qual os sentidos não existem a priori, eles são determinados a partir de uma posição-sujeito inscrita em uma formação discursiva.


O sentido de puta não é homogêneo. No discurso do humorista, puta é veiculado a sentidos negativos, empregado para incomodar, para ofender a deputada diante da notificação recebida e deslegitimá-la, sinalizando para uma posição conservadora que humilha a mulher utilizando-se de saberes naturalizados, que "todo mundo sabe", vinculados ao machismo.


Se retomarmos a definição de Haroche, Pêcheux e Henry (2007, p. 26) sobre as formações ideológicas veremos que:


Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento (este aspecto da luta nos aparelhos) suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma 38 Ibid. 39 Ibid.


formação social em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem 'individuais' nem 'universais' mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras. (grifos dos autores) As formações ideológicas, então, constituem regiões de saber, como a religião, a escola, a política, a economia, etc. Estas comportam em seu interior relações de antagonismo, de aliança ou de dominação (PÊCHEUX, 1997), ou seja, é no interior das formações ideológicas que ocorre a disputa de sentidos entre as formações discursivas que almejam a posição dominante; por essa razão, as formações ideológicas não são universais. Conforme as formações ideológicas [. ] "comportam necessariamente, como um de seus componentes, uma ou várias formações discursivas interligadas que determinam o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, um sermão, um panfleto, uma exposição, um programa etc.) a partir de uma posição dada numa conjuntura", isto é, numa certa relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de classes. É válido lembrar que Maria do Rosário é uma mulher pública, cujo significado no Priberam 41 consta do seguinte modo: "aquela que desempenha funções de interesse público, sobretudo na política ou na administração de um Estado ou de um país". Contudo, o dicionário traz também como significado "antigo, depreciativo" os termos meretriz e prostituta. No discurso do humorista, parecem incidir pressupostos de uma memória discursiva veiculada à posição-sujeito machista, que não permite ao sujeito conceber o espaço para a mulher pública deslocada de sentidos depreciativos, retomando, no nível da formulação gestual, sentidos associados a outras condições sócio-histórico-ideológicas de produção. Essa diferença constitui um primeiro elemento que permite vincular aquilo que é dito, 40 A FD de defesa da diversidade é configurada em Butturi Junior e Sozo como "pautada em discursos de democracia, igualdade e laicização do Estado brasileiro". Considerando que este trabalho busca trazer elementos para a compreensão de processos de significação relacionados a gênero e sexualidade, entendemos que a FD de defesa da diversidade diz respeito à defesa da diversidade sexual e de gênero, por isso os significantes que estão sendo aqui articulados na análise, tais como o significante puta, os gestos de Danilo para a palavra deputada e a inserção dos papéis dentro da calça na região do pênis, são significantes relacionados a tal região de sentidos. A partir de um grande levantamento teórico referente ao humor, ao cômico e ao riso, ) sintetiza-os do seguinte modo: humor é um tipo de discurso com um modo de funcionamento determinado, o qual engloba todos os gêneros, dimensões e mecanismos correlatos a eleriso, ridículo, ironia, cômico, comédia, sarcasmo, zombaria, piadas, charges, dentre tantos outros -, por essa razão compreendemos que o humor é um universo particular dentro do campo da linguagem; cômico é um gênero textual e discursivo baseado em premissas do discurso humorístico; e, por fim, o riso é uma explosão corpórea similar ao choro e ao orgasmo, tal como diversos filósofos definiram-no (cf. , todavia esta reação mecânica (ou psicológica) específica é uma das potenciais consequências para situações humorísticas, ainda que o riso não necessariamente mesure e/ou confirme se algo é ou não humorístico, uma vez que o humor não é algo universal e tão pouco [sic] é percebido exatamente da mesma forma por todo mundo Segundo , "para cada teoria que esclarece as bases do humor e do riso, é fácil encontrar muitos exemplos pertinentesmas também se encontram exemplos que não estão de acordo com a teoria". Um caso bastante exemplar é Freud, que, diante da falha de suas categorias para os chistes, criava outras e mais outras e, ao fim, percebe que ainda não foi possível estabelecer regras absolutas sobre esse funcionamento linguístico-psíquico. A partir de suas investigações acerca dos estudos sobre o humor, ) elenca três modalidades, ou três definições teóricas geralmente presentes nas análises relacionadas ao funcionamento do "universo humorístico", a saber, "a teoria da superioridade ou da hostilidade, a teoria do alívio (da liberação) ou 'da válvula' e a teoria da incongruência". Detemo-nos nessa modalidade em razão de nos parecer ainda bastante funcional, na medida em que nos deparamos até o presente com uma grande circulação de discursos humorísticos disseminadores da ideia de superioridade de determinados grupos sobre outros, como é o caso das piadas machistas, homotransfóbicas, racistas, xenofóbicas, gordofóbicas, e, também, das piadas que abordam os indígenas, a velhice e os diferentes tipos de deficiências, dentre outros.


Nessa perspectiva, o riso é produzido e compartilhado dentro do grupo a partir da detecção de defeitos no outro, e estes podem ser os mais diversos possíveis. No caso das piadas construídas para reprodução do discurso machista, que prega a inferioridade natural da mulher ao homem, é bastante comum encontrar estereótipos localizados na memória discursiva como a mulher desatenta que não dirige nem se localiza tão bem quanto o homem, a mulher retratada como interesseira, até piadas mais agressivas. , "quando uma piada irrompe sobre nós ou sobre amigos cuja desonra nos atinge, nunca rimos". ) também aponta para a necessidade de o humorista eliminar as possibilidades de afeto para com o objeto de humor, pois, uma vez que "o maior inimigo do riso é a emoção", é importante desenvolver uma "insensibilidade momentânea" para com o alvo do discurso humorístico. A partir dessa proposição, A partir destes autores, entendemos que a permissão para o riso diante do humor que reproduz violência é a desidentificação com o alvo desta, e é por isso que brancos podem rir das piadas sobre os negros e os homens podem rir de piadas sobre mulheres. Mas, como é possível negros reproduzirem piadas racistas, mulheres piadas machistas, e LGBTS piadas homotransfóbicas? Há um assujeitamento tão forte ao discurso dominante que leva esses grupos a reproduzirem tais discursos? Parece que essas perguntas só podem ser respondidas pela determinação ideológica no processo de produção humorística.


Acreditamos que há, portanto, esse assujeitamento, mas também entendemos que o humor "suaviza" o preconceito presente nessas produções, funcionando principalmente como um discurso "não sério" e, assim, "não verdadeiro", entendido como "só piada". Com isso, ignora-se que os discursos humorísticos também operam no processo de reprodução de pressupostos ideológicos que naturalizam as relações de exploração e de opressão. O autor entende que, mesmo que as piadas tenham um funcionamento particular, com regras próprias à comicidade, não é possível isolá-la do social, sendo assim, elas exercem influência e têm reponsabilidade para com a sociedade.


De acordo com Gruda , "a frase de espírito tendenciosa, deste modo, afirma, ainda que metaforicamente, posturas e visões de mundo, as quais em tese não poderiam ser enunciadas abertamente por conta das repressões ocasionadas pelas relações sociais". Entendemos que a misoginia nas últimas décadas sofre um processo de recalque pelo grupo social e teria vazão na forma de formulações humorísticas de caráter chistoso, "nestas frases estão embutidos desejos e impulsos formados inconscientemente, os quais, ao emergirem ao consciente, trazem consigo ideias que correntemente são e estão interditas e/ou proibidas de serem enunciadas, explicitando-as" .


No que diz respeito à liberdade de expressão ilimitada, retoma o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos que diz respeito às garantias de expressão dos sujeitos: "Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras." Ou seja, a liberdade de expressão não é ilimitada na medida em que nela inclui-se o respeito ao outro. A própria Constituição brasileira estabelece limites para essa liberdade. Encontramos, no artigo 5°, incisos IX e X, respectivamente: "IX -é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença"; e "X -são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" .


Para o que nos propomos nesta pesquisa, não procedemos a investigar as especificidades das plataformas digitais (o vídeo foi originalmente publicado nas redes sociais do humorista, e ganhou grande circulação no Twitter, Facebook e Youtube) as quais foram meio de divulgação do nosso vídeo-corpus; no entanto, há que se destacar muito rapidamente, em vista de uma reflexão sobre a dimensão da violência exercida, algumas características desse meio e do público que o utiliza: a) persistência, ou seja, as informações que são publicadas permanecem online; b) replicabilidade, as informações publicadas são facilmente replicáveis (e de forma idêntica ao original); c) escalabilidade, a difusão de informações pode ser escalada dentro das redes, construindo visibilidade; e d) "buscabilidade", que é a capacidade dessas informações serem buscáveis nesses espaços. (RECUERO; Diante da publicação do vídeo em questão pelo humorista em suas redes sociais, nas quais o mesmo tem milhões de seguidores e apoiadores, é interessante pensar que a ofensa à deputada Maria do Rosário estará disponível por longo tempo, fragilizando sua figura, principalmente sua figura pública enquanto ocupante de cargo eleito, pois, conforme Recuero e Soares , o humor envolve 1º) uma dualidade constitutiva, a contradição; 2º) um processo desmistificador, porque geralmente desvela o que se esconde; 3º) a imprevisibilidade; 4º) a liberação de tensões; 5º) a ruptura com o estabelecido; 6º) a introdução do diferente.


A autora analisa o processo discursivo dos provérbios e suas alterações humorísticas a partir da articulação entre intradiscurso e interdiscurso. Segundo , as alterações "interligam enunciados contraditórios servindo-se da similaridade [no nível intradiscursivo] para introduzir o diferente [resgatando saberes de diferentes regiões do interdiscurso]". Na introdução do diferente, geralmente, há a quebra das expectativas sociais, morais ou éticas socialmente impostas, advindo daí a ruptura. Na maioria das alterações, o humor foi identificado a partir de incongruências ou deslocamentos decorrentes da sobreposição de novos significados aos provérbios de origem, rompendo com os sentidos estabelecidos pelo original. A sobreposição dos significados incongruentes apontava para uma articulação contrária ao poder, denunciando posições-sujeito distintas entre o provérbio (censura) e sua alteração (desejo).


A autora procurava por falhas no ritual da interpelação ideológica que permitissem ao sujeito enunciar aquilo que é da ordem do desejo e, assim, subverter a ideologia dominante e promover rupturas no instituído pelo poder. A análise dos mecanismos do humor atesta que, "ao lado do discurso do poder e da censura, existe um espaço de liberdade/luta frente ao processo significante da interpelação ideológica" .


Citando Gramsci, a autora apresenta a sociedade como um bloco unificado pela ideologia dominante, que é imposta a outros grupos sociais e sustentada pelo senso comum. Usualmente, o humor é empregado para criticar e denunciar as evidências estabelecidas pela ideologia dominante; contudo, nem sempre essa relação se dá dessa forma. De acordo com pertencendo a uma emissora de direita, as críticas a discursos cristalizados dentro dessa formação discursiva aparecem como brincadeira. Desse modo, lá nos atos de resistência do sujeito frente ao discurso dominante poderíamos ter encontrado o humor dentre os elementos elencados por Pêcheux.


De passamos a Oliveira (2022) para pensar o cenário atual da teoria pêcheuxtiana sobre esse objeto discursivo. É destacada a necessidade de investigar o humor não somente em seus elementos linguísticos, mas também em relação às condições de produção histórico-ideológicas nas quais o sujeito está inserido e pelas quais o humor é produzido. ) lembra-nos: "Pêcheux não escreve sobre como fazer graça, escreve sobre sua matéria-prima que são as condições de produção históricas em que a piada acontece. Humor é efeito". Desse modo, a Análise de Discurso, articulando o sujeito, a linguagem e a ideologia, se interessa pelo processo discursivo, questionando "como" o discurso humorístico é produzido e como funciona em determinadas condições de produção.


Na construção de seu dispositivo analítico, Oliveira (2022) mobiliza e articula principalmente três noções, a saber, trilha discursiva, construto discursivo e significantes/enunciados de borda. Conforme o autor, uma trilha discursiva é formada por pelo menos dois construtos discursivos, estes entendidos como "abrigo de matrizes parafrásticas" que se alternam entre a enunciação e o silenciamento.


Cada construto comporta uma formação discursiva com suas formações imaginárias e sentidos cristalizados na sua rede de saberes e memória. No entanto, sabemos que as fronteiras entre uma FD e outra não são impermeáveis, elas são fluidas e sempre sujeitas à irrupção de pré-construídos e ao discurso transverso.


Nesse espaço de fronteira são encontrados significantes ou enunciados-borda, elementos fundamentais para a construção do efeito humorístico no discurso. Na explicação do autor:


Esses significantes colocados nas fronteiras das FDs criam o efeito humor, ao reconhecer os saberes de dois ou mais espaços do interdiscurso. A organização linguística dos significantes faz com que os sentidos se renovem. Não somente pelos sentidos oferecidos pelas diferentes Formações Discursivas, mas pela intersecção dos sentidos que trazem sentidos-outros renovados. Em vista disso, entende-se que o humor é construído na intersecção de dois ou mais construtos discursivos, intersecção que se dá por meio de significantes ou enunciados de borda das formações discursivas de cada construto. Considerando Baronas e Aguiar (2009) analisam o funcionamento discursivo de charges humorísticas, propondo um deslocamento do conceito de acontecimento discursivo de Pêcheux, respaldados nos estudos de Sírio Possenti, para que, ao se analisar um acontecimento discursivo, se levem em consideração não apenas àqueles acontecimentos que se inserem numa determinada série, como propõe a Análise do Discurso de base pecheutiana, ou acontecimentos de longa duração como propõem os historiadores, mas tudo mesmo o que se diz em distintas materialidades acerca de um determinado evento, independentemente da duração de suas temporalidades.


É retomada a análise de Pêcheux (2008) referente ao enunciado "On a gagné", que circulou na França pós vitória de François Mitterand, na qual o autor questiona "Quem ganhou? Ganhou o quê? Como? Por quê?", e assim entende que, no campo político, "X diz X que pode significar a partir de diferentes formações discursivas Y, Z, W". No campo humorístico, identificam um funcionamento diferente: "X prefere dizer Y (humoristicamente) porque pensa a partir de uma determinada formação discursiva (seriamente) Z".


Situando essa proposição em nosso corpus, diríamos que o humorista Danilo Gentili prefere dizer senho. ra ou encaminha o envelope com os papéis rasgados "com todo o respeito. Vossa Excelência, com todo o respeito, pela mor de Deus, hein" porque pensa a partir de uma determinada formação discursiva seriamente que a deputada não merece o respeito, e assim diz fazer piada para realizar sua agressão à deputada. Segundo os autores, a derrisão é uma marca distinta no humor brasileiro, pois independente do conteúdo que está veiculado no discurso humorístico, este está sempre sobredeterminado pela derrisão ao outro.


Como observa , pensando as condições históricas que moldaram os discursos sobre as mulheres, diante de um cenário de crescente avanço rumo à igualdade de gênero, é natural e esperado que discursos machistas gradualmente percam legitimidade. Consequentemente, nos discursos sobre mulheres, aqueles em que o machismo for identificado, geralmente encontrará aversão por grande parte da sociedade, pelo menos daqueles identificados com um discurso defensor da igualdade de gênero. No entanto, quando o machismo está vinculado a discursos humorísticos, como no caso das piadas, este não desenvolve a mesma revolta. Atualmente, há uma maior problematização da relação entre humor e machismo, principalmente devido à atuação de grupos e pesquisadoras feministas. 3) questiona "o que faz com que determinados discursos sobre a mulher (que já deixaram de circular "oficialmente" em outros espaços) continuem a ser comuns no domínio do humor?". Este seria um espaço bastante fértil para reprodução de estereótipos preconceituosos por se apresentar livre das sanções da sociedade.


A autora defende que os estereótipos arraigados na memória discursiva e as evidências presentes nas piadas sobre mulheres acabam constituindo os sentidos sobre ser mulher em nossa formação social, afetando, inclusive, o modo de identificação e subjetivação destas. O humor, desse modo, mesmo quando sob a aparência de discurso de entretenimento cujo objetivo é somente prover o riso ou o alívio de tensões, produz efeitos nas práticas dos sujeitos subvertendo ou legitimando o estado de reprodução das relações.


Em suas análises sobre quadros humorísticos impressos, percebe certa incongruência entre o enunciado verbal e a imagem na qual este está inserido. Segundo a autora, um ponto de vista não assumido no nível verbal pode aparecer presente, assumido, no nível imagético gerando efeito humorístico. Essa prática parece presente também em nosso corpus, quando o humorista não assume sua posição (ou forja uma posição outra de respeito) no nível verbal, referindo-se à Maria do Rosário como deputada, e, no nível gestual-imagético, assume sua posição de antagonismo à deputada referindo-a como puta.


Recuero e Soares Refletimos sobre a dimensão violenta do humor, pois entendemos que a presença deste pode legitimar discursos que seriam condenados de outro modo. Se as mesmas palavras, expressões e proposições colocadas em circulação por Danilo Gentili tivessem sido empregadas em outras condições de produção, produzidas fora da pressuposição humorística atrelada ao seu discurso, provavelmente elas seriam objeto de uma discussão voltada para a opressão de gênero, para a violência. Assim, o humor empregado em nosso corpus permite que a defesa do humorista caracterize a condenação judicial imputada ao comediante como um ato 52 Informação disponibilizada por Alan Lobo de Souza me palestra intitulada "Memória e esquecimento no humor". Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CCo9nalo 2b/. Acesso em: 14 jul. 2022. de censura à liberdade de expressão e ganhe o apoio de parte da população. Se não houvesse o humor no vídeo elaborado pelo humorista, acreditamos que este obteria menor apoio.


O vídeo e o humor: linguagem, gesto, entonação, sugestão.


Trabalhamos com o termo discurso humorístico para referir aos enunciados verbais e não verbais, nos quais são investidas estratégias discursivas para promover efeito humorístico. Estas constituem-se na relação do intradiscurso (enquanto nível da formulação) e do interdiscurso (como nível da constituição dos discursos), produzindo efeitos de sentidos para os sujeitos de acordo com a formação discursiva de sua interpelação. No processo de produção do discurso 53 , há ainda um terceiro momento tão importante quanto os anteriores, a saber, sua circulação, ou seja, "em que meios e de que maneira" os sentidos circulam: "escritos em uma faixa, sussurrados como boato, documento, carta, música, etc." (ORLANDI, 2012b, p. 12). Esses momentos não são dissociados um do outro e devem ser contemplados de forma inter-relacionada nas análises.


Entendemos que um enunciado que circula sob o modo humorístico (de que maneira) em um programa de humor (em que meios) produzirá efeitos de sentidos diferentes caso circule em outro meio e dissociado das técnicas humorísticas, ainda que o "conteúdo" do discurso seja o mesmo. Em O Riso dos Outros (2012) Antônio Prata parece estar em consonância com nosso entendimento: Se o cara fala: "eu acho que as mulheres feias devem ser estupradas" ele vai ser talvez preso. Se ele fala, por outro lado, "as mulheres feias deviam ser agradecidas quando são estupradas porque pelo menos alguém as quis", isso passa como uma piada e esse cara pode falar isso, embora ele esteja falando a mesma coisa. Para finalizar essa seção de análise, gostaríamos de retomar Michel Pêcheux quando, a partir de sua teorização sobre o efeito de pré-construído, emerge a questão das anedotas e da ironia. investigava o efeito de pré-construído como a discrepância "entre a estranheza familiar desse fora situado antes, em outro lugar, independentemente, e o sujeito identificável, responsável, que dá conta de seus atos", esclarecendo que tal discrepância funciona por contradição, quer o sujeito, em toda sua ignorância, se submeta a ela, quer, ao contrário, ele a apreenda por meio de sua agudeza de "espírito": um grande número de brincadeiras, anedotas, etc., são, de fato, regidas pela contradição inerente a essa discrepância; elas constituem como que sintomas dessa apreensão e têm como sustentáculo o círculo que liga a contradição sofrida (isto é, a "estupidez") à contradição apreendida e exibida (isto é, a "ironia") O autor reconhece, então, uma discrepância entre aqueles que percebem sua submissão e expõem a contradição, e aqueles que se mantém dentro do processo de interpelação, reproduzindo-a sem questionamentos. As produções humorísticas como as anedotas e a ironia funcionariam como sintomas do reconhecimento desse processo que passa da contradição sofrida à apreensão e exposição dessa contradição. O humor produzido por Danilo funciona de modo diferente: ele submete-se à contradição sem apreendê-la, de modo que o humor de Danilo não é sintoma da apreensão do processo de interpelação: ele permanece subordinado à formação discursiva da ideologia dominante que reproduz relações de opressão.


Violência e Gênero.


A violência de gênero geralmente é praticada pelo gênero hegemônico contra os gêneros não-hegemônicos, como mulheres, homossexuais, travestis, transgêneros, não-binários, etc., ou seja, é exercida contra aquele que ousar subverter os saberes hegemônicos da ideologia cisheteronormativa, que tem como Da perspectiva da AD, Lunkes considera a violência em um amplo processo discursivo: trata-se de um conjunto de gestos de violência que, pela evidência ideológica da formação social capitalista, corroboram e legitimam desigualdades de toda ordem, seja de classe, de raça e/ou gênero, que atuam não apenas no sentido de verticalizar/hierarquizar as relações, mas também de cristalizar os efeitos de superioridade e inferioridade colocados em jogo no discurso de um sujeito ou grupo sobre outro. A cisheteronormatividade interpela-nos de tal modo que crianças nascidas com órgãos masculinos e femininos logo são submetidas à cirurgia e a tratamentos com hormônios para que se insiram no padrão estabelecido, pois são identificadas como anomalias e não como algo natural.


No que diz respeito às questões de gênero, ser identificado pelo gênero hegemônico como mulher ou LGBTQI+ a priori já coloca o sujeito em uma relação de violência. Essa identificação, por si só, constitui motivação para o investimento de práticas de violência, posto que está cristalizada em nossa formação social a subjugação do não-hegemônico ao gênero dominante, e, ao encontrar a resistência desses outros, este ainda pode retornar com violência para submetê-los ou extinguilos. Assim, a violência é mobilizada no discurso pelos efeitos de evidência que constroem os sujeitos que reproduzem a violência, bem como aqueles que a recebem. Em uma sociedade assentada sobre o molde da violência, para a reflexão sobre este fenômeno, parece-nos importante chamar os estudos de por sua delimitação do conceito de violência. De acordo com a autora, a violência não é inata ao ser humano, não é uma propriedade biológica que se manifesta no homem como no reino animal. Entendê-la sob uma perspectiva orgânica é demasiado perigoso na medida em que, enquanto processo natural, atribui-se certa glorificação à violência, como se a violência coletiva correspondesse à violência pela subsistência no reino animal. Segundo a filósofa, "a violência não é nem bestial nem irracional" (ARENDT, 2009, p. 81); a violência é instrumental e visa a objetivos específicos. ) aborda a "violência como um fenômeno em si mesmo", diferente do poder, mas frequentemente relacionada a este, daí a tendência em confundi-los como sinônimos ou como derivados um do outro. O poder é caracterizado pela autora como "correspondente à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto" Essas relações de poder são, portanto, móveis, reversíveis, instáveis. Certamente é preciso enfatizar também que só é possível haver relações de poder quando os sujeitos são livres. Se um dos dois estiver à disposição do outro e se tornar sua coisa, um objeto sobre o qual ele possa exercer uma violência infinita e ilimitada, não haverá relações de poder. Portanto, para que se exerça uma relação de poder, é preciso que haja sempre, dos dois lados, pelo menos uma certa forma de liberdade. ). ) aponta para o caráter relacional entre dominação e resistência, afirmando que "não há dominação sem resistência". A própria condenação judicial do humorista pela publicação do vídeo que constitui nosso corpus de pesquisa é interpretada como um gesto de resistência diante da dominação masculina. As insinuações referentes à mulher, caracterizada como "puta", e gestos como o esfregar dos papéis no pênis, que, talvez, em outro momento histórico, não tivessem tamanha repercussão negativa, mas que hoje resultam em uma condenação judicial por injúria, apontam para a importância dos movimentos feministas na desnaturalização da violência de gênero. Diante de uma relação de poder desigual, a resistência à ideologia hegemônica busca promover uma desestabilização nas redes de filiação. Conforme ):


É através destas quebras de rituais, destas transgressões de fronteiras: o frágil questionamento de uma ordem, a partir do qual o lapso pode tornarse discurso de rebelião, o ato falho, de motim e de insurreição: o momento imprevisível em que uma série heterogênea de efeitos individuais entra em ressonância e produz o acontecimento histórico, rompendo o círculo da repetição.


Conforme , o "exercício do poder consiste em 'conduzir condutas' e em ordenar a probabilidade". Diante do poder conferido a Danilo não estava na probabilidade que Maria do Rosário exigisse o apagamento dos tweets publicados em 2022. Essa conduta inesperada leva o poder a recorrer à violência, no caso à violência de gênero, na tentativa de voltar a conduzir a deputada, conduzi-la a uma posição de subordinação. Esta deve deparar-se com a ofensa (falsa, cínica nojenta) e, no lugar de questioná-la e buscar retratação (pela notificação), deve aceitá-la; caso contrário, a próxima ofensa pode e deverá ser mais agressiva a fim de reprimi-la (publicação do vídeo nas redes sociais). ), a partir da teorização de Foucault, diz que "conduta" é ao mesmo tempo o ato de "conduzir" os outros e a maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades". Compreendemos, assim, que o poder nas relações de gênero se dá pela "condução das condutas" do gênero dominado pelo gênero dominante. Às mulheres corresponde um campo de possibilidades que é estabelecido pelos homens; nele a liberdade se dá na medida em que esse campo é mais ou menos flexível. Ao ocupar um posto de poder, Maria do Rosário torna-se mais exposta à violência, uma vez que, para a reprodução do discurso patriarcal, é necessário a marginalização das mulheres, de tal modo que, no discurso analisado, Maria do Rosário parece usurpar de um posto que não é seu: a posição de deputado é para o homem, a deputada só pode existir enquanto puta.


De modo paradoxal, quanto mais questionadora a mulher se apresentar, mais estará sujeita a violência.


Desordenar o instituído, aquilo que define os pressupostos constituintes da construção identitária, pode gerar a violência contra o gênero, e "essa violência tem muitas caras, algumas disfarçadas de tradição, de moralidade, outras sem disfarce algum, mas sempre carregadas de algum tipo ou quantidade de poder que lhes permitam violentar em alguma extensão" . Concordando que essa violência tem muitas caras, diríamos também que ela pode ter a cara do humor que, mesmo a disfarçando, reproduz a opressão de gênero, talvez justamente por disfarçá-la o humor reproduza essa opressão pois, quanto mais sutil a violência, mais difícil é sua visibilização e combate.


Assim como Arendt, Foucault estabelece diferenças entre relações de poder e relações de violência, apontando para a necessidade de discurso nas relações de poder e a anulação do outro nas relações de violência.


Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre coisas: ela força, ela dobra, ela quebra, ela destrói: ela fecha todas as possibilidades; ela não tem, portanto, junto dela nenhum outro polo a não ser o da passividade; e se ela encontra uma resistência, ela não tem outra escolha a não ser a de procurar reduzir essa resistência. Uma relação de poder, ao contrário, articula-se sobre dois elementos indispensáveis para que ela seja, justamente, uma relação de poder: que "o outro" (aquele sobre quem ela se exerce) seja bem reconhecido e mantido até ao fim como sujeito de ação; e que se abra, frente à relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis. Discursivamente, temos consolidado em nossa formação social uma rede de saberes que prevê a opressão da mulher ao homem. Tais saberes são reproduzidos pelos aparelhos ideológicos de estado que constituem, conforme , "um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas", tais como a instituição religiosa, a escolar, a familiar, a midiática, dentre outras. Em sua teorização, o autor pesquisava o funcionamento dos AIE na reprodução das relações de produção, que seriam, em última instância, relações de exploração; em nosso estudo entendemos que os AIE funcionam de modo parecido na reprodução das relações de gênero que também constituem em última instância relações de exploração e opressão.


Vide como exemplo a dupla jornada de trabalho das mulheres evidenciada pela ideologia cisheteropatriarcal como algo natural e não construído. A interpelação é tão eficiente na construção das evidências que a grande massa de mulheres não questiona porque ao chegar em casa depois do horário comercial o homem descansa e a mulher cuida da casa e dos filhos. Além de ter trabalho remunerado, a mulher é responsável pelo trabalho reprodutivo, ou seja, pelo trabalho que gera a força de trabalho na nossa formação social. Ela exerce a função de cozinheira, faxineira e babá sem esse reconhecimento porque essa relação, pelo trabalho da ideologia, e aí compreendidos os AIE, se tornou evidente. Entendemos, desse modo, que a reprodução das relações de gênero se dá nos AIE.


Conforme o autor, os AIE funcionam fundamentalmente por meio da ideologia; todavia, não quer dizer que estes sejam incompatíveis à violência; ainda que de forma menos evidente, a violência é presente nos AIE. Estes são determinados pelo ARE, que, por meio da repressão, da violência, da censura, garante condições para o funcionamento dos AIE. É importante lembrar que o ARE é determinado pelo poder de Estado, ou seja, pela ideologia dominante, pela classe que detiver o poder. Assim, o ARE determina os AIE que estabelece as relações de produção e reprodução das relações de poder com base no que a classe dominante estabeleceu.


Entendemos que as instituições que correspondem aos AIE reproduzem a ideologia hegemônica do patriarcado e mantém as relações de poder relativamente estáveis. Na disputa de sentidos pela posição dominante, os AIE são fundamentais, pois, conforme o autor, "nenhuma classe pode, de forma duradoura, deter o poder de Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideológicos de Estado" . Assim como reproduzem a ideologia dominante, os AIE podem constituir meios à reprodução da resistência:


A classe (ou a aliança de classes) no poder não dita tão facilmente a lei nos AIE como no aparelho (repressivo) do Estado, não somente porque as antigas classes dominantes podem conservar durante muito tempo fortes posições naqueles, mas porque a resistência das classes exploradas pode encontrar o meio e a ocasião de expressar-se neles, utilizando as contradições existentes ou conquistando pela luta posições de combate. emerge a violência, caracterizada como "síndrome do pequeno poder" que lhes garante o poder pelo gênero.


Em termos de classe, por exemplo, exceto para uma elite, todos são dominados/explorados. Enquanto que os homens desfrutam do poder nas relações de gênero, isso não lhes permite mudar as relações de poder de classe prevalecente, razão pela qual o seu poder de gênero é uma síndrome do pequeno poder utilizado para compensar a dominação em outras áreas. ).


É nesse pequeno poder que Danilo se respalda para agredir Maria do Rosário: ambos são pessoas brancas, de classe abastada e escolarizados, mas, quanto ao gênero, ela perde, pois o homem cisheteronormativo vale mais que a mulher cisheteronormativa, vale mais do que qualquer outro lugar na formação social.


Conforme , a imagem estereotipada de um homem agressivo como aquele que irrompe em explosões de raiva corrobora na manutenção da violência contra a mulher, sob a evidência dessa imagem de agressor ignora-se que a violência de gênero é estrutural e reproduzida por qualquer um, até mesmo pelos ditos "cidadãos de bem". Essa estereotipia também permite que a misoginia no discurso humorístico seja invisibilizada, pois, nele, o ódio não se apresenta como explosão e sim como pilhéria. Por meio da materialização da ideologia na linguagem, podemos pesquisar as relações construídas entre os sujeitos. Em nosso corpus, a ideologia se materializa tanto na língua quanto nos gestos, nos sons, nos enquadramentos da câmera. A partir da materialidade do corpus discursivo compreendemos o funcionamento de uma posição sujeito misógina, caracterizada pela incapacidade de tolerar a mulher que não conforma os padrões estabelecidos pela ideologia hegemônica, pelo desejo de aniquilação dessa, e pelo prazer em produzir seu sofrimento e humilhação.


A violência pode ser exercida de diversas formas e todas elas pressupõem que danos sejam causados ao seu alvo. A violência contra a mulher pode ser exercida de forma física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, em todos os casos a dignidade da mulher é atingida. Uma das especificidades da violência é a humilhação. , em seu estudo sobre as humilhações políticas, diz que, por humilhação, entende-se:


Uma situação particular na qual se opõem, em uma relação desigual, um ator (individual ou coletivo) que exerce uma influência, e, do outro lado, um agente que sofre essa influência. A situação humilhante é, por definição, racional: comporta uma agressão na qual um sujeito (individual ou coletivo) esperada. Há, no entanto, a possibilidade de revolta contra a humilhação. Nessas situações, o sujeito rejeita a humilhação e busca a afirmação de sua dignidade. Por isso, entendemos a condenação judicial do humorista decorrente da denúncia de Maria do Rosário frente a humilhação exercida contra sua imagem como um ato de resistência, de rejeição da humilhação sofrida.


Conforme Para explicitar esse caráter da linguagem, Žižek elabora uma discussão sobre a onda de violência que algumas caricaturas do profeta Maomé, publicadas em um pequeno jornal da Dinamarca, geraram não só na Europa, mas em diversos países muçulmanos. Segundo o autor, é a linguagem o primeiro e maior fator de divisão entre nós, é devido à linguagem que nós e os nossos próximos podemos viver "em mundos diferentes" mesmo quando moramos na mesma rua. O que isto significa é que a violência verbal não é uma distorção secundária, mas o último recurso de toda a violência especificamente humana. Žižek (2014, p. 49) discute o poder da linguagem enquanto meio de reconciliação e mediação, provocando-nos: "e se os humanos superassem os animais em sua capacidade de violência precisamente porque falam?". O autor estabelece relações entre a violência concernente à linguagem e à reprodução das relações de dominação. A partir das análises de Žižek sobre a manutenção do racismo através da designação do negro como inferior, propomo-nos a pensar a manutenção do machismo pela designação da mulher como ser inferior. Segundo o autor, o ser de qualquer sujeito é um ser social e simbólico que "quando tratados como inferiores, isso os torna realmente inferiores no âmbito de sua identidade social simbólica" .


Na perspectiva da Análise de Discurso, os sujeitos constituem-se via interpelação ideológica e inconsciente; ao serem interpelados como inferiores ou superiores, os sujeitos reproduzem esses sentidos em seus discursos, constituindo historicamente as relações de gênero. Desse modo, o processo de interpelação age na reprodução da ideologia do patriarcado conduzindo os sujeitos a ocuparem seus lugares nas relações de poder pelo gênero, encaminhando a mulher à posição subjugada e o homem à posição dominante. Esse processo se dá de forma inconsciente e produz um efeito de naturalização das relações sociais: "as coisas são assim porque sempre foram assim". As relações de superioridade ou inferioridade são moldadas pela ideologia hegemônica que se vale dos AIE para disseminar seus pressupostos; são construções sociais que estabelecem hierarquias (o rico é superior ao pobre, o branco ao negro, o homem à mulher, e assim adiante). Será superior àquele que detiver meios que atendam aos pressupostos hegemônicos. Em uma sociedade neoliberal e patriarcal, há uma rede de saberes que constroem as posições de superioridade. Temos como pressupostos dessa rede a capitalização de recursos, a detenção dos meios de produção e, no que diz respeito ao gênero, a adaptação ao padrão cisheteronormativo com privilégio ao homem; aos demais, cabe a inferioridade. É a partir da "imposição de certo campo simbólico" (ŽIŽEK, 2014, p. 49), característica da linguagem, que as relações de dominação podem se manter. Pela imposição de um universo de sentidos determinou-se historicamente a inferioridade da mulher e naturalizou-se como instrumento para sua subjugação à violência.


Pesquisar a violência sob uma perspectiva discursiva pressupõe entendê-la a partir das condições sócio-histórico-ideológicas e do simbólico.


A violência exercida por meio da linguagem é eficaz em manter a dominação de gênero na medida em que é mais sutil e mais aceita do que a violência física.


Em nosso corpus, a violência é ainda mais sutil uma vez que está travestida de piada, de brincadeira. O choque ao presenciar cenas de agressões físicas, com socos, chutes e etc,. é muito maior do que o choque ao testemunhar uma agressão verbal. Por parecer de importância menor, a violência exercida pela linguagem vai passando despercebida, e gerando efeitos. Sabemos, a partir de Pêcheux, que a língua é a base material por excelência onde a ideologia se materializa, e a ideologia machista reproduzida na língua pode culminar na violência exercida fisicamente.


Assim, parece-nos que o discurso humorístico utiliza com propriedade a violência que a linguagem pode condensar, pois, ao disfarçá-la de "brincadeira", potencializase sua reprodução, muitas vezes culminando na face mais perceptível da violência caracterizada como subjetiva por Žižek.


Han Sabemos que só é possível deslizar as relações de dominação de gênero a partir da ascensão das mulheres a espaços públicos, a espaços de visibilidade; no entanto, uma vez que a própria formação social capitalista impõe empecilhos à igualdade de gênero, devemos questionar a estrutura.


Conforme , "a crença nas resoluções dos problemas femininos, sem a resolução dos entraves colocados à mulher pela própria estrutura capitalista, é idealismo". Ainda hoje as mulheres perdem empregos por sua "condição feminina", por engravidarem. Receando que as mulheres tenham baixa produtividade no emprego em função dos cuidados com os filhos, é comum empregadores descartarem mulheres mães automaticamente; o mesmo, no entanto, não acontece com homens pais.


Ainda segundo a autora, para que se possa romper com a ideologia hegemônica patriarcal é necessário atentar para as formações imaginárias construídas em torno da maternidade como a condição natural e essencial da mulher. A partir das capacidades biológicas para gestar e aleitar projetam-se na mulher estereótipos e se reduzem suas atividades à maternagem, e todas as outras esferas da vida da mulher estão em segundo plano em relação à realização da maternagem. A ideologia androcêntrica se respalda nas diferenças biológicas entre homens e mulheres produzindo efeitos de valor nos quais a mulher está sempre em desvantagem.


Em suas entrevistas com mulheres e vizinhos de mulheres vítimas de violência doméstica, a autora aponta para a presença de "um discurso da inevitabilidade da agressão" (MAGALHÃES, 2005, p. 32), na medida em que a superação da violência de gênero, justificada pela natureza ou pelas condições sócio-históricas, só parece ser possível no nível individual e circunstancial. Daí a importância dos movimentos feministas na desnaturalização da supremacia do homem. A violência de gênero é consequência de uma estrutura que funciona em hierarquias, que tem como condição para seu funcionamento a subjugação de um outro. A passagem ao ato é somente efeito dessa estrutura que, ao se perceber ameaçada por práticas de resistência, retorna com maior violência para extinguilas.


Ao investigarmos as relações de gênero construídas historicamente, apontamos para a constante atuação da violência na construção da dominação masculina. Apesar de identificarmos alguns avanços no que concerne à punição dos agressores que exercem violência física, há ainda diversos mecanismos que buscam invisibilizar a violência enquanto estrutura das relações de gênero, sendo que o humor é um destes. A partir da diferenciação sexual caracterizada pela ausência ou presença do falo, desde Freud, aponta-se a subalternidade decorrente da natureza da mulher em comparação à natureza do homem, estabelecendo-se uma hierarquia em que a dominação é masculina. É dessa hierarquia que o humorista parte para agredir a deputada.


Com o propósito de visibilizar a violência cometida em função do gênero, a própria Organização Mundial de Saúde passou a reconhecê-la como um problema de saúde pública. Acreditamos que, na reconstrução das relações de gênero, são necessárias políticas públicas de desnaturalização e deslegitimação da violência contra a mulher construída tradicionalmente. Não progrediremos em direção à proteção das mulheres, e também dos demais gêneros subjugados e marginalizados, combatendo somente a violência mais explícita que se dá fisicamente, pois esta é efeito de discursos conservadores e misóginos que continuam circulando, produzindo opressões.


Sabemos que a ideologia é bastante eficiente no sentido de garantir sua reprodução. Quando os movimentos feministas se espraiam e as mulheres começam a garantir direitos básicos como o voto, a contracepção e o trabalho remunerado, a ideologia do patriarcado, para se manter na posição dominante, investe-se de estratégias para naturalizar suas práticas. O humor é bastante eficiente nessa tarefa. Ele reproduz os pressupostos hegemônicos sob o efeito de evidência que leva os sujeitos a dizer "não dê importância para o que digo, pois são só brincadeiras", como se "as brincadeiras" não afetassem o funcionamento das relações sociais. Apontamos como estratégia de manutenção pela evidência como piada a utilização do discurso humorístico na reprodução dos saberes hegemônicos respaldados na ideologia patriarcal.


Considerações finais e articulações possíveis.


Iniciamos esta pesquisa com o intuito de verificar a possibilidade de a violência contra a mulher reproduzir-se também por meio do humor.


Questionávamos de que modo esse tipo de violência poderia se manifestar no discurso humorístico, e o que lhe conferia legitimidade para autorizar a circulação de discursos sobre as mulheres que, sob o modo sério, geralmente, encontram maior resistência. Construímos nosso dispositivo analítico de modo que pudéssemos considerar, não somente os elementos linguísticos mobilizados na elaboração do vídeo, mas também os elementos imagéticos, gestuais e prosódicos que, em conjunto, constroem os sentidos do discurso analisado. Entendemos que, caso não fossem articulados desse modo, a análise ficaria comprometida.


Em nosso levantamento teórico nos deparamos com múltiplos funcionamentos do humor: ele pode produzir o alívio necessário ao bem-estar psíquico do sujeito; pode denunciar opressões que, de tal modo naturalizadas, passam despercebidas; ou pode, contrariamente, atuar na reprodução dessas opressões. O humor pode reproduzir violências evidenciando-as como brincadeira e suavizando-as, de modo que, sob a evidência do discurso humorístico como um discurso sem efeito de verdade, é permitido ao sujeito rir sem sentir-se culpado por atuar como cúmplice de um discurso violento ou pode, justamente, funcionar evidenciando-a de modo escrachado. Nesse caso, o riso advém de um ódio mais profundo, pois o prazer emerge pelo reconhecimento do outro intolerável em uma posição no qual ele é alvo de escárnio e humilhação, vem da ridicularização e do reconhecimento de que essa situação causa sofrimento para aquele que é seu alvo.


A análise aponta para o riso de Danilo vinculado a essa última possibilidade.


No que diz respeito ao gênero, o humor oferece muito pouco de seu caráter subversivo. De modo geral, ele é empregado para perpetuar estereótipos machistas e misóginos, reproduzindo opressões e violências. Entendemos que a violência de gênero em nossa formação social não constitui um problema, mas sim condição para existência dessa mesma, em outros termos, ela faz parte do projeto da nossa formação social que se estrutura sob relações de subordinação. O discurso dominante, por vezes, a enuncia como um problema com vistas a acalmar a resistência sem prejudicar o estado de reprodução das relações: em razão disso, se investe na punição da violência física, mas pouco se faz para combater a violência que estrutura essas relações de opressão pelo gênero. Em consequência dessa relação, o humor é alçado como uma estratégia do discurso cisheteropatriarcal para se manter na posição dominante, pois, sob o modo humor, é mais fácil burlar os censores da resistência.


A violência contra a mulher tem início muito antes de se manifestar como agressão física ou feminicídios. Ela se dá todos os dias e oprime todas as mulheres.


Ela ocorre quando o conceito de propriedade excede o âmbito das coisas e passa a ser aplicado à mulher, quando sua moral e honra são condicionadas às suas práticas sexuais, quando a mulher muda de roupa, transporte, ou espaço por medo de ser assediada, quando a maternidade compulsória é uma evidência, quando a dupla jornada de trabalho é exercida como algo natural. Enfim, diante desse cenário podemos dizer que as mulheres são construídas por relações de gênero que podem ser interpretadas como relações de violência.


No corpus, a violência de gênero foi identificada a partir da imposição da designação que apaga a atuação política da deputada, conduzindo-a a uma posição de submissão e marginalização. Ela está presente também no assédio moral e sexual executado pelo gesto de Danilo nas SD 11, 12, 13 e 14, referentes ao momento em que a notificação de Maria do Rosário é destinada à genitália, bem como na SD18, na qual a deputada é ordenada, por meio de um enunciado chulo, a introjetar os papéis destruídos em uma parte de seu corpo, mostrando, mais uma vez, como a posição masculina dominante se entende como detentora/controladora do corpo da mulher. Tais elementos constroem a humilhação da deputada diante do público de Danilo e dos próprios eleitores da deputada, uma vez que o vídeo teve grande repercussão por se tratarem de pessoas públicas em posições de alta visibilidade no país. A violência, no entanto, é articulada a mecanismos do discurso humorístico como, por exemplo, a sugestão na designação, que não é de fato enunciada, e na inserção de elementos musicais inesperados na produção que constroem o riso como estratégia para suavizá-la e, desse modo, reproduzi-la. Esse distanciamento, no entanto, é uma simulação: o sujeito pode reconhecê-la enquanto simulação, e aí surgiria um riso perverso, ou pode ignorá-la, e aí o riso surgiria sob a evidência de que o discurso humorístico não tem efeito de verdade.


Ao mesmo tempo, emerge um sentimento de inquietação pois, sob influência de um pensamento idealista, tínhamos o desejo de tudo dizer, o que não foi realizado. Ainda gostaríamos de analisar a violência de gênero associada a um outro funcionamento do humor, que consistiria no que usualmente se chama de humor cínico. Este, no entanto, deverá ser objeto de estudos em trabalhos posteriores. Ressaltamos que mais do que respostas procuramos produzir novos questionamentos, pois defendemos que desse modo a teoria e a pesquisa se enriquece.


Assumo agora a primeira pessoa, ainda que não seja usual, para esclarecer que esta pesquisa tem sua origem no incômodo causado frente ao que percebia como uma permissão do humor à reprodução do machismo, isto é, enquanto mulher, eu por diversas vezes me deparei com piadas ou "brincadeiras" machistas em diversos espaços e, quando este machismo era sinalizado, geralmente a resposta vinha como "foi uma brincadeira", "você não sabe brincar", de modo que o fato de ser "brincadeira" deslegitimava a denúncia.


Me incomoda sobremaneira essa relação entre o discurso machista e o humor, pois certos "conteúdos" machistas que geralmente não são reproduzidos por mulheres sob o modo sério, o são sob o modo humor. Entendo que isso acontece porque o humor suaviza o machismo, faz dele "brincadeira", e isso é prejudicial, porque os saberes machistas continuam se reproduzindo e gerando efeitos nas vidas das mulheres e homens. Os sujeitos agem como se as "brincadeiras" sobre mulheres não tivessem efeitos, mas, contrariamente, elas podem, até mesmo, legitimar determinadas práticas, pois, no momento em que feminicídios, por exemplo, são passíveis de piadas, esse crime deixa de ser tão bárbaro aos sujeitos.

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