PDF Traçados Cores e Riscos etnografia de uma cidade redesenhada pela pichação graffiti Romanus Dant

Traçados, Cores e Riscos: etnografia de uma cidade redesenhada pela pichação/graffiti.


Busca-se, nesta pesquisa, a realização de uma etnografia sobre pichação/graffiti em Santa Maria, tema controverso e recorrente no debate público local. Trata-se de compreender como são construídas as visibilidades/invisibilidades da pichação/graffiti, as lutas semânticas em torno da construção da inteligibilidade dos acontecimentos acerca da cidade pichada/grafitada. Como objetivos específicos temos: traçar os contornos das regularidades, dos elementos que dão forma aos pichadores/grafiteiros como grupo, suas corporeidades, reciprocidades, valores e motivações; compreender a lógica dos sistemas classificatórios acerca da dicotomia entre os termos pichação e graffiti no debate público local; entender os conflitos e negociações, intra e extra grupo, nessas disputas de sentidos em torno da cidade pichada/grafitada, protagonizadas pelas seguintes forças sociais: pichadores/grafiteiros, Estado (instituições públicas), empresas/proprietários de imóveis pichados/grafitados e jornais/intelectuais/artistas locais; refletir sobre as tensões e a coprodução do olhar etnográfico na interação entre pesquisador e interlocutores da pesquisa. Em termos teóricos, esta etnografia dialoga com autores como Clifford . Metodologicamente, lança-se mão da observação participante, do convívio próximo e prolongado (de 2014 a 2022) entre os pichadores/grafiteiros (24 indivíduos), o que inclui interação nas ruas, no ciberespaço e, até mesmo, compartilhamento de moradia com um deles durante seis meses. Conseguiu-se, com esse aporte teórico e com o trabalho de campo, vislumbrar as inversões, as recombinações e os transbordamentos semânticos das categorias binárias (legal/ilegal, limpo/sujo, certo/errado, luz/sombra, belo/feio, visível/invisível, centro/periferia, etc.) do ato universal de classificar. Com e contra os pichadores/grafiteiros estão o Estado (instituições públicas); as empresas/proprietários de imóveis pichados/grafitados e os comunicadores/intelectuais/artistas locais. Cada uma dessas quatro forças sociais tenciona com as demais, interage em uma lógica de conflito e negociação, possui contradições internas, vias de mão dupla nesses encontros discordantes acerca da cidade pichada/grafitada. Em e entre cada uma dessas forças sociais há diferentes maneiras de construir a inteligibilidade dos acontecimentos, algumas com base em certas dicotomias, no sentido de fomentar a criminalização da prática ilegal, enquanto outras constroem a visibilidade/invisibilidade da pichação/graffiti no sentido de problematizar a criminalização, de transbordar, desordenar e reordenar os sistemas de classificação binários, e/ou promover a prática. Do ponto de vista do processo de interpretação dessas teias de significados, de coprodução do olhar etnográfico, a pichação/graffiti acaba aparecendo como uma espécie de arco narrativo autobiográfico, uma alegoria demarcadora de inflexões na percepção dos sentidos de viver a cidade e na trajetória de vida do próprio pesquisador.


Palavras-chave: Pichação/graffiti. Cidade. Lutas semânticas. Visibilidades/invisibilidades. Etnografia.


AUTHOR: Rodrigo Nathan Romanus Dantas ADVISOR: Dra. Zulmira Newlands Borges.


It is sought, in this research, the realization of an ethnography on pichação/graffiti in Santa Maria, a controversial and recurring theme in the local public debate. It is about understanding how visibilities/invisibilities of pichação/graffiti are constructed, the semantic struggles around the construction of the intelligibillity of the events about the pichação/graffiti in the city. As specific objectives we have: to trace the contours of regularities, the elements that give shape to the pichadores/graffiti artists as a group, their corporeities, reciprocities, values and motivations; to understand the logic of classification systems about the dichotomy between the terms "pichação" and "graffiti" in the local public debate; to understand conflicts and negotiations, intra and extra group, in these disputes of meanings around the pichação/graffiti in the city, carried out by the following social forces: pichadores/graffiti artists, State (public institutions), businesses/homeowners and newspapers/ intellectuals/ local artists; to reflect on the tensions and co-production of ethnographic gaze in the interaction between researcher and research interlocutors. In theoretical terms, this ethnography dialogues with authors as Clifford .


Methodologically, we use participant observation, close and prolonged interaction (2014 to 2022) between the pichadores/graffiti artists (24 individuals), which includes street interaction, cyberspace, and even housing sharing with one of them for six months. It was achieved, with this theoretical contribution and with the field work, glimpses of inversions, recombination, and semantic overflows of binary categories (legal/illegal, clean/dirty, right/wrong, light/shadow, beautiful/ugly, visible/invisible, downtown/periphery, etc.) of the universal act of classifying. With and against the pichadores/graffiti artists are the State (public institutions); the businesses/homeowners and the communicators/intellectuals/local artists. Each of these four social forces intends with the other, interacts in a logic of conflict and negotiation, has internal contradictions, two-way roads in these discordant encounters about the pichação/graffiti in the city. In and between each of these social forces there are different ways of constructing the intelligibillity of events, some based on certain dichotomies, in order to promote the criminalization of ilegal practice, while others build pichação/graffiti visibility/invisibility in the sense of problematizing the criminalization, to overflow, clutter and reorder binary classification systems, and/or promote the practice. From the point of view of the process of interpretation of these webs of meanings, of coproduction of the ethnographic, the pichação/graffiti ends up appearing as a sort of autobiographical narrative arc, an allegory demarcating inflections in the perception of the senses of living the city and in the life trajectory of the researcher himself.


maneira simplista: "é rock". Então, em minha ingenuidade pueril, fiz a seguinte associação: músicas = rock = Titãs = pichação. Ou seja, para mim, todo rock era Titãs e tinha ligação direta com aquele muro pichado.


Quando estava na sétima e oitava série do ensino fundamental, eu desenhava nas classes e nas paredes do "fundão" da sala de aula, reproduzia com o traçado do lápis 6B sobre tais superfícies as cenas dos porn movies que assistia, às escondidas, em fitas VHS roubadas do irmão mais velho de um colega da escola. Logo mais, ao ingressar no ensino médio e dar início à vida sexual, deixei de lado a prática de rabiscar cenas libidinosas nas classes e comecei a pichar com tinta spray os muros da cidade com os nomes de bandas de rock, dentre elas, o da minha recém-formada banda de garagem:


"Dark" (assinado com um "A" de anarquia, embora nunca tivesse lido nenhum autor anarquista). A principal motivação para pichar, além de prestar tributo aos ídolos, era a busca por adrenalina, a sensação de ser o dono das ruas durante as incursões pelas madrugadas gélidas de inverno e o descobrimento de uma "outra cidade" ao percorrer a pé as linhas do trem, a malha férrea. Naquele ano, meados de 2001, saiu uma matéria no jornal local falando sobre a onda de "pichações sem sentido" que estava ocorrendo na cidade, algo que me deixou bastante irritado: "como assim, pichações sem sentido?!". Metodologia do Ensino (LAMEN), que encaravam a rua como um espaço de educação, um palco de trocas de saberes e experiências não escolares, algo que despertou em mim outro olhar sobre a pichação. Além do olhar acadêmico, os seis anos de afastamento também contribuíram para certo estranhamento, pois não se tratava mais da mesma cidade nem da mesma "tribo", e eu não era mais o mesmo.


Em Cruz Alta havia poucas inscrições pelos muros, não se fazia uso do termo "graffiti", apenas "pichação", e os pichadores eram apenas jovens fãs de rock que pegavam em latas de spray para escrever nomes de bandas e frases obscenas pela cidade. Já em Santa Maria, os termos "graffiti" e "pichação" eram usados de maneira paralela, havia a noção de conexão com um movimento global de graffiti através do consumo de revistas brasileiras e estrangeiras de street art (arte de rua). Outro diferencial era o fato de que os pichadores/grafiteiros não escreviam nomes de bandas pela cidade, mas as tags (siglas/assinatura) de suas crews (grupos de pichadores/grafiteiros). Além disso, os pichadores/grafiteiros de Santa Maria ouviam rap, andavam de skate, tinham outras gírias, outro tipo de vestuário, faziam desenhos coloridos e elaborados, colavam adesivos artesanais (stickers) pelas ruas e em vagões de trem. : "o sentido do familiar e do exótico é complexo, precisamente porque os dois termos não devem ter uma implicação semântica automática". Existem níveis de familiaridade: nem tudo que é familiar é necessariamente conhecido, e o inverso também se aplica: nem tudo que é exótico é necessariamente desconhecido. Em suma, em Santa Maria eu estava diante de coisas relativamente familiares, mas, em grande medida, desconhecidas para mim.


Ao ingressar no mestrado, em fevereiro de 2014, talvez tenha sido mais difícil estranhar a pichação/graffiti do que no início da pesquisa da graduação, em 2007.


Entretanto, o contato cotidiano com pessoas leigas em relação ao tema possibilita o exercício de estranhamento, principalmente a partir dos meus alunos e colegas de trabalho que fazem comentários como: "não quero meu muro riscado"; "pichação é poluição visual"; ou "quem picha meu muro sem meu consentimento está passando por cima da minha liberdade", os quais refletem um pouco as tensões existentes em relação aos sentidos da vida urbana. Como ressalta Gilberto : "sendo o pesquisador um membro da sociedade, coloca-se, inevitavelmente, a questão de seu lugar e de suas possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo e poder 'por se no lugar do outro'". Nesse caso, a aproximação em relação ao lugar do outro não se refere apenas ao lugar dos pichadores/grafiteiros, mas também ao lugar dos indivíduos leigos em relação ao graffiti/pichação e/ou que discordam de tal prática, tendo em vista que seria difícil (e um tanto tendencioso) analisar a graffiti/pichação se fosse levada em conta unicamente a visão de seus praticantes. Não sei até que ponto ficaram para trás o meu "Eu" adolescente, que riscava paredes, e o meu "Eu" graduando, deslumbrado com o estudo da pichação/graffiti enquanto fenômeno social desviante, mas, certamente, esse trânsito até o mestrado e os (des)encontros que permearam a etnografia apontam na direção de um esforço por um olhar mais descentrado e atento às discordâncias.


Temos, assim, nas primeiras linhas deste texto, os primeiros riscos: risco é uma alegoria que se desdobra ao longo dos capítulos; risco em amplo sentido, entendido como rabisco, traçado de letras e desenhos; risco de cruzamento e cruz; risco enquanto probabilidade de perigo, de ameaça física para o indivíduo e para a propriedade; risco intrínseco ao pensamento; risco enquanto corte, ruptura que instaura a lacuna, mas também como fio que liga e se esforça para costurar sentidos; risco, sobretudo, porque se trata de observação participante e etnografia, ou seja, uma questão de tensão (a relação com os interlocutores, a experiência de campo e o processo de escrita etnográfica, marcados por uma ontológica instabilidade), um empreendimento incerto, uma questão de reciprocidade que carrega a probabilidade de insucesso, algo que não depende exclusivamente da vontade dos indivíduos e grupos envolvidos.


O desenrolar desses percursos erráticos resultou em uma narrativa etnográfica, um exercício interpretativo composto por cinco capítulos. No primeiro, "O design do objeto", estabeleço as bases teóricas que orientam o meu olhar, o processo de construção do objeto de pesquisa e da problematização que a moveu. As categorias analíticas visibilidade/invisibilidade e lutas semânticas, juntamente com os desenhos e redesenhos preliminares da pesquisa de campo, são apresentadas como centrais na formulação do problema de pesquisa. Como se dá a construção das visibilidades/invisibilidades da pichação/graffiti em Santa Maria? Como se dão as lutas semânticas em torno da construção da inteligibilidade dos acontecimentos acerca da cidade pichada/grafitada? O percurso etnográfico aqui narrado gira em torno da busca por respostas para essas questões.


No capítulo dois, "Um croqui das urbanidades", trato de estabelecer algumas regularidades da pichação/graffiti em Santa Maria, de traçar os contornos daquilo que é comum aos pichadores/grafiteiros da cidade, aquilo que lhes dá forma enquanto grupo.


Para isso, elenco alguns critérios estilísticos, as corporeidades, e, em especial, as gírias.


A partir do léxico dos pichadores/grafiteiros, procuro abrir caminhos para interpretar esse mundo de sentidos. Chamo a atenção para a maneira como eles circulam pela cidade, seus pontos de encontro, apontando também alguns dos principais elementos que permitem o reconhecimento dos interlocutores perante seus pares, assim como os conflitos intra e extra grupo.


Em seguida, no capítulo "Linhas Tortas pela Cidade", o fio condutor da narrativa são os espaços de interação com os pichadores/grafiteiros na cidade. Começo a imersão em campo a partir de uma loja de street art, experiência que sublinha a importância dos laços de reciprocidade e a lógica dos sistemas classificatórios (as maneiras de colocar o mundo em estrutura, de ordenar intelectivamente o caos sensível) na pichação/graffiti. Dessa experiência indoor, desdobra-se uma série de cenários de interação com pichadores/grafiteiros, desde a rua, em rolês e encontros ao acaso pela cidade, bem como no ciberespaço, na minha vizinhança e no meu local de trabalho.


Essas trajetórias urbanas conformam o traçado errático de uma rede. Busco refletir também sobre como essas linhas tortas pela cidade (des)orientaram e desviaram minhas interpretações sobre as visibilidades/invisibilidades da pichação/graffiti, sobre como meu olhar estava sendo coproduzido nas interações com os interlocutores da pesquisa.


O aspecto central do capítulo são as inversões, as recombinações e os transbordamentos semânticos das categorias binárias (legal/ilegal, limpo/sujo, certo/errado, luz/sombra, belo/feio, visível/invisível, centro/periferia, etc.) do ato universal de classificar.


No quarto capítulo, "Sobre participar das lutas semânticas", abordo a questão da pichação/graffiti no meio acadêmico e na produção artística local, e narro a experiência de participação observante em um grupo de intelectuais do pixo, que se propunha a produzir e apresentar pontos de vista "contra hegemônicos" nas lutas semânticas, no debate público em torno da pichação/graffiti na cidade. Depois, lanço um olhar sobre alguns empreendimentos morais anti-pichação, uma parceria governamental-midiáticoempresarial, a campanha "Santa Maria do Bem" e a "Operação Solvente", ambos no sentido de reforçar as dicotomias entre pichação e graffiti (entre ilegal e legal, entre crime e arte, etc.) no debate público e, acima de tudo, uma tentativa de coibir e penalizar os pichadores. Em meio à polarização, junto a uma "Santa Maria do Bem", há um "cidadão de bem", de cujo perfil procurei traçar os contornos, assim como de seus opositores iconoclastas do grupo "Santa Maria do Mal" no Facebook.


Discorro, no último capítulo, intitulado "Fronteiras borradas: quando o estar lá invade e reconfigura o estar aqui", acerca do progressivo adensamento das interações com os pichadores/grafiteiros. Trato das fronteiras borradas, dos riscos de compartilhar o canetão de riscar tags e dividir o mesmo teto com os pichadores/grafiteiros. Narro os desdobramentos do traçado errático dessa rede de interlocutores, passando pelo compartilhamento de trajetos e pela participação no processo de elaboração de uma tag, até chegar, mais especificamente, às trocas e tensões que se deram a partir do momento em que o convívio com os pichadores/grafiteiros passou a ser diário e, sobretudo, "sob o mesmo teto". Destaco a experiência de morar com os "nativos", de "trazer a aldeia para dentro de casa", ou seja, o período da pesquisa em que uma pichadora/grafiteira passou a residir comigo, em uma moradia compartilhada. Durante seis meses, a residência passou a ser um ponto de encontro diário de pichadores/grafiteiros. No âmbito cotidiano da casa, a intensidade do convívio provocou situações inesperadas e delicadas, decorrentes desse processo de borramento das linhas entre o pesquisador e os interlocutores da pesquisa. Procuro assinalar como os conflitos cotidianosas tretas no âmbito da moradia compartilhadaserviram para a compreensão de lógicas mais amplas: das ruas, dos sentidos de viver a cidade e, mais além, das inflexões na minha narrativa do "Eu".


Posso adiantar ao leitor que a interpretação a seguir (parcial e altamente contestável) apresenta um quadro bastante distinto das visões policialescas sobre a pichação/graffiti (que hegemonizam grande parte dos jornais locais), da "Santa Maria do Bem" versus os vândalos. Da mesma forma, o ponto de vista aqui apresentado se distancia igualmente das interpretações romantizadas, que reduzem a pichação/graffiti a uma manifestação de cunho político, de recorte classista ou étnico-racial, exclusivamente periférica, dos grupos excluídos, "sem voz", que não têm outra maneira de se expressar. Procuro apresentar outra perspectiva, "mais barulhenta", mais polifônica: trata-se de um convite ao leitor para percorrer itinerários onde a pichação/graffiti aparece como ponto de encontros discordantes, onde as identidades e as posições são contingentes, flexíveis e transitórias, ou seja, enquanto fenômeno complexo, reticente. Meu primeiro encontro teórico com o graffiti/pichação se deu em um texto de Jean , um ensaio seminal sobre o surgimento do graffiti em Nova York no ano de 1972. Para Em relação aos efeitos dessa explosão do graffiti (desse "bombardeio") em Nova.


O DESIGN DO OBJETO.


York, a interpretação de Baudrillard é a de que "pela primeira vez os mídia foram atacados na sua própria forma, isto é, no seu modo de produção e de difusão. E isto justamente porque o graffiti não tem conteúdo nem mensagem. É neste vazio que está sua força" . Tal vazio, segundo o autor, carrega o potencial de transgredir o sistema comum de apelações e a ordenação sígnica funcional do espaço urbano, ou seja, pode desencadear uma espécie de insurreição pelos signos.


Levando-se em conta o tom ensaístico do texto de , cabem aqui alguns questionamentos relativos à pertinência de suas ideias para a presente pesquisa:


até que ponto é válida essa ideia de "vazio de conteúdo"? Existe uma insurreição pelos signos em Santa Maria? As indagações e inquietações suscitadas pelo encontro com o texto de Badrillard levaram-me a buscar mais leituras e instigaram ainda mais meu olhar sobre a cidade. Para além da trama histórica, A Poesia do Acaso é uma mistura de documento e criação literária, uma espécie de livro-objeto fortemente marcado pela polifonia urbana.


A obra de Fonseca é uma concatenação de fragmentos de passagens pelos espaços urbanos, apresentando textos curtos e cheios de poética, além de ser repleta de imagens e frases dispostas de forma aleatória (desde as inscrições dos muros até trechos de entrevistas com pessoas que as abominam) que perpassam os vários recortes históricos citados anteriormente. Assim, intercalando o seu texto com letras garrafais e frases que começam com letra minúscula, ela joga com as palavras e lança provocações acerca das inscrições urbanas.


Em termos conceituais, Quando um pichador/grafiteiro está falando com outro, o que está ouvindo procura sempre responder com vários podicrê entre as frases daquele que está a falar. Mais ainda, qualquer frase dita entre eles, seja assertiva ou interrogativa, pode ser antecedida ou precedida por um podicrê: "podicrê, vou pegar uma cerveja", "podicrê, empresta o spray?", "podicrê, esse trampo é teu?". As despedidas também são marcadas pela gíria:


"podicrê, a gente se fala amanhã", "vou nessa, podicrê".


A gíria é nóis, por sua vez, é utilizada tanto em pichações/graffiti quanto nas conversas corriqueiras. Ela significa algo para além de "somos nós". Mais especificamente, além da questão do pertencimento, de distinção em relação aos outros, é nóis alude principalmente a ideia de "somos nós aparecendo", "somos nós representando a pichação/graffiti", "somos nós marcando nossa presença na cidade", "somos nós espalhando nossa marca pela cidade". Trata-se, portanto, de uma gíria que remete à questão do pertencimento casada com a questão da visibilidade. Não raramente, as três gírias podem ser usadas ao mesmo tempo, em uma mesma frase, geralmente em circunstâncias e interações marcadas por uma super afirmação do pertencimento e da visibilidade: "Salve! Podicrê! É nóis!".


Imagem 3 -"É nóis", pichação/graffiti em residência, Rua Araújo Viana Fonte: Rodrigo Nathan Romanus Dantas.


Dentre as principais gírias está o rolê, que pode ter pelo menos três significados, dependendo do contexto em que for empregada. "Dar um rolê" pode ser traduzido como "sair pela rua para pichar/grafitar"; mas rolê também pode fazer referência aos pontos de encontro dos pichadores/grafiteiros na cidade, ou melhor, à frequência com que o pichador/grafiteiro é visto e dado a ver perante seus pares nesses espaços de sociabilidade, uma questão de visibilidade: "encontrar a galera no rolê", "faz tempo que não te vejo no rolê", "nunca vi esse cara no rolê", "ele sumiu do rolê". Outro sentido para a gíria é o de pertencimento e reconhecimento, "eu sou do rolê"; "os que são do rolê".


Quebrada é outra gíria muito utilizada, significa periferia, só que não apenas em seu sentido de bairro ou vila. Trata-se também de uma questão de pertencimento, pois o emprego dessa gíria é feito em situações em que geralmente fica expresso, de maneira mais ou menos explícita, certo orgulho da familiaridade em relação aos riscos, aos perigos e precariedades da vida na periferia: "ando pela quebrada", "na minha quebrada", "venho da quebrada", "conheço a quebrada". A missão é marcada pelo sentimento de aumento de potência. Ele completa:


Eu me sinto mais inteligente. Questão de estratégia. Tu tem que sempre ter uma estratégia para subir nos lugares, pra ti fugir da polícia. Tem que ter sempre em mente um plano de fuga.


Esse sentimento de aumento de potência, uma espécie de superpoder, inclui também a ausência do medo da morte (ou pelo menos a sua suspensão circunstancial) para a execução da missão. "Não sei se vou morrer pixando, se vão me matar. Vou dar muito incômodo ainda", diz o pichador/grafiteiro. Concluir a missão e ver a própria pichação/graffiti estampada pela cidade significa a ostentação da presença, da resistência e da superação em relação às adversidades (a polícia, as texturas irregulares das superfícies urbanas, o corre-corre. ). Uma conquista que diz algo como "não foi dessa vez que me pegaram". Cabe notar também que, sendo a criação de uma tag a criação de um alter ego, de um personagem; a missão carrega, assim, uma dimensão de ato heroico não só pelos riscos que a envolvem, mas pelo caráter alegórico da prática.


Em outras palavras, "as missões funcionam como simulacros de situações que remetem para imaginários cinematográficos e alegorias belicistas, contextos particularmente adequados à exibição de actos de bravura e à consagração dos mais valorosos" . Nesse ponto, confluem também as figuras legendárias do bandido e do aventureiro.


Imagem 6 -"O meu cotidiano é um teste de sobrevivência", pichação/graffiti feita por pichador/grafiteiro santamariense em prédio residencial da Avenida Independência,


Porto Alegre.


Fonte: Rodrigo Nathan Romanus Dantas.


Imagem 7 -"É preciso não ter medo", pichação em muro de estabelecimento comercial,


Avenida Roraima.


Fonte: Rodrigo Nathan Romanus Dantas.


Esses atos de bravura são celebrados e possuem uma gíria própria para designálos: cara dura. Trata-se de um derivado da gíria popular "cara de pau", que alude à Alguns avisos nas paredes da loja chamaram a minha atenção. Acima da prateleira de sprays há um aviso: "Pichação é crime, art. 65 da lei número 9.605/98. Proibida a venda a menores de 18 anos. Apenas para pais, responsáveis legais e contratantes. Não insista, obrigado." Ao lado, um aviso complementar: "Tenha em mãos: endereço completo com CEP; endereço de email; CPF e RG". Em outra parede há um anúncio das oficinas que a loja pretende oferecer: "Inscreva-se nas seguintes oficinas: graffiti (iniciante); graffiti (letras); graffiti (personagens); stencil (molde vasado); ioiô (iniciante); DJ (iniciante); fotografia pro. (iniciante)". Nesses dois casos é possível perceber uma separação clara entre pichação e graffiti. Lembrei da página da loja no Facebook, onde na descrição diz: "cultura urbana, graffiti e street art do Brasil e do mundo". No entanto, há um quadro na parede ao lado da geladeira com a frase "Viva o grapixo art". e nas estampas de duas camisetas que estavam à venda também é possível ver essa espécie de mistura e desdobramento das classificações, a afirmação do pixo, do rabisco e dos bombs. As estampas de algumas delas dizem: "Rabiskx Graffiti Bombardeio Pixo", "Rabiskx I Love (a imagem de um coração com um spray dentro) Writing In The City", "Um salve aos verdadeiros do Graffiti Bombardeio Pixo" e "Rabiskx meu estilo minha arte vem das ruas!".


Por parte da loja, enquanto estabelecimento comercial, há a necessidade de adequação à norma, de construir sua visibilidade oficial a partir da classificação estatal, ou seja, a que distingue pichação (ilegal, não autorizada, crime) e graffiti (legal, autorizado, arte); mais especificamente, mostrar-se como um lugar que trabalha com street art (arte de rua). No entanto, essa iniciativa de adequação à norma por parte da loja (e a tentativa de tornar invisíveis os trânsitos, os desdobramentos entre as duas classificações, a profusão e a mistura das práticas e conceituações que estão no limiar do legal e do ilegal) é endereçada principalmente aos burocratas da fiscalização municipal e aos visitantes "de primeira viagem", pois, para quem está mais atento e familiarizado com os termos e gírias próprios dos pichadores/grafiteiros, os transbordamentos em relação à dicotomia saltam aos olhos em qualquer mirada. Como bem assinalou , é importante saber distinguir uma "piscadela" de um "tique nervoso". Os avisos colados nas paredes da loja, que tratam pichação e graffiti como pares opostos, encenam uma espécie de "piscadela" entre os pichadores/grafiteiros, pois estes sabem muito bem que as coisas são mais complexas.


Imagem 12 -"Pichação é crime", aviso afixado na parede da loja de street art Uma das interlocutoras classifica a si como "pixadora, com x", porque, para ela, "a pixação com x não é só uns riscos nas paredes, é um movimento, uma identidade cultural transgressora", mas isso não é tudo, "também faço coisas autorizadas e coloridas de vez em quando, bomb, graffiti, grapixo. ". Outra pichadora/grafiteira se refere ao graffiti e à pichação como "arte de rua" e, ao mesmo tempo, diz: "eu não me considero grafiteira, acho que não tenho produção suficiente pra isso, mas a minha vivência no meio é tão grande quanto à do cara que tá ali fazendo graffiti todo dia". Para esta interlocutora, a vivência é central, algo que a coloca junto aos "artistas de rua". Ela acomoda o graffiti e a pichação no grande balaio da "arte de rua", ao lado de músicos, malabaristas, mágicos e humoristas de rua, ou seja, ao lado daqueles que, em relação à dicotomia dentro/fora, estão do lado de fora (na rua) e, em sua maioria, no limiar entre legal e ilegal. Outro interlocutor, especialista em pichar/grafitar no alto dos prédios, também transita entre os termos (graffiti, pixo, street art, pichador. ) para definir a si e sua prática, mas um deles é bastante peculiar: "ladrão de paredes".


Um dos precursores da pichação/graffiti em Santa Maria, diz que "pichação e graffiti têm diferenças estéticas, mas no fundo estão no mesmo fluxo". Ele define a prática como sendo um "vandalismo poético" e sua relação com a rua como "uma poética do particular coletivo" ou "manifestação de liberdade urbana", sendo "Total Em uma das conversas, uma das pichadoras/grafiteiras comentou: "a globalização é foda, cheguei para usar o banheiro de uma casa que tava caindo, que tava aos pedaços, mas tinha TV de plasma na sala". Seguiu-se daí, nessa roda, um papo sobre como "o sistema aliena" e sobre "como tudo ainda é uma questão de 'pão e circo'". Por conseguinte, a oposição binária entre "nós", os "esclarecidos", e "eles", os "alienados".


Imagem 30 -"Mutirão de graffiti III", pichadores/grafiteiros e crianças curiosas, Praça Encontrei, ao acaso, uma grafiteira/pichadora em um restaurante popular da cidade. A garota estava almoçando sozinha, resolvi sentar na mesma mesa para conversarmos. Frequentamos lugares em comum há cinco anos (universidade, boates, bares. ), mas nos conhecemos pouco. Começou a grafitar/pichar no ano passado. Atualmente, ela integra uma crew feminista. Ela perguntou como estava indo a minha pesquisa, respondi que estava indo bem, que estava tentando me aproximar dos grafiteiros/pichadores aos poucos. Comentei o fato de que alguns deles desconfiavam que eu fosse um policial infiltrado. Ela disse que o pessoal anda realmente "apavorado com tudo" e que as operações contribuíram para o surgimento dessa desconfiança e de tretas entre crews e grafiteiros/pichadores. A garota disse ainda que a maioria dos acusados na operação não leu o registro dos depoimentos dados à polícia. Segundo ela, apenas um entre os acusados tinha advogado, este leu os registros e encontrou neles algumas delações. A pichadora/grafiteira disse que isso (as delações) provavelmente foi "uma manipulação da polícia para criar intrigas" entre os grafiteiros/pichadores. Comentou sobre um grafiteiro/pichador que tem sido alvo de acusações de ser "cagueta" (delator) por parte de seus pares. E acrescentou que há rumores de que aconteça uma nova operação em junho. [. ] Ela também falou sobre as conexões de alguns grafiteiros/pichadores locais com crews de São Paulo. "Tem surgido bastante pixo, estilo paulista, no alto dos prédios em Santa Maria pela influência dessas conexões". Alguns grafiteiros/pichadores locais estão pensando em ir a uma grande festa de pixadores em São Paulo, segundo ela, o maior encontro de pichadores do país. A pichadora/grafiteira também disse que, atualmente, alguns grafiteiros/pichadores que só assinavam tags se tornaram "mais politizados"; alguns deles, por exemplo, começaram a fazer pichações e stencil contra a Copa do Mundo ou contra o aumento da tarifa de ônibus.


[. ] Após o almoço, ela ia tirar fotos de uns trampos dela e de outras grafiteiras/pichadoras, feitos recentemente no Parque Itaimbé (no centro). Infelizmente, não pude acompanhá-la, pois já estava atrasado para uma aula do mestrado que eu não poderia faltar. Na saída do restaurante, antes de nos despedirmos, sugeriu que eu curtisse uma página do Facebook gerenciada por uma de suas companheiras. Na página são postadas diariamente fotos de graffiti/pichações de Santa Maria, mas também de outras cidades e países. Observei que, em suas falas, a garota transitava entre e transbordava as definições "pichação/graffiti" e "pichadores/grafiteiros" para se referir à sua prática e de seus pares.


A pichadora/grafiteira em questão demonstra interesse em minha pesquisa, pergunta sobre seu andamento e sonda a minha presença enquanto etnógrafo em campo.


Em parte, isso se deve ao fato de ela ser universitária, estudante da área das ciências humanas. Durante a conversa ela se empenha em selecionar pontos que julga importantes de serem abordados na pesquisa, ou seja, a pichadora/grafiteira desenha caminhos para o etnógrafo percorrer. A própria ordem das informações dadas por ela segue uma sistematização: primeiro, as intrigas (as tretas entre os pichadores/grafiteiros), aquilo que deforma laços sociais; depois, aquilo que os forma e fortalece (as conexões com São Paulo; a "politização" que a prática da pichação pode proporcionar; a produção e divulgação de registros das pichações/graffiti pelos próprios pichadores/grafiteiros).


Eu já havia visto a inscrição "ant-kagueta" em alguns muros, bem como uma onda de atropelos. Esse encontro ao acaso propiciou o contato com a versão da pichadora/grafiteira sobre as tretas em torno das acusações de "caguetagem", dando sentido aos indícios de rixas inscritos nos muros, os quais eu estava procurando compreender. Em síntese, ela constrói a inteligibilidade dos acontecimentos dando a entender que é a polícia quem fomenta boa parte dos conflitos entre os pichadores/grafiteiros. Entretanto, ela ressalta que, paralelo à repressão policial, há na cidade a efervescência de um estilo de escrita urbana influenciada pela pixação paulista.


A página do Facebook que a pichadora/grafiteira indicou, além da rede de pertencimento, também aponta para aquilo que Mittmann (2013) chama de arquivamento da existência. A pichação/graffiti é um arquivamento primeiro, fixada e memorizada na parede, mesmo que por um período curto. Em seguida, abre-se um círculo mais amplo de arquivamentos, como por exemplo, as fotos e os vídeos sobre as pichações/graffiti produzidos e divulgados na internet pelos próprios pichadores/grafiteiros. Imagem 33 -"Ant-Kagueta", treta em parede de residência, Rua Professor Braga Fonte: Rodrigo Nathan Romanus Dantas.


As pistas sobre as conexões entre pichadores/grafiteiros de diferentes cidades e regiões do país, presentes nos cadernos/folhinhas encontrados na loja de street art e nos relatos sobre as pichações/graffiti em trens, reaparecem nesse encontro ao acaso com a pichadora/grafiteira, quando ela se refere às ligações entre Santa Maria e São Paulo. A indicação da página do Facebook é outro caminho que aponta para o mesmo sentido, dando sequência à série de cenários de interação: muros, loja de street art, cadernos/folhinhas, rolês, encontros ao acaso pela cidade e internet. Essas questões sugerem que é nesse andar errático do etnógrafo em meio às teias de significados , tecidas entre a objetalidade das inscrições urbanas, que se dão os encontros/desencontros e negociações que delineiam a interpretação etnográfica.


"Curti" as páginas do Facebook sugeridas pela pichadora/grafiteira e enviei "solicitações de amizade" aos perfis dos pichadores/grafiteiros com os quais já estava interagindo off-line. Todos eles aceitaram, "adicionaram-me". A partir daí, informações diárias sobre eles passaram a chegar até mim toda vez que eu acessava a rede social. Alegre. Havia em torno de 50 pessoas no happy hour feminista, metade composta por mulheres. Formou-se uma roda de conversa, onde, inicialmente, cada participante se apresentou diante dos demais, dizendo seu nome ou tag e dando nome a sua prática de rua, classificando-a: "meu nome é x, e tô aí no rolê, fazendo uns riscos na rua, sempre incomodando (risos)"; "sou y e também sou do movimento da pixação"; "meu nome é z, também sou artista de rua, e faz mais de uma década que estou conectado com essas questões da rua, skate, pixo, graffiti, arte urbana. ". Alguns pichadores/grafiteiros também se identificaram como militantes de algum movimento social, dentre eles, Marcha das Vadias, Marcha da Maconha e Bloco de Lutas.


Próximo à minha vez, pensei: Apresentar-me-ei como? Professor e mestrando em ciências sociais? Ex-pichador e pesquisador da pichação/graffiti? Acabei deixando de lado as referências ao passado e à minha profissão, para dar foco à circunstância, ao estar ali, classifiquei-me apenas como "pesquisador e simpatizante da pichação/graffiti".


Brinquei, "estou de olho em vocês", fazendo o gesto de levar os dedos indicador e médio em direção aos olhos, e eles riram. Foi uma forma de descontrair e tentar dissipar a atmosfera de desconfiança na qual alguns ainda poderiam estar envoltos no tocante à minha presença. Usei "pesquisador", porque é um termo mais acessível aos leigos em relação ao mundo acadêmico do que "mestrando em ciências sociais" ou "aspirante a antropólogo". Disse "simpatizante da pichação/graffiti" para dar a ver a minha proximidade em relação ao grupo, e, ao mesmo tempo, a brincadeira "estou de olho em vocês", como um sinalizador da exterioridade, mas, sobretudo, como uma forma de Poucos pichadores/grafiteiros homens participaram da roda de conversa do início ao fim, a maioria deles preferiu ficar do lado de fora da loja, fumando e conversando sobre outros assuntos, enquanto ocorria o bate-papo feminista dentro do estabelecimento. Teriam eles ficado incomodados com os relatos das mulheres? Ou seu distanciamento seria em respeito ao "local de fala" delas? Seria o feminismo um ponto de encontros discordantes na pichação/graffiti? Seria a pichação/graffiti um ponto de encontros discordantes no feminismo? Voltei para casa com essas questões na cabeça e, nos dias que se seguiram, ao acessar o Facebook, algumas tretas envolvendo os temas pichação/graffiti e feminismo começaram a pipocar na tela do meu computador.


Chamou a minha a atenção uma publicação feita pela página do coletivo de mulheres Marias Bonitas, majoritariamente composto por negras da periferia, onde aparecia uma charge e um "textão" que criticavam a prática da pichação/graffiti entre as feministas:


O lance é que ta rolando uma nova vibe na militância entre as mulheresmajoritariamente de classe altade fazer pixações nos banheiros de faculdades ou escolas (como também em transportes públicos). Intervenções que seja com frases de efeito ou seja com símbolos da luta feminista, não fazem a menor diferença para quem vai ter o trabalho extra de limpar no final. As 'moças da limpeza' geralmente são mulheres pobres e negras que além de serem atingidas pelo machismo também enfrentam o racismo e a pobreza (que dão a elas um gostinho diferente do que é a misoginia). E a merda toda é quando o feminismo, que deveria dar a essas mulheres mais voz e empoderamento, continua abraçando fortemente as que sempre foram acolhidas pelo movimento e comete boçalidades tipo esfregar absorvente sujo na parede do banheiro e esquecer que depois de brincar de revolucionária uma mulher vai ter que ficar esfregando pra limpar a sujeira que a outra deixou. Temos que pensar em todas as mulheres, se não, feminismo pra quem? Os dois alunos pichadores demonstravam ojeriza em relação àquilo que chamam de "politicamente correto", sendo seu oposto, o "politicamente incorreto" (ou o bordão de internet "the zuera never ends"), uma espécie de "nova transgressão", inclinação que observei com bastante frequência entre meus alunos, adolescentes da "geração z", ou seja, nascidos a partir de 1996 e escolarizados sob a hegemonia dos discursos pedagógicos multiculturalistas (vulgo "politicamente correto"). O atropelo dos trampos feministas pelos alunos pichadores, sua postura "politicamente incorreta", podem ser lidos como sendo uma reação do status quo (ambos os rapazes brancos) diante da ascensão das vozes das minorias, mas, na visão deles, o status quo é o "politicamente correto", interpretado enquanto uma espécie de moralismo e de ideais de pureza que impregnam alguns discursos da nova esquerda; trata-se de ser "contra a cagação de regra", disse um dos alunos pichadores. "Não curto esse 'mimimi' de 'não pode dizer isso ou aquilo', porque cada um deve ter o direito de dizer o que quiser, mesmo que ofenda os outros, ninguém é obrigado a agradar", disse o outro aluno pichador, "se alguém se sente ofendido, que retruque", completou. No balaio do "politicamente correto" está o feminismo, que aparece aqui enquanto ponto de encontros discordantes na pichação/graffiti. Os corredores e o pátio da escola são uma boa vitrine para os pichadores/grafiteiros darem visibilidade às suas tags, visto que por ali circulam diariamente centenas de jovens, para os quais os trampos não passam despercebidos. Ao fim da ocupação e da greve, quando do retorno das aulas, houve uma grande onda de selfies de alunos tiradas em frente às paredes pichadas/grafitadas da escola sendo publicadas em seus perfis do Facebook e do Instagram. Alguns alunos exclamavam:


"ficaram muito lindas todas as pinturas, deram vida à escola!". A aprovação, entretanto, jamais foi unânime. "Além de perdermos aulas com a greve, quando retornamos à escola, vimos que agora temos um pátio cheio de nomes de marginais e gangues da cidade nas paredes, apenas alguns poucos desenhos se salvam", reclamou um dos alunos contrários ao movimento estudantil secundarista, "infelizmente, a direção perdeu o controle da escola durante a ocupação", lamentou outro. Até Os Gêmeos, lá de São Paulo, que são os maiores grafiteiros do mundo, já fizeram vários graffiti em minha homenagem. Eles escreveram "Toniolo livre" em um graffiti recente. Daí eu retribuí com uma pichação dedicada a eles. Escrevi "OsGeMeOs" bem grande numa parede e assinei meu nome. Postei no Facebook e um monte de gente compartilhou.


Toniolo também narrou longamente sobre as tretas que teve com Tarso Genro, ex-prefeito de Porto Alegre. Disse que este, em seu segundo mandato, empenhou-se em apurar investigações acerca de suas pichações, cobrando de sua equipe a elaboração de um dossiê com fotos das assinaturas de rua do pichador. Em contrapartida, Toniolo disse que também fez um dossiê, "tirei fotos de vários lugares onde estava escrito 'Tarso', os cartazes que ele espalhou pela cidade no período da campanha eleitoral, as zona norte, eu estava sendo convidado a deixar marcas pela cidade, só que agora era de forma ilegal. Respondi: "quero, deixa uns adesivos comigo". Entretanto, não saí para colá-los, apenas guardei-os em minha mochila. Antes de cada um seguir seu caminho, ele também deixou comigo alguns exemplares do seu zine, "laça este trampo meu para a galera que tu achar que vai curtir", recomendou.


Recebi os artefatos que o pichador/grafiteiro me dera e, embora não tenha atendido seu convite para colar os stickers de Toniolo pela cidade, retribui entregando os seus zines aos meus alunos pichadores "politicamente incorretos", que o apreciaram muito. Assim, utilizei-me das margens de liberdade, negociação e incerteza estrutural do sistema de reciprocidades. Os alunos pichadores, por sua vez, a cada semana que passava se mostravam mais interessados nas minhas aulas, até passaram a pedir algumas sugestões de leitura e vídeos sobre feminismo. "Se to criticando as feministas da pichação, tenho que ter embasamento", disse um deles. E eu respondia coisas como: "digita no Google e no Youtube 'as ondas do feminismo', para entender um pouco da história do movimento, digita também 'Camille Paglia', para conhecer uma de suas principais críticas". Era como se os alunos pichadores quisessem retribuir com esse interesse nas aulas não só os zines que eu lhes dera, mas também as nossas conversas sobre pichação/graffiti. "Tu é diferente dos outros professores, é 'cabeça aberta', se interessa pelas nossas histórias e não tem preconceito com quem picha", disse um deles.


Em suma, à medida que eu ia tecendo os fios dessas linhas tortas pela cidade, adensando a imersão em campo, ia sendo enredado em meu cotidiano pelas teias de significados da pichação/graffiti. Os desdobramentos das várias "piscadelas" a partir da ambiência da loja de street art; as recriações de memórias e narrativas dos pichadores/grafiteiros que redesenham a cidade e seus moradores; as linhas do tremmetáfora-da-modernidade; os encontros ao acaso pela cidade; as conexões entre pichadores/grafiteiros de diferentes regiões do país; os alunos pichadores; o feminismo enquanto ponto de encontros discordantes na pichação/graffiti; a pichação/graffiti enquanto ponto de encontros discordantes no feminismo. A observação participante desses cenários e interações começava a configurar uma espécie de ritual de passagem para mim, um importante momento de aprendizado, cuja travessia ia dando corpo aos conhecimentos e informações que, anteriormente, estavam dispersos, preenchendo, aos poucos, algumas das lacunas de sentido que inquietavam o meu olhar. Ao mesmo tempo, nesses itinerários da pesquisa de campo, com a observação participante (e a participação observante) das trocas, do sistema de reciprocidades, ia se alargando a percepção dos contornos das regularidades e daquilo que forma e fortalece os laços sociais entre os pichadores/grafiteiros. Mais do que isso, iam se dando trocas e sendo tecidos laços entre mim e os interlocutores da pesquisa. Essa circulação de dádivas, essas prestações e contraprestações, indícios de coesão, entretanto, não são tudo. Assim como os pares de classificações binários são apenas um intermezzo, não um fim em si mesmo, é no delinear do esboço do sistema de reciprocidades que se torna possível captar aquilo que fica de fora, a incerteza estrutural da circulação das dádivas, as quebras, as margens de negociação e de liberdade individual para entrar e sair dos sistemas de obrigação de uma coletividade, aquilo que tem potencial de deformar os laços sociais, engendrar o conflito e desdobrar-se no realocamento das redes (desconectar e conectar). Nos capítulos seguintes, sigo com o aprofundamento da experiência de campo, discorro sobre o convite que recebi para participar de um grupo de "intelectuais do pixo" (que se propunha a apresentar pontos de vista "contra hegemônicos" nas lutas semânticas em torno da pichação/graffiti na cidade), narro também sobre o "morar com os nativos" (o período em que uma pichadora/grafiteira morou na mesma casa que eu) e, por conseguinte, sobre algumas dessas incertezas estruturais em relação aos sistemas de reciprocidades. Mas, afinal de contas, por que o grupo se desmobilizou? As razões para isso só podem ser compreendidas se, além do grupo em si, levarmos em conta as questões externas a ele. Antes de responder a essa questão, é necessário narrar alguns caminhos percorridos até essa desmobilização, tentar compreender os conflitos e tensões que permearam essa experiência entre os intelectuais do pixo.


SOBRE PARTICIPAR DAS LUTAS SEMÂNTICAS.


Desde o primeiro encontro com o grupo de intelectuais do pixo, procurei deixar claro para todos que as reuniões também eram objeto de observação para a minha pesquisa. "Estou de olho em vocês", brincava. No entanto, ao mesmo tempo em que o grupo propiciou maior proximidade com o campo da pichação/graffiti, a minha participação nele também suscitou alguns dilemas éticos para a minha pesquisa. Em todas as reuniões o tom das conversas do grupo tendeu a ser mais militante do que acadêmico. Todos ali envolvidos tinham grande empatia pela pichação, questão que dificultava um olhar distanciado. Isso me fazia lembrar , quando ele diz que a "maldição" das ciências sociais é ter um objeto que fala, condição que, dentre outras, exige uma constante vigilância epistemológica por parte do cientista social. Não basta estar à escuta dos agentes estudados para justificar a conduta deles e as razões por eles fornecidas, pois agindo dessa maneira o pesquisador corre o risco de substituir pura e simplesmente suas próprias prenoções pelas prenoções dos indivíduos que ele estuda, ou por um misto falsamente erudito e falsamente objetivo da sociologia espontânea do 'cientista' e da sociologia espontânea de seu objeto A partir daí, procurei não apenas ouvir e ser conivente com o grupo nas reuniões: passei a prestar mais atenção aos discursos contrários a pichação/graffiti (fora do grupo) e também a introduzir questões provocadoras nas reuniões: "podemos não concordar, mas é difícil de rebater o argumento liberal de que a pichação passa por cima da liberdade individual, né?"; "faz sentido discutir a criminalização da pichação?"; "não seria a criminalização uma das suas principais razões de ser?"; "em tempos de redes sociais virtuais, faz sentido justificar que alguém picha dizendo que ele o faz porque não tem voz?". Tal estratégia de introduzir momentos de dissenso nas reuniões e nas aparições públicas do grupo se mostrou fecunda, foi bem recebida pelos integrantes, pois hes deu um retorno ao instigá-los a questionarem suas próprias pré-noções e enriquecerem os argumentos para suas posições. Soma-se a isso o fato de que, para a minha pesquisa, essa estratégia permitiu que viessem à tona informações e questões do campo da pichação/graffiti que talvez não viessem se eu me restringisse a observar ou a ser plenamente conivente com tudo o que o grupo diz e pensa.


Em uma das reuniões, por exemplo, lancei a seguinte provocação diante de pichadoras/grafiteiras que se colocam enquanto feministas: "não gosto do feminismo radical que anda por aí". Esse artifício abriu caminho para que uma das pichadoras/grafiteiras começasse a falar sobre alguns conflitos entre pichadores/grafiteiros permeados por questões de gênero e sobre amizades e crews que se desfizeram em virtude de relacionamentos amorosos. "Tem pichador que não suporta a ideia de ter mina pichando no rolê, ainda mais se as mina forem feministas. Tem uma crew de uns guri de bosta que só saem pra atropelar o trampo das mina", disse uma das pichadoras/grafiteiras. "Tem muito machismo no meio da pichação. Tem mano que bate na mina. O feminismo é necessário. O pior é que tem mina machista também", disse outra. Os motivos das tretas entre pichadores/grafiteiros, portanto, não dizem respeito apenas à demarcação de territórios na cidade ou às acusações de "caguetagem". Em outras palavras, essa estratégia do dissenso possibilitou-me chegar, por outras vias, a algumas constatações que eu já havia chegado, reforçando-as, como por exemplo, a de que o feminismo é um ponto de encontros discordantes na pichação/graffiti. Como disse nos capítulos anteriores, os pichadores/grafiteiros estavam a desenhar e redesenhar caminhos para eu seguir, mas também o inverso ocorriavias de mão dupla. Lembro que, nos primeiros encontros dos intelectuais do pixo, cada um dos integrantes que estava desenvolvendo pesquisa sobre pichação/graffiti apresentou o seu trabalho para os demais. Na minha vez, usei o termo "grafismos urbanos" durante a apresentação, algo que chamou a atenção de uma das grafiteiras/pichadoras, que perguntou: "grafismos urbanos? Nunca ouvi essa expressão". Expliquei: "usei esse termo na época em que escrevi a monografia, porque percebi que a galera que faz graffiti, trampo legalizado, é a mesma que picha, que faz trampos ilegais, daí, procurei um termo intermediário, para abarcar as duas práticas. Mas, hoje, eu prefiro usar 'pichação/graffiti', soa mais natural, pois não vejo vocês usarem o termo 'grafismos urbanos'". E ela disse: "É mesmo, nunca vi ninguém da galera usar esse termo, mas gostei dele, 'grafismos urbanos', abarca a diversidade das intervenções e soa mais 'de boa' para quem não é do meio. Vou começar a usá-lo (risos)". Meses depois, a pichadora/grafiteira sugeriu que utilizássemos o termo na chamada de um evento que o grupo de "intelectuais do pixo" participou sobre o tema, organizado por ela junto ao Diretório Central dos Estudantes (DCE) do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). "Roda de conversa sobre grafismos urbanos", dizia o cartaz de divulgação.


Parece haver aí uma legitimação científica/acadêmica, uma questão de poder: a categoria que usei para classificar os nativos outrora sendo usada por eles para construir a visibilidade da própria prática. A interpretação do etnógrafo pode, assim, redesenhar a interpretação do "nativo" sobre sua própria cultura, (re)interpretação esta que também é objeto de interpretação para o etnógrafo.


Qual seria, então, o sentido dessa (re)interpretação? Longe de ser algo vertical, trata-se de uma reelaboração, algo ativo. A incorporação do termo "grafismos urbanos" pelos "nativos" não foi desinteressada. Foi uma espécie de estratégia comunicacional.


Isso ficou evidente para mim quando, diante da baixa participação dos estudantes da instituição na roda de conversa (que em sua maioria passavam pelo grupo indiferentes, e quando não, com olhar de reprovação), ouvi a pichadora/grafiteira que organizou o evento reclamar: "Se com 'grafismos urbanos', que é um termo mais light, essa galera careta não se interessa e faz cara feia pra gente, imagine se tivéssemos usado o termo 'pixo' no cartaz. iriam nos apedrejar". Apesar das intenções, a (re)interpretação, vista como "light" pela pichadora/grafiteira, não cativou o público, e enquanto estratégia comunicacional, falhou. A Operação Solvente 13 , assim como as anteriores, consistiu no cumprimento de mandados de busca e apreensão nas casas de pessoas suspeitas de estarem envolvidas com pichação, 11 batidas no total. Segundo o próprio delegado, em entrevista para um dos jornais locais, "mais uma operação para enxugar gelo" 14 , visto que não foi deferido pela Justiça o pedido da Polícia para prender os indivíduos que foram alvo da operação.


A campanha Santa Maria do Bem, por sua vez, criou o disque pichação, o 153, atendimento 24 horas, e também incentivou moradores a cederem o muro de suas casas para a produção de graffiti, com a promessa de que essa seria uma maneira de evitar a pichação. Mas o seu principal feito foi, certamente, a aprovação, pela câmara de vereadores, de um projeto que aumentou o valor das multas a serem aplicadas aos pichadores. Antes, o valor era de R$100, podendo chegar a R$3mil para reincidentes.


Com a nova lei, a multa passou a ser de R$2,7mil, dobrando em casos de reincidência, podendo incluir medida socioeducativa ou pena de prisão (de três meses a um ano). Nas situações em que o pichador tem menos de 18 anos de idade, a multa é cobrada dos pais.


O nome da campanha -Santa Maria do Bem -remete a ideia de "cidadão de bem". Mas, quem é esse sujeito, essa abstração? Para definir melhor o traçado analítico dessa arena de lutas semânticas que é a cidade, ou melhor, das forças sociais em luta, procurei delinear os contornos do perfil desse tipo social -o "cidadão de bem"a partir da observação das reações dos proprietários de imóveis pichados. Em relação às pichações em suas propriedades, existem alguns proprietários que se engajam em uma luta contra os pichadores na dimensão material do próprio muro, que estão dispostos a repintá-lo quantas vezes forem necessárias. Face a esse "cidadão de bem" convicto, não raramente, as pichações que retornam ao muro ganham ar de deboche ou provocação:


"eu pixo, tu pinta, vamo ve quem tem mais tinta"; "pixei di novo"; "apague os seus erros"; "o que é belo pra mim pode não ser pra você". Já uma loja de eletrodomésticos, alvo de frequentes pichações, adotou publicamente um discurso de vitimização e derrota, colocando placas na fachada e na parede lateral do 13 Uma matéria sobre o caso pode ser acessada neste link: https://globoplay.globo.com/v/4216107/ 14 Para saber mais, acessar o link: https://claudemirpereira.com.br/2022/05/pichadores-policia-recolhecomputadores-tinta-e-anotacoes-acao-para-enxugar-gelo-diz-o-delegado/ estabelecimento com a seguinte frase: "Pedimos desculpas à cidade de Santa Maria, não pintaremos mais a parede". As falas de moradores e proprietários de casas ou lojas pichadas com os quais conversei também vão majoritariamente nesse sentido: "a gente pinta, e no outro dia eles vão lá e picham tudo de novo"; "a gente trabalha duro, ganha pouco, daí resolvemos pintar a casa, a gente só quer ter uma casinha ajeitada, já que o bairro é humilde, daí os caras vêm e riscam tudo, isso é ruim pra nossa autoestima". Uns compram a briga, outros jogam a toalha. "Tinha que ter chamado na bala primeiro, depois chamar a Brigada! Mas um dia eles aprendem, um dia algum cai feio. " "Vontade mesmo de quebrar as pernas desses vândalos. Não deveria ser admitido nem aceito justificativas. Não há desculpa para depredações e vandalismos. Não há!" "Aqui no prédio aonde moro, estou esperando os primeiros aparecerem, pq na hora q eu pegar, vou dar tiros nas pernas, e depois chamo a Brigada" "Melhor notícia é quando um desses pichadores cai do alto e morre" "Tem q da um tiro d longe e mata" "Pega a lata de spray e enfia no cu deles" "Esfrega a cara deles para apagar!" "Nada que amputar as maos deles nao resolva" "Ja da pra começar a matar" Imagem 51 -"O 'cidadão de bem'", print de comentários odiosos em uma matéria de jornal sobre pichação Fonte: Rodrigo Nathan Romanus Dantas.


Em resposta a essas manifestações de ódio contra os pichadores/grafiteiros, foi criada a página Santa Maria do Mal. Mais especificamente, a página tratava de expor os discursos de ódio publicados nos comentários dos portais de notícias locais, de maneira a ridicularizá-los. O administrador da página também se prestava a responder os comentários odiosos nessas publicações. Uma forma de "tirar sarro" das contradições daqueles que se autodenominam "cidadãos de bem". Em uma reunião dos intelectuais do pixo surgiu a pergunta: "quem é o administrador dessa página? ". Ninguém sabia, exceto um dos membros, o jornalista, que disse: "não posso dizer quem é, mas é alguém do nosso lado". Em meio a esse mistério, o grupo se propôs a rascunhar alguma resposta à Operação Solvente, que acabou ganhando forma em um texto, publicado pelo O Viés 15 , assinado por um dos membros. Os principais trechos, os quais dão uma ideia do posicionamento do grupo:


Mais uma vez, segundo informações divulgadas na mídia local, uma lista questionável de objetos foi recolhida pelos policiais durante a operação: uma CPU, três notebooks, dois banners, 14 cadernos de desenho, quatro máscaras, uma soqueira, cinco facas, três estiletes, balas de festim de fuzil 762, 13 latas de spray de tinta e um aparelho celular.


Novamente, além de indicar uma relação entre a pixação e crimes violentos que não reflete necessariamente a realidade da maioria dos pixadores e pixadoras, a escolha das "evidências" pela polícia sinaliza a criminalização não apenas da pixação, mas de toda uma estética ligada à arte de rua, como no caso do recolhimento de cadernos, sprays e banners.


Mais uma vez, também, alguns dos jovens suspeitos de marcarem as paredes da cidade com tinta tiveram sua intimidade indevidamente exposta em veículos da mídia local, com a divulgação de fotos e endereço de suas residências.


[. ] desde 2012, a repressão policial gerou apenas uma maior adesão de jovens à pixação, que aumentou exponencialmente desde a Operação Cidade Limpa e, além disso, verticalizou-se, demonstrando a evolução das técnicas e do interesse da juventude da cidade por esta forma de expressão.


[. ] a nova operação, chamada "Solvente", parece julgar que se resolve a questão da pixação sem problematizá-la: para que tudo fique "bem", basta apagar a expressão de centenas de jovens sem voz na cidade, julgada de antemão como ruim e desnecessária.


Enquanto a administração municipal segue apostando na repressão e na dicotomia entre "bem" e "mal", incluindo pixadores e pixadoras na categoria do "mal", a juventude da cidade continua encontrando escassas opções culturais propiciadas pelo poder local, e os espaços públicos da cidade permanecem em situação crítica Ao mesmo tempo em que eu participava da reunião em que ocorria a elaboração dessa resposta, observava que, entre o posicionamento dos intelectuais do pixo e o do "cidadão de bem" em relação às pichações, havia um enorme abismo semântico. Ao lêla, depois de publicada n'O Viés, vieram à minha mente alguns questionamentos: a denúncia da violação da intimidade dos acusados, a ausência de empatia pelos moradores que têm suas casas pichadas, uma narrativa que coloca os pichadores como vítimas e que lança mão de clichês como "jovens sem voz": são essas as melhores maneiras de estabelecer um diálogo sobre um assunto tão controverso? O texto dos intelectuais do pixo, em certas partes, não acaba por reforçar a polarização que tanto diz combater? Em suma, um texto para já convertidos, com baixo poder de convencimento, que pouco dialoga com quem está acostumado com uma narrativa mais policialesca, com quem "não tem repertório" ou com quem simplesmente quer ver garantido, mesmo que minimamente, o seu direito à privacidade? Percebi que, apesar das boas intenções e da crítica à dicotomia entre bem e mal, a resposta dos intelectuais do pixo avançava pouco no debate público sobre pichação/graffiti, no sentido de um diálogo autocrítico.


A campanha Santa Maria do Bem, com a proposta de uso do graffiti para combater a pichação, também acabou criando ou trazendo à tona algumas discordâncias entre os pichadores/grafiteiros. Um pichador/grafiteiro e uma pichadora/grafiteira, ambos precursores da pichação/graffiti na cidade, receberam algumas críticas de seus pares por terem participado da campanha ou por terem seus trampos vinculados a ela. A pichadora/grafiteira não fazia parte do grupo de intelectuais do pixo, mas o pichador/grafiteiro sim. Em relação a ele, a crítica se deu devido a uma matéria, intitulada "Cores para Conscientizar", publicada em um dos jornais locais 16 , sobre um de seus murais, na qual o pichador/grafiteiro era tratado pelos jornalistas como "conscientizador", dando a entender que ele estava "do lado do bem". Um dos membros do grupo do Facebook dos intelectuais do pixo postou o link para a matéria e comentou:


"tinta contra tinta, triste pelo conscientizador". Diante das críticas, o pichador/grafiteiro tomou uma decisão, disse que não faria mais trampos comerciais: O que anda acontecendo é o seguinte, eu também trabalho com muralismo, isto não tem nada a ver com a cultura do graffiti, a moral se apropriou disso, e eu estou sendo engolido por isso. Minha sinuca de bico é pessoal, eu simplesmente vou ter que sair do ramo e arranjar outro emprego, estou realmente triste, todo o meu senso crítico sendo ridicularizado com estas chamadas dos jornais. Peço a todos desculpas, com toda humildade, este foi meu último trampo comercial. Tá tudo errado. Quero zerar tudo isto, tenho um filho e quero valores humanos, e sei como é nociva esta higienização feita pela campanha.


As críticas à pichadora/grafiteira precursora, por sua vez, também se deram em função de uma matéria de jornal, que tratava sobre sua participação na campanha Santa Maria do Bem. Na ocasião, ela se colocou como ex-pichadora e disse que os empreendedores e moradores da cidade não querem suas casas rabiscadas com ofensas.


Ela disse aos jornalistas: Imagina: eu abro um atelier, daí vem um e escreve um baita palavrão ou seu tag. É complicado, a tinta é cara. Por que não chega na boa e pede pra fazer um desenho no pátio ou uma decoração dentro do ambiente de trabalho da pessoa?


Os comentários que essa matéria gerou no grupo do Facebook dos intelectuais do pixo demonstravam decepção, principalmente por ela ser a precursora da pichação/graffiti entre as mulheres na cidade, e sugeriam que ela havia "se vendido".


Uma das pichadoras/grafiteiras do grupo disse:


O que ela representou na cena de Santa Maria não vai se apagar, pra mim ela sempre foi referência e exemplo de resistência, por ser mina no movimento. Mas não tem como não ficar triste diante disso. Às vezes tento entender, sei que ela tem filho e tudo mais, daí não é muito difícil aceitar se juntar ($) à prefeitura, mas usar esse discurso. Hoje eu penso muito antes de criticar, porque quem sou eu pra julgar né? Ainda moro com meus pais e sou sustentada por eles. Mas mesmo assim eu fico triste com essa fala dela.


O pichador/grafiteiro que, semanas antes, em função das críticas que recebeu, havia decidido não fazer mais trampos comerciais, também comentou sobre o caso da pichadora/grafiteira que participou da campanha Santa Maria do Bem:


Ela tem a sua importância vandal na cidade sim, por mais que ela tenha feito escolhas questionáveis hoje. Por muito tempo ela era uma das poucas mulheres que não deixou a peteca cair mesmo com a repressão nas costas. Muito trem, muito portão de ferro no centro, muito bomb nos quatro cantos da cidade, mas o discurso mudou. E eu estou falido depois que parei com os trampos comerciais, só grana conta gota, mas eu durmo tão bem. Tudo é escolha mesmo.


Outras duas mulheres do grupo de intelectuais do pixo concordaram com o pichador/grafiteiro. "Eu ainda prezo por deitar no travesseiro e me sentir coerente com o que penso e faço, tô sempre falida de grana, mas de alma leve", complementou uma delas. E a outra: "Também acho isso, prefiro ser íntegra nas minhas convicções". Diante dessas reações, resolvi procurar a pichadora/grafiteira que participou da campanha A questão do dinheiro não é pano de fundo apenas dessa polarização interna dos pichadores/grafiteiros, "os íntegros" versus "os que se vendem". Em algumas conversas entre os intelectuais do pixo, alguns se arriscavam predizer que, com o aumento do valor das multas para pichadores (de R$100 para R$2,7mil, podendo chegar a R$5,4mil em caso de reincidência), a tendência seria a de a campanha Santa Maria do Bem Operação Solvente e da campanha Santa Maria do Bem, as respostas dos intelectuais do pixo têm pouco efeito, quase nenhum poder de convencimento, e tais empreendimentos morais também criam ou trazem à tona discordâncias entre os próprios pichadores/grafiteiros, uma dicotomia entre "os íntegros" e "os que se vendem". pichadores/grafiteiros, uma dicotomia entre "os de confiança" e "os caguetas", e também entre "os íntegros" e "os que se venderam".


FRONTEIRAS BORRADAS: QUANDO O ESTAR LÁ.


Os pichadores/grafiteiros redesenham a cidade, seja com seus traçados de tinta, seja com suas maneiras de recriar memórias, de narrar a cidade e seus moradores.


Depois de acompanhá-los pela malha férrea e ouvir suas histórias, vi que os trilhos e o trem podem ser encarados como uma metáfora da "modernidade-chão-de-fábrica", no sentido de que remetem à industrialização e à formação histórica da cidade, mas, sobretudo, trata-se de uma metáfora "pós-moderna", algo que encena aquilo que.

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