PDF ST REACT - A ecologia política das paisagens mais-que-humanas etnografias engajamentos e prática

ST REACT - A ecologia política das paisagens mais-que-humanas:etnografias, engajamentos e práticas.


Resumo: Este seminário pretende agregar debates sobre paisagens produzidas pelo entrelaçamento de diferentes modos (humanos e não-humanos) de habitar, sobre a produção de paisagens em diferentes regimes cosmopolíticos e sobre os efeitos paisagísticos de práticas de conhecimento diversas. Partimos do pressuposto de que a resultante dos modos de viver contemporâneos produz precariedade e paisagens simplificadas, como parte do que vem sendo chamado, entre outros nomes, de Antropoceno. Pretendemos, assim, reunir trabalhos que abordem devires de uniformização e de diversificação de paisagens. Interessam aqui os modos de viver produzidos a partir da instalação de empreendimentos de agronegócio e mineração, da disseminação de espécies exóticas, dos grandes projetos de infra-estrutura, dos desastres socioambientais e dos efeitos de mudanças climáticas.


Interessa também a produção de paisagens rurais e urbanas biodiversas, além dos modos de vida humanos e não-humanos em paisagens devastadas e em regeneração. Interessam, por fim, a ecoantro-política das paisagens florestais e aquáticas, das paisagens indígenas e de povos tradicionais, e a diversidade das práticas de conhecimento na produção das paisagens. Privilegiaremos abordagens que extrapolem a ideia de um ambiente natural dado, sujeito por um lado a um "efeito antrópico" unidirecional e por outro à elaboração de construções sociais. Ao invés disso, esperam-se contribuições inspiradas em redes sociotécnicas, etnografias multiespécies, malhas relacionais, cartografias contra-hegemônicas, ecologias não-deterministas, ativismos artísticos e outras perspectivas conectadas com os debates propostos.


Palavras-chave: paisagem; ecologia política; antropologia mais-que-hum Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia -ISSN: 2358-5684 2 Nas texturas da terra: movimentos e práticas conhecimento entre os quilombolas do Vale do Ribeira Resumo: Nesse trabalho proponho refletir como o processo jurídico-burocrático de autorreconhecimento quilombola se constitui a partir da interseção de saberes e lógicas distintas de percepção do tempo e do espaço. Com base em uma experiência etnográfica entre os moradores de Pedro Cubas, um "Remanescente de Quilombo" situado no Vale do Ribeira (SP), e nas peças técnicas que compõem o procedimento de demarcação de suas terras, busco descrever de que maneira esse encontro entre tecnologias e técnicas sensíveis de percepção espacial toma forma e é estabilizado nos documentos. Argumento que o que os habitantes de Pedro Cubas oferecem como trilha para se pensar não se curva à acomodação do tempo linear, do território como superfície ou da genealogia, tal como descrevem os documentos oficiais. Mas que no ato de fabricar fronteiras e estabelecer direitos territoriais, esse modo singular de organizar o mundo, que é acionado por antropólogos, historiadores, cartógrafos e agrimensores; também opera em seus quintais, no movimento que potencializa a luta pelo território. O presente texto propõe, assim, pensar tanto nas imbricações dessas distintas lógicas, quanto nos processos de estabilização, a partir de um exercício de escrita antropológica que opere torções, comparações e contrastes entre os distintos materiais etnográficos. Palavras-Chave: práticas de conhecimento; movimento; técnica; quilombolas; Vale do Ribeira Introdução Rio Ribeira acima, a certa altura de sua margem direita, a qual se faz a travessia, é possível avistar a estrada de terra sinuosa que nos conduz à pequena Vila de Santa Catarina, localidade povoada por famílias negras, antigos habitantes dessa região. A Vila de Santa Pedro Cubas tornam a se deslocar na forma da penitência, confirmando o vínculo que estabelecem com a terra e entre si. O que apreendi através do relato de Dona Ana e, de maneira geral, das narrativas acionadas por outros moradores enquanto explicavam-me sobre o modo de fazer roça no sistema dos antigos, foi que é na experiência do caminhar e no compromisso contínuo com a terra -nos cuidados diários que a cercam, no modo como se reúnem para cultivar e celebrar, na maneira como pensam e se relacionam com as sementes, árvores e outros seres que habitam o ambiente; bem como na compreensão dos processos temporais implicados nestas relações -que a existência dos habitantes de Pedro Cubas se promulga e se entrelaça a paisagem que vivenciam. Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia -ISSN: 2358-5684 9.


Essa forma singular de "estar no mundo" se promulga quando ao menos três gerações diferentes deslocam-se para as capuavas para derrubar milho -milho forte, pois é semente dos antigos -; quando os pais ensinam sobre processos de construção e barreamento de uma casa aos filhos que acabaram de retornar para suas terras, por não terem encontrado vida melhor longe de suas famílias; e quando estes mesmos filhos, apoiados em experiências anteriores e apostando no futuro, insistem para que seus filhos e netos permaneçam na terra, junto a suas famílias. Nesse processo de constituição de suas roças e de suas moradas, nos trajetos sinuosos por entre matas e rios, os habitantes de Pedro Cubas, à sua maneira, conectam passado e presente, e jamais deixam de imaginar um futuro onde suas existências estejam inscritas. Existir, para estas populações, é uma luta permanente e que persegue também a manutenção de suas terras, de seu modo de viver e de produzir conhecimento.


A Luta pela Terra.


Em um contexto marcado pelo contínuo ir e vir dos moradores de Pedro Cubas, outros agentes circulam e atuam em seu território. O acirramento dos conflitos entre os habitantes de Pedro Cubas e fazendeiros da região, nas décadas de 70 e 80, e a insegurança desse período, levou a um processo de deslocamento de sua população, principalmente os mais jovens, em direção a cidades como São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro e Sorocaba. Esta foi a trajetória de algumas das atuais lideranças de Pedro Cubas. Partiram jovens, casaram-se, trabalharam, alguns estudaram e reconstruíram suas vidas nessas grandes cidades. A partir do final da década de 1990, há uma inversão desse fluxo de deslocamentos, e o retorno de algumas famílias, em razão das mudanças nas legislações de regularização fundiária que permitiram avançar nos processo de demarcações e efetivação dos direitos territoriais quilombolas. Apesar da longa permanência fora, as famílias que retornaram são reconectadas aos núcleos familiares que ficaram.


Estes moradores, ao retornaram, trazem consigo um saber, esse sim exógeno, que irá ajudá-los a compor suas Associações locais 7 . Esse retorno imprime um novo movimento e uma nova forma 7 Essas pessoas, futuras lideranças de Pedro Cubas, ao retornarem no fim dos anos noventa trazem consigo experiências advindas de um período de grandes dificuldades vividas nas periferias e favelas em que moraram. Situações de.


Peças técnicas.


Desde o final da década de 1980, intensos debates políticos, sociais, acadêmicos e jurídicos produziram importantes contribuições para a formulação e redefinição dos dispositivos constitucionais e normativas que regulamentaram o processo de reconhecimento e demarcação dos territórios quilombolas 8.


Cubas 2 . Ao longo de uma teia de águas formada pelos afluentes do rio Ribeira, estabeleceram-se esses lavradores, formando pequenos núcleos familiares interligados por trilhas.


Entre os anos de 1998 e 2000, os moradores de Pedro Cubas vêm experimentarando os efeitos do processo jurídico-burocrático do autorreconhecimento quilombola. Um dos desdobramentos desse processo foi a divisão da àrea reivindicada pelo grupo em dois núcleos distintos: Pedro Cubas de Cima e Pedro Cubas de Baixo 3 .


Embora estudos acadêmicos, relatórios antropológicos e peças técnicas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), itere e reitere a existência jurídica de dois "Remanescentes de Quilombos", suas lideranças fazem-nos saber, de antemão, que Pedro Cubas é uma coisa só. Essa explicação foi recorrente em diversas conversas com os moradores de Pedro Cubas, durante o período em que convivi com algumas de suas famílias, por ocasião de minha pesquisa de mestrado 4 .


O texto que se segue, de certa forma, recompõe os percursos que percorri para apreender os sentidos desses diálogos, bem como um esforço em apreender aquilo que em campo parecia delinear o encontro entre duas razões: uma que caminha com as almas, desenha e redesenha a paisagem, ao longo das estações, rituais e procissões; outro que georreferencia, constrói diagramas, classifica paisagens e garante direitos territoriais.


A primeira refere-se à lógica de experimentação do espaço dos moradores de Pedro Cubas, meus interlocutores quilombolas, os quais se reconhecem como sendo gente da terra. Entre seus habitantes, como procurei demonstrar, as relações que iluminam e dão sentido ao tempo e ao espaço estão implicadas em seu caminhar, no entremear de suas casas, matas e roçados; na duração das atividades constitutivas da habitação, nos laços de reciprocidade tecidos nos puxirões, nas texturas da terra, na lógica de circulação por todo o território que confirma alianças 2 Utilizo a grafia em itálico como sinalização para os termos enunciados por meus interlocutores em campo; e para as citações bibliográficas, opto pela grafia com aspas duplas. Como forma de assegurar o anonimato de meus interlocutores em campo, os nomes de pessoas físicas foram substituídos. 3 Os habitantes de Pedro Cubas vivem ao longo de tributários do rio Ribeira, no município de Eldorado, na região do Vale do Ribeira, extremo sul do Estado de São Paulo. O território reivindicado por seus habitantes foi parcialmente reconhecido e titulado pelo Instituto de Terras de São Paulo (ITESP) como Remanescente de Comunidade de Quilombo no ano de 2007. A porção restante, conhecida como Pedro Cubas de Cima, aguarda regularização e titulação por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Os dados e reflexões apresentadas nesse trabalho são parte da pesquisa que deu origem a minha dissertação de mestrado , defendida no PPGAS-UFSCar. A pesquisa foi realizada entre os anos de 2010 e 2013, ao longo de três meses de trabalho de campo contínuo. como forma de defesa dele. Movimento que se repete e é atualizado quando as pessoas pisam o chão de terra e atravessam os rios, enquanto caminham com as almas, com os seres subaquáticos (gente da àgua) e com os técnicos do INCRA.


A outra se refere a pessoas que fazem uso de uma certa razão estatal -como os cartógrafos, agrimensores, antropólogos e cientistas sociais -, as quais chamei de "gente dos papéis". Pessoas com as quais os habitantes de Pedro Cubas tecem alianças, em seus quitais, em seus caminhos, para poder, frente ao Estado, garantir a sua terra. Argumento que para a gente dos papeis, a experiência sensível do caminhar também está implicada em suas práticas, percepções e modos de conhecer; mas cujo "pensar sobre o mundo" envolve compartimentar paisagens, classificar e estabelecer padrões de usos da terra (com base em seus usos econômicos e políticos), localizar limites e confrontações, definir pertencimentos e traçar cadeias de ligações genealógicas. Um processo de composição de mundo que converte o movimento em intervalos, a duração em instantes sucessivos, que traduz a experiência local e particular do "ser no mundo" em "visão panorâmica" , perspectiva a partir da qual se obtém o território visto do alto.


Nessa elaboração, proponho explorar como o processo o jurídico-burocrático de autorreconhecimento de Pedro Cubas se constitui a partir da interseção entre esses modos distintos modos de ver e produzir conhecimentos. Com base em meus dados de campo e nas Peças Técnicas referentes a esse processo (mapas de levantamento planimétrico, croquis de uso e ocupação, memoriais descritivos e relatórios antropológicos), busco delinear de que maneira esse encontro entre tecnologias e técnicas sensíveis de percepção espacial toma forma e é estabilizado nos documentos.


Em meio a esses procedimentos, a produção antropológica ora se aproxima do campo de conhecimento cartográfico, quando indica que os fundamentos da ocupação e territorialidade quilombola devam ser lidos por meio de uma concepção abstrata e substancialista da terra e das relações que nela se promulgam, ora se realiza numa abordagem mais consoante às práticas e concepções quilombolas, ao buscar descrever e trazer à tona um modo de existir nessas localidades, que se organiza em torno de percepções singulares sobre caminhos, trajetos e roçados que orientam relações e a luta permanente dessas populações pela manutenção de suas terras.


Nos procedimentos de identificação e delimitação, sob a tentativa de tradução, as práticas relacionadas às percepções espaciais dos habitantes de Pedro Cubas são descritas por antropólogos e cientistas sociais a partir de parâmetros conceituais definidos em normativas editadas pelo INCRA, instrumento que regulamenta a confecção dos Relatórios Antropológicos, dentre outras peças técnicas demandadas no procedimento de titulação coletiva de um território quilombola -cujas definições apontaram para uma forma de ocupação territorial associada a concepções cartesianas e econômicas do território 5 .


No entanto, é importante enfatizar que a insistência analítica nessa distinção não tem como intuito desqualificar os saberes técnicos que se realizam sob demanda administrativa. Tampouco se pretende negar que entre essas razões e modos de conhecer haja mesmo uma interpenetração constante. A importância em explicitar esse contraste é demonstrar que, sendo distintos, é a partir do encontro entre esses modos conhecer e promulgar o mundo que o território de Pedro Cubas se torna reconhecível aos olhos do Estado. E isso é fundamental, pois a garantia da permanência das populações quilombolas em suas terras permite que seus habitantes continuem a se deslocar, para firmar seu compromisso contínuo com a terra, com seus antepassados e com suas famílias.


O exercício aqui proposto é tornar visível o modo como determinadas práticas e acepções de tempo e espaço são operdas no processo de composição das peças técnicas que permitem o reconhecimento jurídico de um território quilombola. O presente texto propõe, assim, pensar tanto nas imbricações dessas práticas, quanto em seus processos de estabilização em artefatos-documentos, a partir de um exercício de escrita antropológica que opere torções, comparações e contrastes entre distintos materiais etnográficos. Seguir a estratégica etnográfica do contraste permitiu mostrar as tensões, equivocações, embates conceituais e acordos que emergem do encontro pragmático entre esses modos distintos de ver, conhecer a mapear o mundo.


Fazer a roça no sistema dos antigos.


É na experiência do caminhar e no compromisso contínuo com terra que a existência dos habitantes de Pedro Cubas se promulga e se entrelaça ao lugar que vivenciam. Em um contexto 5 A acepção de território acionada neste texto remete à categoria mobilizada no contexto dos processos de identificação e reconhecimento dos direitos territoriais quilombolas. Embora o conceito de território também se constitua como objeto de reflexão de meus interlocutores quilombolas, sendo acionado por suas lideranças no âmbito de suas lutas, espaços de disputa e negociações políticas; não é em torno dessas mobilizações conceituais locais que as reflexões aqui propostas estão colocadas. Neste texto, interessa-me pensar, comparar e contrastar tecnologias e técnicas sensíveis de percepção do tempo e do espaço. marcado pelo contínuo ir e vir de seus habitantes por entre as trilhas dos antigos, as roças, e seus espaços complementares (quintais, terreiros, matas, rios e caminhos), emergem como domínio central em torno do qual os moradores de Pedro Cubas se relacionam, produzem conhecimentos e lutam pela permanência em suas terras.


Como em outras localidades quilombolas do Vale do Ribeira, em Pedro Cubas fazer a roça no sistema dos antigos é um tema importante para os moradores. Fazer a roça, para estas populações, envolve ciclos de deslocamentos, técnicas sensíveis de manejo e conhecimentos específicos relacionados a formas de perceber, identificar e classificar os diferentes espaços de cultivo. Esses conhecimentos orientam as decisões sobre o tipo de plantar e de colher nestes espaços e estão interligados a maneira como os quilombolas de Pedro Cubas pensam e estabelecem relações com os múltiplos seres que habitam esses ambientes.


Os mais antigos moradores usam o termo capuava para se referirem às áreas de plantio distantes das casas habitadas por suas famílias. É lugar que se trabalha longe. A longa permanência de seus habitantes nos espaços que compreendem suas capuavas, roças e roçados ou na própria mata, muitas vezes, torna inviável o retorno diário às suas casas. Assim, moradias provisórias são edificadas para que possam dormir e estocar os alimentos produzidos. Tais edificações são designadas por paiol ou tarimba. Ao final de um ciclo de trabalho, que poderia durar dias ou semanas, os moradores voltam para a suas casas, próximas à Vila de Santa Catarina.


Uma característica marcante das casas em Pedro Cubas é a sua transformação contínua, do ponto de vista de sua composição material e sua disposição espacial, ao longo do tempo. As cozinhas, construídas ao lado da estrutura principal, quase sempre estão voltadas para os quintais, onde são cultivadas determinadas ervas e pés de fruta. De tempos em tempos são reconstruídas e deslocadas.


Esse deslocamento das moradas circunscreve-se a uma área, chamada por seus moradores de terreno ou sítio, cujo sistema de posse e gestão é familiar.


Na constituição dessas múltiplas práticas e trajetos diários, as moradas em Pedro Cubas constituem uma referência de permanência para a experiência familiar cotidiana, ao passo que a roça, um domínio em contínuo movimento. O modo como esses "espaços" são constituídos, pensados e vivenciados permitem apontar como os quilombolas de Pedro Cubas, à sua maneira, desenham continuidades e descontinuidades, nem sempre visíveis, entre os distintos lugares.


Como as pessoas, as roças também se deslocam na paisagem, de acordo com uma temporalidade específica. A permanência de uma roça num mesmo "lugar" ao longo de um ciclo de cultivos pode durar até dois anos. Embora estejam em constante movimento e sendo continuamente refeitas, as roças podem ser transmitidas pelas famílias, ao longo das gerações. Uma mesma família pode ter roças e capuavas em diferentes localidades. As roças de arroz, do milho e feijão são os tipos mais encontrados nestes espaços de cultivo e demandam formas coletivas de trabalho, chamadas localmente de puxirões 6 . Puxirão é o termo utilizado pelos habitantes de Pedro Cubas para se referirem ao trabalho conjunto de moradores em torno de atividades como a roçada (abertura de grandes áreas para as roças), o plantio, a colheita e a quebragem. Os puxirões podem envolver O que determina a abertura de uma capuava é o tipo de plantar e de colher. São denominados capoeirão a mata virgem derrubada pela primeira vez para abertura do roçado; capoeira, a roça encapoeirada pela mata e que será limpa e utilizada pela segunda vez; capoeira fina ou capoeirinha fina, a roça aberta pela terceira vez; e tiguera a roça utilizada com frequência para o plantio. Ao explicar-me como reconhecer um bom solo para se plantar, Sr. Sebastião enfatiza que para identificar uma terra boa para o cultivo é preciso perceber sua textura, seu cheiro e a presença de determinados seres.


Pegue um punhado de terra nas mãos e amasse: se a terra sair pelas mãos é porque ela não está firme, se não encontrar minhoca e não sentir seu cheiro, não está boa para plantio. Se A descrição do Sr. Sebastião aponta para algumas das características observadas em uma boa 6 Os puxirões também são organizados para barrear paredes de casas de pau-a-pique e varação de canoas. terra para o plantio. Nesse processo de identificação, diversas outras variáveis são consideradas, como o tipo de plantas e seres que habitam aquele "ambiente". Uma boa roça para o plantio do arroz, desse modo, levará em conta a umidade do solo e da vegetação, e para o milho, os indicativos serão as árvores guapuruvu, a figueira e a guararema. Recomendação das Almas, ritual realizado na noite de sexta-feira santa, em que os habitantes de Pedro Cubas percorrem uma antiga estrada de terra que liga a Vila de Santa Catarina ao cemitério, nas margens do Rio Ribeira, onde seus antepassados foram enterrados. Esse modo singular dos habitantes vulnerabilidade advindas da condição de subempregados que lhes possibilitaram uma importante compreensão quanto ao cenário político no qual estavam inseridos e as transformações políticas em curso no país. É importante destacar que nesse período, entre final da década de setenta e início da década de oitenta, impulsionados pela crise de uma ditadura civilmilitar que assolava o país, ocorrem as grandes greves operárias, a emergência de um partido de massas (Partido dos Trabalhadores), a reorganização de movimentos sindicais (Central Única dos Trabalhadores), entidades estudantis (União Nacional Estudantil), movimentos populares urbanos (dentre muitos, destaca-se o Movimento Negro Unificado, em 1978) e rurais (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra).


de Pedro Cubas mover-se no mundo -um mundo no qual se caminha com as almas, com seres subaquáticos e com agentes do INCRA -é um dos momentos no qual se dá o encontro entre a gente da terra e a gente dos papéis. Há outros: nas reuniões de suas associações e entidades representativas com órgãos fundiários, nas visitas de campo de equipes de técnicos e pesquisadores das universidades. Tratase de um movimento que as lideranças de Pedro Cubas passaram a compor junto a pessoas que fazem uso de uma certa lógica estatal, como geógrafos, agrônomos, agrimensores, engenheiros cartográficos e cientistas sociais. meio de um requerimento (oral ou escrito), encaminhado por uma associação quilombola legalmente constituída, ou outras entidades e pessoas interessadas. A caracterização de um Remanescente de Quilombo ocorre mediante autodefinição, a qual será certificada pela Fundação Cultural Palmares, por meio da emissão da Certidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidade de Quilombo (Art. 3° IN 57/2009).


A segunda fase deste processo corresponde à identificação e delimitação das terras ocupadas por Remanescente de Quilombo, o qual se fará a partir de indicações da própria comunidade, bem como a partir dos estudos técnicos, científicos e antropológicos, que irão compor as peças técnicas que compõem os Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID). A abertura dos procedimentos para a elaboração do RTID efetua-se na constituição de um Grupo de Trabalho composto por uma equipe multidisciplinar de técnicos nomeados pela Superintendência Regional do INCRA que, a partir de reuniões previamente realizadas com a comunidade reivindicante para apresentação dos procedimentos adotados, dará início ao estudo de área visando a confecção das peças técnicas. Essas equipes são compostas por engenheiros cartógrafos, técnicos ou engenheiros agrimensores, antropólogos, cientistas sociais, sociólogos, geógrafos, historiadores, agrônomos, engenheiros ambientais, dentre outros profissionais.


De modo simplificado, o objetivo geral de um RTID é a construção de proposta de perímetro que será apresentada em reunião com as populações do Remanescente de Quilombo objeto da demarcação. Esta apresentação/proposta ocorre diante um mapa. Em caso de recusa pelo grupo, o RTID tem de ser refeito. Em caso de aceite, o RTID seguirá para análise do Comitê de Decisão Regional do INCRA, que por sua vez o encaminhará à Superintendência Regional, a qual caberá a publicação do RTID em Diário Oficial da União, Diário Oficial da Unidade Federativa.


As fases do processo administrativo de reconhecimento e regularização fundiária de um território quilombola, sua divisão em distintas etapas, implicam uma sequência de eventos, com seus respectivos prazos de tramitação e execução, organização e produção de conhecimento. Aqui o "tempo certo" depende da produção de documentos anteriores, das aprovações e contestações destes documentos, da composição da equipe técnica com as quais as populações quilombolas se deparam quando há "visitas a campo". Sem a constituição da pessoa física quilombola, comprovada por papel, não se tem a fase seguinte . Não é a terra que se segura e se deixa escorrer pelos dedos para perceber se está boa para o plantio, é a capacidade de coletar assinaturas, carimbos, em instâncias específicas.


No mundo da "gente dos papéis", as pessoas circulam na medida em que os papéis circulam. A visita de um antropólogo gerará uma peça técnica (o Relatório Antropológico) que inaugurará a etapa seguinte, com a visita do técnico agrimensor e o engenheiro cartográfico. Estas gerarão ainda outras peças técnicas, o Memorial Descritivo e o Levantamento Topográfico. Em outras palavras: a circulação de técnicos peritos e a mobilização de determinados saberes, gerarão documentos que inaugurarão mais uma fase, que por sua vez mobilizará outros técnicos.


As roças "vistas do alto"


As roças apontam para aspectos centrais da lógica local de experimentação do espaço entre os habitantes de Pedro Cubas. Modos de conhecer, perceber e vivenciar que não se reduzem às esferas de produção, consumo e comercialização apenas. Contudo, como veremos, o espaço compreendido pelas roças é também um dos principais elementos representados nas peças técnicas dos Relatórios de Identificação (RTID). Concebidos como uma esfera da "economia tradicional", os diferentes espaços abrangidos pelas roças foram enfatizados nos mapeamentos como elementos fixos de uma unidade de paisagem homogênea. Nos mapas oficiais (sempre em escala 1:25.000), o território de Pedro Cubas emerge sob a perspectiva de seus usos e finalidades. A imagem evocada é a de uma dinâmica territorial que se realiza em círculos concêntricos.


Seguindo os mapas que compõem as peças técnicas do processo de titulação de Pedro Cubas, a primeira questão que desponta refere-se ao conjunto de elementos representados pelas áreas discriminadas no mapeamento estatal, a relação entre elas sugerida e por elas circunscritas. Como um conjunto de recursos naturais inertes e indiferenciados, o ambiente aqui descrito só adquire contornos sob a ação humana, cujas práticas cotidianas se produzem como inscrições culturais sob um pano de fundo natural. Assim, num gradiente máximo de ocupação, encontrar-se-iam as moradias ou habitações e seus respectivos quintais, como referência geográfica para o espaço ocupado pelas famílias e o convívio entre elas; as roças de coivara, como um domínio em que a presença e a atividade humana é menos perene e intensiva; em seguida, as áreas reservadas ao extrativismo; e por fim, o domínio das matas, em gradientes decrescentes em que as experiências humanas deixam de estar implicadas.


Se por um lado a abordagem antropológica, numa tentativa de aproximação das experiências espaciais dos moradores de Pedro Cubas, tende a tornar mais abrangente a noção de práticas tradicionais de manejo como um conjunto de habilidades e conhecimento locais, por outro, este envolvimento é identificado no interior desse processo como uma estratégia adaptativa, cuja finalidade última é a sobrevivência e reprodução do grupo. Nesse tipo de abordagem, a lógica territorial dos grupos locais passa a ser expressa em termos de uma perspectiva preservacionista de adaptação aos ciclos da natureza e condição de sua continuidade como grupo social . Aqui, a percepção de um ambiente provedor ganha força, na medida em que apreende as experiências e concepções espaciais locais como estratégias de sobrevivência, num processo de tornarem-se camponeses (CARDOSO, 2013).


Na produção de dados espaciais compatíveis à linguagem do reconhecimento do direito a terra, o território é enunciado como um suporte físico autônomo, imprescindível à reprodução física e cultural de seus ocupantes. Para que essa relação possa ser comprovada, a narrativa que emerge das peças técnicas articula e sobrepõe uma série de informações associada a uma racionalidade que é exterior à dinâmica de relações que a configura.


Assim, ainda que dentre os elementos abarcados pelo olhar dos pesquisadores, aspectos das práticas de conhecimento locais sejam explicitadas -como a habilidade de seus moradores em distinguir um trecho de vegetação da Mata Atlântica, levando-se em conta o tamanho e cor de suas folhagens e as espécies que a circundam-estas experiências e percepções são frequentemente lidas e apreendidas sob termos que se afastam das construções nativas, como as noções de eficácia produtiva e custo ambiental, por exemplo. O modelo de organização espacial apresentado pelas peças técnicas fragmenta o território em áreas físicas fixas, unidades da paisagem, de acordo com as diferentes práticas produtivas e padrões de usos da terra. Nesse sentido, a identificação da espécie de cultivo, os recursos disponíveis ou o modo como estes elementos são manejados em uma determinada área são informações importantes, porém, não suficientes para determinarmos a maneira como estes ambientes são vivenciados e apropriados pelos grupos. . Dinâmicas que se recriam no tempo e no espaço, e se atualizam continuamente, à medida que estas pessoas se movem, adquirem e produzem conhecimento. São inúmeros os conjuntos de "linhas e pontos" "continuidades e fronteiras" , que observamos os habitantes de Pedro Cubas tecer à medida que se movem, incessantemente. Estas linhas e pontos são desenhados cotidianamente. Diferente destas "linhas e pontos" desenhados no projeto cotidiano de habitação dos moradores Pedro Cubas, a delimitação do perímetro superpõe outras linhas e pontos ao território, como as linhas limítrofes e os vértices utilizados ao georreferenciamento de um imóvel rural.


Encontros e equívocos.


Projetados em diferentes escalas, dispostos sobre a mesa, afixados às paredes ou em suporte digital; mapas -como expressão de um modo de ordenar e compreender o mundo -são artefatos gráficos rotineiros para as lideranças das Associações Quilombolas do Vale do Ribeira. Colocados ao centro ou à frente de uma sala, onde todos possam vê-los claramente, os mapas são frequentemente o ponto de partida de reuniões, seminários e encontros coordenados por órgãos fundiários, agências governamentais locais e ONGs, dentre uma diversidade de agentes públicos e privados com atuações políticas específicas nesta região. Introduzidos a partir da exigência estatal para abertura dos procedimentos administrativos de regularização fundiária, mapas e cartas são permanentemente confeccionados e mobilizados neste contexto. abstrato, porém que existe", como afirma Ailin. Uma pergunta comum quando se está tomando mate pela manhã é: "você sonhou?". Se sim, a pessoa então irá narrar o seu sonho. Através dos sonhos é possível prever algo que está por vir (sonhar com carne crua, por exemplo, é sinal da morte de alguém próximo). Também podem transmitir a necessidade de realização alguma cerimônia (ver adiante).


Através de um sonho é possível também se comunicar com algum parente próximo já falecido.


Desde o início do processo de chamada para que assumam este papel, os maci são uma importante ponte de contato entre os Mapuce e as forças do mundo, incluindo aí os antepassados Ciwkvjiwiñ. Quando foi realizada uma cerimônia para a vó dela, após sua morte, descobriu-se que nesta cachoeira há um gen, e que esta era a motivação da proibição. A avó materna de outra amiga Mapuce proibia os netos de mergulharem em uma determinada parte do rio Trancura, que corta a comunidade de Quetroleufu, no Chile. Ela também os proibia de andarem para dentro de um riacho tributário deste mesmo rio, pois aí há um gen.


Há então toda uma ética baseada na perspectiva fundamental de que é preciso respeitar as distintas forças de um lugar. Estamos num universo povoado de muitos "seres-terra" ("earth-beings") Consequentemente estamos em um mundo no qual o respeito às vontades e sentimentos desses seres-força é fundamental, por isso "deve-se pedir licença" ("hay que se pedir permiso") a eles, um comportamento bastante difundido no mundo mapuce . Deve-se "pedir licença", por exemplo, ao chegar a algum lugar. Um maci ao chegar ao rewe (≈ centro ritual) de uma cerimônia para a qual foi convidado deve pedir licença às forças do lugar. Quando se retira o pedaço de uma planta, para utilizar como remédio ou para outro fim qualquer, também se deve pedir licença.


Considerações finais.


Um ce está inexoravelmente relacionado à sua origem familiar. A quais ramos familiares uma pessoa está relacionada, quem são seus pais e avós, que papéis seus parentes paternos e maternos desempenham ou desempenhavam no território, nela reverberam de distintas maneiras. Uma dessas maneiras, como vimos, diz respeito ao alinhamento dessa pessoa no movimento do conhecimento do mundo.


Território, seja como referência radicalmente ampla ao cosmos -com seus diversos planos para cima e para baixo, ou a recortes espaciais ou locacionais mais específicos de um contínuo que costumamos chamar de "paisagem", diz respeito não apenas à uma extensão de "terra" ou do solo. Sabe-se ainda muito pouco sobre as relações humano-animal nos espaços rurais brasileiros, especialmente em comunidades quilombolas e, no entanto, tais relações constituem elemento fundamental para se pensar a própria vida social (Cf. , para a elaboração de uma etnografia interespecífica; e de , que sugere a necessidade de voltarmos nossos olhos para os não humanos -no caso deste trabalho, os animais -para podermos pensar os humanos, uma vez que "a common feature of all conceptualizations of non-humans is that they are always predicated by reference to the human domain" (environment) -um território relacional, por assim dizer: "environments are never complete but are continually under construction" .


Caça e pesca.


Não pesquei baleias nos dias do Senhor, mas não desperdiceis uma boa oportunidade, pois seria rejeitar as dádivas celestes os espaços do bairro, como o bugio e o sagui -"bicho mais perigoso não aparece, não". Atualmente, o contato dos moradores com esses "bichos" é muito raro e até mesmo indesejado. Acredito que, no.


Carmo, "lugares, seres, pessoas, situações e objetos são avaliados, para serem pensados e vividos, segundo uma escala que, entre outros valores, poderia ser sugerida como indo de um máximo de rejeição-evitação a um máximo de reconhecimento-aproximação" . Dessa forma, dentre os animais que vivem fora dos espaços sociais do bairro, há os que se aproximam e aparecem nas falas das pessoas -como as caças e os "invasores" -e os que são evitados -chamados genericamente de "bichos do mato", "bicho perigoso". conversei disse que não pesca mais, mas que gostaria muito de voltar a dedicar-se à atividade (porque "gostam muito" e "sentem falta de").


Tanto caça quanto pesca são atividades que, mesmo pouquíssimo ou quase nada praticadas atualmente, vinculam território, humanos e animais. Evoco aqui, novamente, a noção de engajamento . A vontade de recuperar, pelo menos em parte, tais atividades demonstra uma reflexão dos moradores sobre a "perda" da natureza pelo avanço do espaço urbano sobre seu território.


Outros bichos.


Habitantes de um mesmo reino imaginado de terrores e mistérios dos ermos danosos dos sertões, juntamente com os vegetais malévolos, existem os bichos fantásticos e sempre ameaçadores: a mula-sem-cabeça, o lobisomem (. ) .


Restam, agora, os "outros bichos", sobre os quais pouco se fala e muito se teme. Ao contrário do que defende Escutei, também, uma história que deixa ainda mais evidente a fluidez das fronteiras entre humanos e animais no Carmo: contaram-me que, antigamente, as mulheres que ali viviam e que abortavam transformavam-se em porcas e vagavam à noite pelo bairro, com seus porquinhos (seus filhos que não nasceram). Essa história, da "porca e dos sete porquinhos" aponta também para os "mistos de natureza e cultura" :35) -sem deixar de, novamente, hierarquizar as duas categorias (os humanos estão acima dos animais, tanto que o ato de abortar tinha por consequência/castigo a transformação da mulher em uma porca).


são biológicos e algo a mais" . Diria até que esses "outros bichos" ocupam um lugar ainda mais afastado dos humanos, apesar de o terem sido um dia -e apesar de o serem na maior parte do tempo, já que, pelo menos no caso do lobisomem e da mula-sem-cabeça, as transformações ocorrem apenas nas noites de lua cheia na quaresma. Quem desejar saber quem é o lobisomem é só oferecer-lhe sal -mas quase ninguém tem coragem. D. Antônia contou-me que sua tia uma vez ofereceu, porque ele "atentava" suas galinhas.


No dia seguinte, assim que o dia clareou, bateu à sua porta um homem estranho pedindo sal. Quem vira lobisomem fez coisa ruim também. Vira "corpo seco", espírito ruim. Além disso, não deve-se nunca "duvidar do bicho". D. Antônia disse-me, também, que quem dá tiro em lobisomem, mulasem-cabeça ou caipora vira bicho no lugar deles.


No Carmo, esses bichos misteriosos e terríveis também vinculam-se ao território. Estão ligados, assim como os animais de criação e caça, a lugares muito específicos do bairro e de seu entorno (como a Serrinha do Carmo e a Fazenda Icaraí, por exemplo); têm até vínculo de parentesco com os humanos. São reais, ao contrário do que sugere : fazem parte do imaginário, mas ultrapassam-no. Estão, simultaneamente, nos planos natural -são bicho -, culturalsão gente -e sobrenatural -são bicho, gente, e algo mais, algo ruim (espírito ruim). Como disse-me uma moradora do bairro, "não pode duvidar do bicho".


Considerações finais.


No Carmo, para que pudesse compreender as relações humano-animal foi-me preciso pensar numa "natureza" politizada: ali, os quilombolas definem e concebem a natureza -e, logo, os animais, principalmente de caça e pesca, do mato e de criação -como algo que, ao menos fisicamente, é muito raro (mas que, certamente, é elemento indispensável para a manutenção da própria identidade do grupo e da territorialidade, bem como um vínculo com o passado):


Sendo, portanto, quilombolas e remanescentes grupos sociais que historicamente estabeleceram relações de uso comum com recursos naturais, deve-se considerar que junto a esse fato se dera uma construção identitária que leva ao conceito de territorialidade ou ao processo de territorialização .


Além disso, refletir sobre tais relações no Carmo a partir da noção de territorialidade , bem como pensar a territorialidade a partir das relações humano-animal e a forma como essa territorialidade é construída pelos quilombolas mostrou-se interessante, uma vez que a própria construção identitária de uma comunidade quilombola enquanto tal se dá, talvez principalmente, através das relações com o território e o conjunto de animais e outros seres não humanos.


Essa centralidade da territorialidade para a manutenção da identidade quilombola possibilitoume a seguinte reflexão: se o território é tão importante para a construção identitária de uma comunidade quilombola, esteja ela num espaço rural ou urbano -ou, como é o caso do Carmo, num espaço rural cada vez mais compactado pela expansão urbana (Ferreira, 2013) -, penso que a situação fundiária certamente provoca redefinições nas relações entre humanos e animais, até mesmo na própria noção nativa de natureza. E vice-versa: sugiro, aqui, que as relações humanos/não humanos certamente impactam a definição do território pelos quilombolas.


Foi-me muito importante, também, abordar as relações humano-animal no Carmo a partir das noções de parentesco e afeto, uma vez que as comunidades rurais brasileiras, mesmo encontrando-se em maior ou menor grau incorporadas à sociedade nacional brasileira e, portanto, com ela compartilharem em maior ou menor grau uma forma utilitarista de sem pensar a relação com os seres não humanos, entretecem relações, campos de significação . 41 Durante minha pesquisa de mestrado estava interessada em compreender as estratégias mobilizadas pelos moradores de Sangradouro Grande para assegurarem seus direitos territoriais. A atuação política dos moradores acontecia em diversos espaços fora da comunidade -em reuniões, cursos de formação e outros eventos -em que eles se encontravam para debater pautas sobre os direitos, conflitos e estratégias de luta. Suas participações em eventos eram importantes para manjar os processos e afinar os discursos. Para uma descrição aprofundada deste tema, ver Acypreste . 42 O referido projeto vem desenvolvendo estudos em comunidades ribeirinhas da baixada média do rio São Francisco, afim de "subsidiar científico e tecnicamente processos de reconhecimento e regularização fundiária de territórios tradicionais em áreas da União, em terras devolutas e particulares no Estado de Minas Gerais" (ANAYA, 2022, p. 8). Para tanto, o Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental (NIISA), o Grupo de Estudos OPARÁ e a REDE MATAS SECAS, todos estes vinculados à UNIMONTES, têm tecido diálogos fundamentais junto ao Grupo de Estudos Amazônicos (GEAM/UFF-RJ) e ao Grupo de Estudos de Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG), visando, no âmbito do projeto, a "construção de metodologia inovadora específica para identificação e caracterização das terras tradicionalmente ocupadas pelas populações ribeirinhas que ocupam as áreas da união, especificamente as áreas de margens de rios" No dia seguinte acordamos cedo para esperar Ramiro, que se prontificou a nos acompanhar na caminhada. Ramiro sempre viveu ali, como eles identificam, nas mangueiras. Desde pequeno anda pela beira do rio e conhece cada pedaço do lugar. Partimos da casa de Dona Olívia a pé, pois neste dia, marcaríamos também os locais das casas antigas e para isso, precisaríamos passar por baixo das 43 É interessante ressaltar que as reuniões nesta localidade são comumente realizadas em baixo das grandes árvores. O terreno destinado para a construção da Associação Quilombola de Sangradouro Grande fica localizado nas mangueiras (uma área identificada pela existência de muitos pés de manga próximos uns dos outros), e é no terreno da associação que a maioria das reuniões acontece. A escolha do lugar para a construção da associação está relacionada a uma memória dos antigos guardada nas árvores. Este aspecto será aprofundado nas próximas idas a campo. 44 O termo em questão foi utilizado no texto do Relatório de Pesquisa do projeto mencionado e refere-se as exigências da Instrução Normativa (IN) do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA nº 57/2009), órgão responsável pela operacionalização dos procedimentos de regularização fundiária dos territórios quilombolas. No texto da IN é informado que é necessário identificar e explicitar as formas "de ocupação quanto ao seu caráter tradicional, evidenciando as unidades de paisagem disponíveis no presente e no plano da memória do grupo, bem como seus usos, necessários à reprodução física, social, econômica e cultural" (INCRA, 2009). As palavras em itálico indicam falas e expressões utilizadas por meus interlocutores, assim como categorias utilizadas no projeto de pesquisa no qual colaboro. cercas. A estrada que dá acesso à comunidade existe há muitos anos, mas para os moradores que sempre viveram ali, visitar as casas dos parentes implicava em cortar caminho passando pelas trilhas dos antigos, que existem até hoje. Para evitar que o gado dos outros moradores e também dos fazendeiros -que se utilizam do recurso de soltar o gado para prejudicar a produção dos pequenosinvadam as roças, as trilhas foram fechadas e para caminhar por elas foi preciso atravessar inúmeras cercas.


A caminhada foi longa e enquanto atravessávamos a paisagem da beira do rio 46 , que para nós era composta apenas por árvores, mato e alguns pequenos animais e insetos, Ramiro apontava para os lugares nos mostrando onde ficava a casa de cada pessoa que morou naquele lugar ali. Mesmo não existindo, a partir da nossa percepção, qualquer vestígio de alguma moradia ou construção, o morador conseguia identificar o local das casas antigas, dos cemitérios e outros lugares importantes que marcam uma relação construída conjuntamente e historicamente entre as pessoas e o território.


Nos dias seguintes demos continuidade ao trabalho, desta vez de carro, pois precisávamos pegar a estrada de terra para ir até o pé da serra -que é identificado como o limite das áreas inundáveis 47 . Nestes dias marcamos os limites do território de Sangradouro Grande com outras comunidades vizinhas e também a localização dos Sangradô, que partem do rio, atravessam a comunidade e desaguam nas lagoas. Aproveitamos a passagem pelas outras comunidades para conversar com antigos moradores de Sangradouro Grande que haviam se mudado. Ao final da estadia 46 A paisagem é pensada aqui no mesmo sentido , para quem ela é considerada como "(. ) the world as it is known to those who dwell therein, who inhabit its places and journey along the paths connecting them". A opção pela utilização do conceito de paisagem vai de encontro as elaborações . Para este autor a "paisagem é um recorte espacial definida pelo olhar. É, portanto, dependente da escala e do tipo de olhar. O olhar direcionado a uma paisagem é referenciado por práticas de conhecimento, pois conhecer uma paisagem é agir sobre ela. É construí-la, no sentido dado por : uma construção concreta, não apenas uma construção mental". Neste caso, estamos falando de uma paisagem de beira de rio, pois, como pude ouvir dos moradores, o que não é beira de rio fica lá fora, e nestes lugares, as plantas não são conhecidas e, sobretudo, não existem memórias impressas nas plantas (essa discussão será retomada mais adiante). A conceito de território também aparecerá no texto, mas neste caso, para se referir à uma delimitação política das áreas utilizadas por meus interlocutores. 47 Por se localizar na margem do rio São Francisco, boa parte das áreas de habitação de Sangradouro Grande e outras comunidades circunvizinhas são planícies inundáveis nos períodos de cheia, o que também está relacionado com uma dinâmica de movimentação dos moradores entre estas comunidades. Estas áreas são determinadas pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) enquanto Linha Média de Enchente Ordinária (LIMEO) e atualmente, através da portaria N° 89, de 15 de Abril de 2010, têm sido destinadas as "comunidades tradicionais, com o objetivo de possibilitar a ordenação do uso racional e sustentável dos recursos naturais disponíveis na orla marítima e fluvial, voltados à subsistência dessa população, mediante a outorga de Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS)". Em Minas Gerais a primeira comunidade a receber a TAUS foi Caraíbas, localizada na cidade de Pedras de Maria da Cruz (MG). na localidade conseguimos marcar todos os pontos que considerávamos importantes para a construção do mapa de identificação do território.


Retornar à Sangradouro Grande e caminhar pelos lugares com os moradores me fez lembrar das vezes que já havia feito isso quando estive em campo pelas primeiras vezes. Acompanhei inúmeras vezes as caminhadas por entre as trilhas que atravessam a mata, seja para as visitas aos parentes dispersos pela localidade ou para panhá os frutos dos pés de fruta. Frequentemente acompanhava também as crianças: junto com elas, suas sacolas e baldes, caminhava no meio do mato para colher pitomba e outros frutos debaixo do pé. Estas experiências, de caminhar com os moradores na zona rural de Januária, me apresentaram outras possibilidades de pensar as comunidades negras rurais, deslocando o olhar para os modos como estas pessoas, ao estabelecerem relações com os outros seres e constituintes do mundo (plantas, trilhas, sangradouros, rio) constroem e reconstroem cotidianamente o território e a si próprias. Embora os marcos territoriais sejam importantes no processo de regularização fundiária destas comunidades, é no caminhar e no recordar que o território vai sendo construído e reconstruído. Deste modo, tendo a voltar o olhar (e também os outros sentidos) para a dimensão da territorialidade que McCallum (2022, p. 227) chamou atenção, aquela "produzida nos pequenos atos e encontros do dia-a-dia" e não aquela que "emerge de eventualidades ou processos históricos".


As comunidades quilombolas e a delimitação do campo.


As comunidades negras rurais têm sido tema de diversas etnografias desde a criação dos primeiros programas de pós-graduação em Antropologia no Brasil 48 . Entre os estudos pioneiros e os mais recentes, houve muitas mudanças na forma de se abordar estes coletivos, sobretudo após 1988 (ano em que o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias [ADCT] estabeleceu os direitos territoriais para as "comunidades remanescentes de quilombo"). A emergência dos direitos quilombolas teve como efeito muitas conexões e interseções entre a antropologia e o direito, resultando, tal como observado por , em uma "crescente demanda por uma definição judiciosa e de caráter científico que permitisse embasar as ações jurídicas motivadas por esse dispositivo constitucional". Neste processo, muitos agentes e discussões fizeram parte da acirrada disputa sobre a definição mais adequada para a categoria remanescentes de quilombos. Entre estes agentes e discussões pontuados por , compreendemos que as teorias da etnicidade se constituíram como as matrizes teóricas que fundamentaram a construção desta categoria, pois foram a partir delas, especificamente aquelas fundamentadas nas discussões de , que os próprios sujeitos envolvidos -"os grupos étnicos''' -puderam informar os aspectos que consideravam mais significativos para a construção de suas identidades, através de critérios de autodefinição coletiva. Muito se alcançou através destas abordagens, sobretudo no processo de reconhecimento e titulação dos territórios quilombolas. Toda essa paisagem de beira de rio, que inclui tanto os lugares inundáveis quanto a mata ou capão (terra firme), é composta por uma constelação de aglomerados rurais (ou comunidades).


Devido a movimentação das pessoas e bichos de criação por essas áreas, causadas sobretudo pelo movimento das águas, os moradores e moradoras dessas localidades acabam estabelecendo relações entre si. Compreendendo esta dinâmica, a equipe de pesquisadores do Projeto DS São Francisco se lançou no empreendimento de compreender a relação dos habitantes do lugar com o território de forma mais ampla, ultrapassando os limites territoriais de cada comunidade. A pesquisa que inicialmente seria realizada em Caraíbas -que compreende uma área localizada na margem direita do rio São Francisco e a ilha da Capivara -passou a incluir também as comunidades de Sangradouro Grande, Balaeiro e Croatá -todas localizadas na margem esquerda do rio. A escolha por estas comunidades especificamente está relacionada ao fato de todas elas, assim como Caraíbas, se autoidentificarem enquanto quilombolas e também devido ao seu engajamento nas lutas políticas pelo território, que as leva à participarem de diversos espaços de negociação com as instituições parceiras do Projeto DS São Francisco, como a SPU.


As discussões realizadas no âmbito do Projeto DS São Francisco foram muito importantes, sobretudo porque vieram ao encontro das minhas reflexões a respeito das populações remanescentes de quilombos, que se transformaram em minha proposta de pesquisa de doutorado.


A Memória nas Plantas.


Em uma conversa em Balaieiro, Dona Maria nos explica que cada lugar tem um nomezinho, cada lugar o pessoal que veio morando. Essa e outras narrativas são marcadas por descrições a respeito do intenso fluxo dos moradores das localidades rurais dos municípios de Januária (MG) e Pedras de Maria da Cruz (MG).


Voltando à descrição sobre a nossa caminhada com Ramiro, como se a paisagem conversasse com ele, de maneira inesperada ele começava a contar algo que acontecera há muito tempo atrás, quando o lugar, no qual andávamos, foi tomado pela água na década de 80. Depois de uma breve saída, Ramiro lembra que, ao retornar, a água já chegava na altura da cintura, e neste momento era preciso tirar para fora os animais. Quem tinha gado, tirava para fora; quem tinha cavalo, tirava para fora; quem tinha porco, tirava para fora. Os lugares de refúgio eram as comunidades próximas ao pé da serra, como Pau D'óleo e Bom Jantar. Naquela época era só chegar e arranchar. Depois que o rio vazava, as famílias voltavam para a beira do rio e cada uma escolhia o novo local de morada, que dificilmente era no mesmo lugar. Caso o rio não levasse as madeiras que sustentavam a casa de taipa, ali era reerguida uma nova casa. Os pés de manga, os pés de saputá, os pés de tamarindo e os pés de mutamba são, entre outras, algumas das árvores lembradas para localizar estas moradias antigas. Ao ver determinado pé de árvore, Ramiro lembrava que ali era o lugar de moradia de algum parente, e desse modo, também lembrava de todas as famílias que já moraram ali. Assim, é possível compreender que, para os moradores de Sangradouro Grande, Caraíbas, Croatá e Balaieiro a memória do território está inscrita nas plantas e, a movimentação das pessoas pelo lugar, constrói o próprio território. Em campo pude ouvir dos moradores que aqui é um território que tem tradição, pois é um lugar que tem histórica. Histórica pode ser tomado como modo nativo de refletir sobre a história da relação entre as pessoas e o lugar. Penso essa relação no mesmo sentido . 1), para quem "os lugares não têm posições, e sim histórias. Unidos pelos itinerários de seus habitantes, os lugares existem não no espaço, mas, como nós, em uma matriz de movimento". Se tomarmos as afirmações dos moradores dessas localidades e a de , entendemos que as pessoas, assim como os lugares, vão se construindo ao longo de um fluxo de linhas, traços e rastros. Não existem fronteiras na constituição das pessoas e dos lugares, pois ambos são resultados de caminhos ao longo da vida, de movimentos, trajetórias. Paisagem, plantas e pessoas são resultados de um processo cotransformativo, o que me leva a refletir sobre como os processos mais comuns e cotidianos, fizeram e fazem continuamente esse ambiente e por sua vez, o que podemos entender como seus territórios.


Nas pesquisas antropológicas sobre a relação das populações humanas com as plantas (essa discussão será retomada adiante) vários autores têm chamado atenção para o fato de que as plantas informam sobre diversos aspectos da vida, como por exemplo, o parentesco e a construção da pessoa.


Neste texto, parto da hipótese de que as plantas podem informar sobre os territórios das comunidades quilombolas ribeirinhas de Januária e Pedras de Maria da Cruz. O ponto que me permite conectar plantas e território pode ser encontrado nas próprias discussões sobre este conceito e seus correlatos.


Para Godoi (2014, p. 10), por exemplo, "o território toma forma não só por meio da inscrição no espaço físico, mas nas narrativas, pois ele também é organizado discursivamente, sobretudo, quando se trata de territórios de povos para os quais a tradição oral ancorada na memória social tem peso importante, como os estudados por nós, antropólogos". Considerando que nas comunidades negras 51 Aciono aqui o conceito de "habitar" . Para este autor, não podemos ver a relação entre a ação do homem na paisagem como uma inscrição, mas sim como uma incorporação, pois não existe esse pré mundo físico, como uma tela em branco a espera de uma significação cultural. O que o autor propõe é que vejamos as tessituras constituídas, na história, entre os humanos, as plantas, os animais e os seres inanimados, e como essas tessituras conformam a paisagem em si. rurais de Januária e Pedras de Maria da Cruz as plantas evocam memórias, uma abordagem centrada nas relações dos moradores com as plantas tem se apresentado como um caminho interessante para se pensar o território e outros aspectos desses coletivos 52 .


Relações Humanos -não humanos: as plantas.


Para discutir o tema que venho propondo, tomo como referência a produção antropológica centrada nas relações humanos -não humanos, que surge a partir de debates realizados por autores como Bruno Latour, Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro. As críticas desses antropólogos ao conceito de sociedade, "e os outros conceitos que ele produz" Já que as relações são o foco, outros seres ou entes passaram a ser vistos como partes importantes na construção das formas de estar no mundo. A incorporação desses outros seresartefatos, animais e plantas -nas etnografias contemporâneas, está relacionada à discussão iniciada na coletânea organizada por , que trata da dicotomia natureza-cultura. Ali, todos os autores percebem que essa oposição se reproduz em outras oposições binárias que caracterizam o pensamento ocidental. Assim, propõem que pensemos a oposição entre natureza e cultura não como um objeto em si, mas como ferramenta para a reflexão, 52 Na coletânea organizada por sobre o processo de identificação dos sítios sagrados na região do Alto Rio Negro, os elementos não humanos que compõem a paisagem, como os rios, cachoeiras, pedras, praias, plantas, entres outros, também evocam memórias, pois a história dos povos que habitam essa região está escrita nesses elementos. Segundo Hugh-Jones (2012), na mesma coletânea, alguns lugares e os elementos que o compõem se prestam como dispositivos mnemônicos para os povos que ali habitam. ultrapassando a noção de uma natureza fixa e imutável que orienta o modo como olhamos para os modos de existências completamente diferentes da nossa 53 .


Outros dois autores, , também ajudam a elucidar essa discussão. A antropologia simétrica de foi inspiradora tanto para , que a mobilizaram para revisar a dicotomia entre natureza e cultura 54 .


A categoria "não humanos" tem sido usada para designar "as maneiras, extremamente inventivas, pelas quais os povos do mundo denominavam tudo aquilo que não eram eles mesmos "(. ) muitas vezes, os deuses, animais, objetos com os quais fazem sociedade e que contribuíam um pouco para formá-los" . No tocante às relações com plantas e árvores no Brasil, estas têm sido objeto de estudos de autoras como Viegas As etnografias mencionadas acima são inspiradoras para a realização de uma discussão sobre a relação dos quilombolas com as plantas; no entanto, não deixo de considerar a extensa bibliografia concernente as relações entre as populações rurais e a "natureza". Foi diante de um contexto de 53 Para uma abordagem mais profunda sobre esses debates, ver Vander Velden e Badie (2011). 54 A entrada dos não humanos nas etnografias contemporâneas passou a exigir dos antropólogos que atribuíssem a cada um desses elementos faculdades de agir equivalentes às humanas. A isto, explica , se atribui a perspectiva simétrica criada e convencionalizada por . Ribeira, resultados das alterações nas dinâmicas sociais e econômicas dessas comunidades. Na 55 Entre estes estudos, podemos citar , , Estes trabalhos têm um importante papel em mostrar que a "natureza intocada" na verdade é produto da ação das "populações tradicionais" (e nas pesquisas citadas acima: fruto da ação dos quilombolas). No entanto, o que ainda se mantêm nestes estudos é uma assimetria no modo de pensar os humanos e os não humanos, pois os elementos da natureza apenas sofrem a ação dos humanos e, por isso, parecem não possuir, no mais das vezes, qualquer capacidade de agir. Com a presente discussão, sugerimos algo um tanto diferente: tomamos as plantas -junto com os humanos e outros seres -como agentes na constituição do mundo.


Desse modo, neste texto a intenção foi apontar alguns aspectos que pudessem ser pensados e discutidos a partir da experiência no Projeto DS São Francisco, sobretudo para refletir como o território têm sido permanentemente construído a partir das práticas cotidianas dos moradores.


Através do diálogo com as outras produções antropológicas sobre as plantas, intencionamos apresentar as possibilidades de discussão a respeito das comunidades negras rurais e as plantas, visando, a partir da abordagem dos humanos -não humanos, compreender um pouco mais sobre o mundo vivido e cotidiano dos quilombolas sertanejos. "vazanteiro" quanto "trabalhador" são, igualmente, "trabalhadores", ou seja, pessoas consideradas íntegras que vivem de maneira honesta a partir de um trabalho moralmente tido como respeitável. É isto que faz com que ambos sejam trabalhadores quando em oposição ao vagabundo/bandido/marginal. 58 A categoria "legume" pode assumir conotações distintas a depender do caso etnográfico em tela. , em diálogo com camponeses da zona da mata pernambucana, define "legume" com relação ao tempo exigido pelo ciclo agrícola de desenvolvimento do vegetal. Assim, "legumes" seriam vegetais de ciclo agrícola maior, quando comparados com as "verduras", -alface, tomate e repolho, por exemplo -que demandam menos tempo para amadurecer e devem ser consumidas dentro de poucos dias após a colheita, isto é, ainda "frescos"/ "verdes". "Legumes", por outro lado, podem ser conservados por bastante tempo depois de colhidos, apresentando maior resistência ao armazenamento; o que lhes permite, inclusive, serem consumidos "secos". Seguindo a lógica dos camponeses da zona da mata pernambucana, o milho seco, o feijão preto e a mandioca são considerados legumes. , em pesquisa com lavradores nos cerrados piauienses, define "legume" enquanto designação geral dada aos produtos vegetais alimentares, mas entende essa categoria com relação às dinâmicas de aprovisionamento alimentar familiar. Assim, antes de mais nada, o que definiria determinado vegetal como legume seria a importância assumida por ele em termos de volume produzido "e, portanto, de sua capacidade para alimentar a família e proporcionar alguma troca monetária" . No que diz respeito a vazanteiros do médio Parnaíba com quem tive contato, toda e qualquer produção agrícola originária da vazante é nomeada como "legume", exceto a cana de açúcar e outros vegetais considerados como "fruta". Assim, legume parece dizer respeito a todo vegetal que, potencialmente, pode vir a tornar-se "comida", seja na mesa dos próprios vazanteiros, seja na mesa dos futuros compradores da produção, tendo em vista que a maior parte dos legumes cultivados na vazante é comercializada em feiras agrícolas locais O cultivo de vazantes na beira da Avenida Boa Esperança, isto é, "nas margens" do rio, caracteriza-se pelo plantio de macaxeira, feijão, maxixe, pimenta-de-cheiro e, sobretudo, quiabos. O ato de plantar legumes na beira do rio implica em um constante processo de interação entre humanos e não-humanos. Assim, ao cultivar quiabos na luta com uma diversidade de outros seres, os vazanteiros articulam composições particulares de paisagens.


Referências.


Paisagens vazanteiras: a terra, a lama, os altos e os baixões.


Na prática dos/as vazanteiros/as, a beira do rio constitui-se por uma sequência de altos e Seu Valdir -vazanteiro de 68 -falou-me que a terra dos baixões é uma terra forte 59 . A terra forte possui coloração escura e aspecto argiloso, ao passo que a fraca é mais clara e de características arenosas. É interessante notar que forte e fraco não são categorias estanques. Melhor pensá-las como dois extremos de um continuum em constante transformação, tendo em vista que um solo fraco pode vir a ser forte e vice versa. Neste processo, a água do rio e das chuvas desempenha um importante papel: é ela que lava a terra e origina a lama, fertilizando-a. A cheia do rio -diferente do que veremos 59 É interessante notar que a classificação dos solos de acordo com categorias de "força" e "fraqueza", mas também de "quente" e "frio" é prática recorrente entre diversos camponeses brasileiros (WOORTMANN e Assim que cheguei à Avenida -em fevereiro -costumava usar a plantação de quiabo perdida como um recurso para iniciar as conversações, tendo em vista que este também era um tema recorrente nas interações que alguns vazanteiros e seus familiares travavam comigo inicialmente. Era comum falarem do espanto perante a cheia inesperada: "há mais de cinco anos os baixões não inundavam desse jeito". Fazendo referência ao que, a meu ver, parecia uma grande tragédia, eu também iniciava timidamente alguns diálogos com um despretensioso e condoído: "Tinha muito quiabo aí, não era?". No processo de constituição da terra na vazante, portanto, entram em interação vários seres, dos quais o vazanteiro é apenas mais um a habitar o solo juntamente com a água, as sementes, a lama e, sendo composto e envolvendo a tudo isso, a umidade, sobretudo se estivermos falando em uma terra boa. A terra boa é terra úmida. Tal fato é condizente com a ideia de que terra boa é "terra lavada e coberta de lama", tendo em vista que a renovação do solo é percebida como algo que ocorre por meio das cheias do rio. Contudo, a água apresenta um duplo aspecto no entender dos vazanteiros com quem convivi: se por um lado traz fertilidade, por outro traz uma série de pragas e insetos que Terra, legumes, vazantes, homens. Até aqui, procurei descrever alguns dos processos de habitação empreendidos pelos vazanteiros na Avenida Boa Esperança e nas suas imediações, passando pelos processos de constituição dos altos e baixões e pelas malhas de relações constituintes e constituidoras tanto dos humanos como dos não-humanos no ambiente das vazantes. Este lugar, longe de ser a expressão de um domínio dos vazanteiros sobre a terra, os "animais", as sementes e outros não-humanos, é fruto de um processo de habitação conjunto, pautado na diferença entre os diversos seres que compõem o ambiente.


Assim, tem-se uma configuração de paisagem bem específica, que guarda diferenças cruciais com aquela empreendida pelas políticas de revitalização e reurbanização empreendidas pela Prefeitura Municipal de Teresina. Nesta última, categorias como meio ambiente e natureza entram em cena agenciando práticas e conhecimentos que, em última instância, produzem paisagens nas quais as pessoas do lugar -a despeito das relações biointerativas com as águas, a vegetação, etc.são categorizadas enquanto vítimas e algozes de si mesmas, espécies de "criminosos ambientais" nocivos não somente a si, mas ao meio do qual fazem parte. Mas isso é tema de outra seção deste paper. Antes disso, falarei um pouco da Boa Esperança e de como a região da avenida é percebida a partir de perspectivas centradas nos saberes geomorfológicos a respeito do lugar. É interessante pontuar brevemente esta maneira de se captar a Boa Esperança a fim de percebemos como certos saberes são agenciados nos devires de paisagem propostas pelo Programa Lagoas do Norte.


Geofísicas e hidrografias.


A Avenida Boa Esperança localiza-se na zona norte de Teresina que, conforme Lima Por ora, ainda é permitida a retirada de argila para a produção de artesanatos, em virtude de ser considerada por técnicos e funcionários da prefeitura como de menor vulto. Neste contexto, emergem diversas controvérsias no que diz respeito à definição -por parte da prefeitura-de um novo local de extração de argila. Assim, se a extração de argila ainda segue sendo permitida, isto só ocorre pelo fato de a Prefeitura Municipal de Teresina não ter conseguido equacionar a própria proposta de encontrar outra área para extração do barro. Mais detalhes sobre esta política de urbanização e suas interfaces com o artesanato e artesãos/ãs locais, ver Moraes, Monte e Pereira perturbador ao meio -, a região passa a ser vista como um agregado de "planícies aluviais", "solos silico-argilosos", "jazidas minerais desgastadas" e uma grande quantidade de "corpos hídricos". A vivência nas vazantes, porém, como destaquei aqui a partir do processo de cultivo dos legumes e de constituição do solo e do espaço nestes ambientes, mostram o quanto é impossível falar de "meio ambiente" como algo apartado das "pessoas". Pensando com , destaco que, no médio Parnaíba, só é possível falar do lugar se levarmos em consideração as relações entre humanos, não-humanos e os ambientes com os quais interagem em um contínuo processo perceptivo.


Procurei, portanto, aproximar-me das formas pelas quais a genérica, abstrata e clássica relação "homem/ natureza" desfaz-se e, assim, ganha -literalmente -corpo no cotidiano da beira do rio.


Ao colocar em evidência as paisagens constituídas no cotidiano dos vazanteiros, objetivei destacar as multiplicidades de engajamentos entre humanos e não-humanos que, em conjunto, cohabitam na tessitura contínua do lugar vazante. Tentei fugir da dicotomia entre "mundo natural"enquanto realidade empírica e objetivamente dada -e "mundo social" -enquanto construtos culturais e simbólicos sobre o primeiro. Em vez disso, percebi nas vazantes interações várias entre organismos diversos a se constituírem mutuamente com os ambientes. Algo semelhante ao que , intelectual quilombola piauiense, chamou de biointeração. Assim, procurei falar de processos entre as pessoas e o meio, pautados -não pela ideia de domínio ou de proeminência da força humana em relação à natureza -mas pela noção de comunhão: ou seja, uma sintonia dos modos de ser e agir em conexão com o mundo em seus múltiplos processos de habitação . O processo que venho a descrever nesse texto é sobre os modos de ocupação da floresta pelos Yanomami, relacionados à mobilidade e sobre a paisagem comumente resultante, incluindo áreas de regeneração das antigas clareiras de roças, que incorporam cultígenos com espécies adaptadas à situação pioneira, incluindo cogumelos, insetos e outros apreciados alimentos para os Yanomami. E sobre como esses processos criadores de novas paisagens, se transformam com a degradação causada pela corrida do ouro no Homoxi. Bruce Albert afirma ao final de seu artigo que, contra as aparências detectadas pelas equipes de saúde, os Yanomami do Tirei, aqueles que permaneceram na região degradada, sempre em busca dos utensílios e ferramentas dos napëpë (não Yanomami), exerciam uma ação dentro das dinâmicas de troca e aliança comunitária dos Yanomami; proponho aqui desenvolver um pouco mais esse argumento, apresentando evidências a partir da observação etnográfica dos anos em que trabalhei com eles (2002-06), e juntando com informações da história da paisagem no Homoxi, entre 1988 e hoje, com base na interpretação de imagens orbitais, dados da mobilidade e testemunho de campo.


Introdução.


As paisagens encontradas na Amazônia tem sido cada vez mais reconhecidas como fruto de uma interação com as populações ameríndias, concomitante ao processo de habitar, produziram o espaço, imprimindo uma paisagem específica . Entendida dessa forma, a Amazônia não é uma paisagem dada, onde os povos vieram viver, mas uma construção onde diversos elementos são reconhecíveis como fruto dessa interação. As práticas de intervenção atuais dos povos indígenas são interessantes objetos de estudo para se pensar como se opera essa produção do espaço, e permitir especulações sobre esses processos e a paisagem resultante, sobre o pensamento indígena em relação a tais processos.


Os Yanomami são um povo de recente contato que mantém um território contínuo onde os processos de mobilidade são relacionados à sua organização social, sobretudo . A mobilidade Yanomami tem sido estudada em sua possível relação com os processos de construção da paisagem, através dos distúrbios que ela provoca, evoluindo para uma renovação da floresta . Nessa renovação, elementos dos agroecossistemas são disseminados, bem como espécies úteis são (nem sempre) voluntariamente disseminadas; outras espécies vicejam, associadas aos sistemas que se desenvolvem a partir do distúrbio inicial da clareira de roça e moradia. No ato de morar, os Yanomami produzem muita movimentação de matérias, desde sementes, restos de alimentares que interferem qualitativamente no espaço habitado e nas futuras transformações ecossistêmicas.


O contato intercultural foi bastante traumático nos casos em que a corrida do ouro foi a protagonista pelo lado não Yanomami. Invariavelmente, a presença dos garimpeiros provocou choques epidemiológicos, desestruturação social e resultou numa alteração das condições sanitárias e ecológicas das regiões afetadas. Grande parte das invasões garimpeiras se concentrou em áreas da Serra Parima. A Serra Parima é um imenso planalto que chega a mais de 1200m de altitude, e onde existem diversas comunidades Yanomami, formando variados grupos de aliança intercomunitária. O Homoxi, localizado nas cabeceiras do Rio Mucajaí é a região mais extensamente afetada pela presença garimpeira; ali viviam dois grupos populacionais Yanomami, um constituído de duas comunidades, e outro unificado. Boa parte dessas populações migrou para as cabeceiras do Orinoco, em função das dificuldades causadas pelo garimpo. Apesar de tudo, sempre houve um grupo de pessoas que permaneceram na região degradada, os Tirei theripë. O objetivo é identificar o contexto dessa escolha, frente ao modo de vida Yanomami, utilizando-se de uma análise geográfica das transformações na paisagem através do tempo; o aporte etnográfico da experiência do Autor ali baliza e auxilia a compreensão do que é observado com as imagens orbitais. Primeiro analisaremos o efeito do garimpo sobre o Homoxi, Alto Rio Mucajaí, no Brasil. Em seguida as trajetórias dos grupos e as paisagens resultantes, muitas já na Venezuela, na Bacia do Alto Orinoco. Analisamos então o contexto que leva o pequeno grupo a permanecer no Brasil, próximo ao posto, na paisagem afetada pelo garimpo. Antes de apresentar as imagens de satélite, faz-se necessário explicar sobre como interpreta-la em seus aspectos mais simples: tratam-se de imagens coloridas com falsacor, a partir da reflectância captada por três bandas do espectro eletromagnético (bandas 3=azul, 4= verde e 5=vermelho). A vegetação florestal aparece em verde mais escuro, as áreas alteradas, mas com vegetação, áreas de roça ou vegetação de menor biomassa aparecem com verde mais claro e as áreas abertas, cascalheiras de garimpo, roças novas com solo exposto aparecem em rosa, ou lilás, ainda podendo se identificar nuvens em branco, sombras de nuvens ou de relevo em preto, e lagos, espelhos de água cristalino (em preto, também) ou de água turva, barrenta (em azul).


Homoxi.


FIGURA 2: IMAGEM DE SATÉLITE LANDSAT 5 TM DE 1988 COM A REGIÃO DO HOMOXI, CABECEIRAS DO RIO MUCAJAÍ.


Em 1988 vivia-se o auge do garimpo na TIY ; no Homoxi já havia algumas pistas construídas, a partir da "grota do Tarzan": a primeira a ser construída foi a pista Malária , 700 m de comprimento, e que se encontra à esquerda da identificada como "Jeremias (Funai)" 68 . Além dessa, é visível na imagem de 1988 a Pista Baiano Formiga e outras alterações, pois atrai mais garimpeiros e se mostra muito mais dinâmica, nesse momento. Na imagem de 1993, ano em que houve a explosão de pistas de pouso em várias regiões da Terra Yanomami, o Homoxi já aparece como o local de maior degradação ambiental da TIY, sendo que o Rio Uxiwau, o Alto Mucajaí apresenta-se todo escavado e coberto por diversas cascalheiras sem cobertura vegetal. Além da pista do Jeremias, já estabelecida, estão visíveis as pistas do Macarrão, a oeste da mesma, a pista Julio do Blefe não aparece na imagem, mas foi aberta sobre as antigas roças do Homoxiu, grupo que hoje habita o Yaritha. A jusante da Jeremias, depois de uma faixa em que as margens do Rio Mucajaí encontra-se totalmente destruída, temos a Pista Chimarrão, Paraná e Baiano Formiga, e depois Pau Grosso. Ainda ao Norte da Pista Macarrão, encontramos a Pista Malária. Todas se distinguem no conjunto de áreas afetadas, já sem floresta, que acompanham o curso do Alto Mucajaí e afluentes. Na imagem de 1994, já há pistas destruídas, mas Pau Grosso, Baiano Formiga estão plenamente ativas e as lagoas resultantes da atividade são visíveis em toda extensão dos cursos. O Rio Apiahipiu, afluente do Uxiwau/Alto Mucajaí antes habitado pelos atuais Xereu Theripë. Os Yanomami do Xereu recorreram ao Apiahipiu para fugirem da onda destruidora da corrida do ouro; esse momento marca o que Bruce indica como uma imersão no mundo do garimpo, onde os Yanomami não têm mais escolha e os garimpeiros pouco necessitam negociar com os donos da terra, pois já são maioria. A desorganização sanitária, social e ambiental já se consolida, com fortes índices de malária e gripe.


FIGURA 5: IMAGEM DE SATÉLITE LANDSAT 5 TM DE 1996 COM A REGIÃO DO HOMOXI, CABECEIRAS DO RIO MUCAJAÍ.


Em julho de 1996, embora o garimpo reflua na maior parte das regiões da TIY, no Homoxi ele ainda se encontra em atividade; em 1998 são retirados os últimos garimpeiros ativos nas pistas Pau Grosso e Baiano Formiga. Na imagem, são nítidas atividades em grotas próximas às pistas do Chimarrão, do Macarrão, Pau Grosso e Baiano Formiga. 1999 marca o primeiro momento em que as atividades de garimpo praticamente cessaram na região mas ainda tarda a recuperar a degradação por ela causada. As lagoas ainda aparentes, a vegetação alterada e a desorganização social impedia a reconstrução das roças na região. A Funasa está instalada a partir da Pista Baiano Formiga, e logo se mudaria para a Jeremias. Em 2008 temos o mais extenso período de recuperação no Homoxi, já praticamente dez anos sem garimpo, tendo tido a experiência inovadora em educação e saúde na primeira metade da década, a paisagem demonstra tal renovação, incluindo formação de grande bosques homogêneos de kahusikɨ (Cecropia sp), árvore que possui frutos comestíveis e atrativos para caça, bem como presença de momokɨkɨ, frutos de uma euforbiácea momohi, (Micrantha rossiana) cujas sementes também são apreciadas pelos Yanomami. Nesse tempo, houve uma melhora das condições sanitárias, seguida de uma desorganização do sistema de saúde, a partir de 2003. com isso, os Yanomami em sua maioria vivam uma maior autonomia em relação aos napëpë, ao pessoal da saúde. Boa parte deles possuíam casas na Venezuela, ora como segundas residências, ora como sua principal, tornando o posto menos visitado do que antes. Se no início dessa década, já prevalecia um incentivo de promover a saúde com maior presença nas comunidades, o momento seguinte, com a instabilização dos serviços de saúde os Yanomami de Homoxi passam a permanecer mais tempo nas suas casas na região do Hayathau. Mas a desestruturação da saúde teve como consequência um esvaziamento da presença do Estado na região, levando a uma possibilidade de nova invasão que vem a se concretizar, ano a ano culminando com 2022, retratado por imagem do período: Essa é a situação atual mostrada na imagem de outubro de 2022: o posto apresenta-se estável, apesar de algumas colinas próximas ter sofrido alterações provavelmente no início do ano. Observam-se bastante alterações no entorno das pistas Baiano Formiga e Pau Grosso: na região das cascalheiras que margeiam o curso, várias clareiras indicando atividade, e nos morros mais próximos, há alteração também com raleamento da vegetação.


O garimpo voltou a ocupar um lugar de destaque nas relações do Homoxi, o que certamente acirrará conflitos com os Yanomami que ainda permanecem ali, ainda que por alternativa mantém casas na bacia do Alto Orinoco. São diversos os momentos de minha convivência em que ouvi discursos expressando tamanha indignação e incompreensão sobre as razões que levavam esses forasteiros a recolherem pedras do chão removendo todo o resto que não aproveitavam e deixando tudo, agua e terra de forma imprestável.


Diversos foram os movimentos migratórios que tiveram como motivo direto ou indireto o garimpo. E conflitos abertos pelo fato de estarem tais invasores destruindo as condições sanitárias da floresta. A seguir farei o mesmo tipo de análise aqui focada nos garimpos indicando a mobilidade Yanomami e o desenvolvimento de suas roças e locais de moradia dos três grupos: Tirei, Xereu e Yaritha. Analisaremos a trajetória dos Homoxi Theripë (povo do Homoxi) até sua posição atual no Yaritha e busca compreender as implicações do garimpo nessa migração. Os Homoxi são um grupo atualmente com cerca de 190 Yanomami habitando a Venezuela. Em 1986 eles habitavam a região homônima, emprestado da comunidade. Os Yanomami dessa comunidade sempre se posicionaram críticos ao garimpo e, veremos, boa parte das mudanças foram relacionadas à fuga do garimpo e perda das condições sanitárias para habitação.


Homoxi Yaritha.


A imagem de fevereiro de 1986 mostra a clareira dos Homoxi, com duas roças novas numa extensão das roças velhas, capoeiras e outras em produção. Além das clareiras abertas, mais outra em nova posição na floresta, ao leste da clareira principal. Ao redor, não há pistas abertas (a imagem foca na atual posição da pista do Jeremias) Na imagem de agosto de 1988, a clareira já não está mais habitada, a região ocupada pela presença garimpeira em vários focos: a Pista do Jeremias já aberta, várias clareiras de grotas, associadas ao uso das pistas, que permitiram a intensificação da circulação de pessoas; no caso do Homoxi, os garimpeiros prospectavam e exploravam ouro e cassiterita. Vemos, ao sul dessa imagem, a nova clareira aberta pelos Homoxi Theripë, em região mais montanhosa, quase na fronteira com a Venezuela. Importante lembrar que a localização desse sítio impõe condições mais adversas à produção de roças, menos planas.


A imagem de 1993, onde era a antiga morada dos Homoxi, foi nessa época aberta a pista "Jurubreve" (Julio do Blefe), aberta a motosserra sobre o sítio de capoeiras (hutu wãropata) dos Homoxi Theripë; um finado ex-morador foi ao local surpreendeu-se com a pista ali onde era sua antiga residência. O local tornara-se inabitável: restos de garimpo por toda parte; cascalheiras, galões de combustível, tambores, restos de máquina e um avião caído. Ainda em 1993, simultaneamente, o grupo do Homoxi já possuía uma roça próximo à fronteira venezuelana. Ali, abriram mais duas clareiras, uma no caminho (à esquerda, oeste) e outra no lugar onde permaneceriam mais tempo, no Wiramapiu (à direita, leste) A imagem de 1993 mostra o Wiramapiu em uma região de alto de serra, que atinge 1600m. de altitude, e tendo poucas terras menos inclinadas para cultivo. Tais terras em situação de platôs foram e são ocupadas até hoje, com renovação de roças, mas em 1999 eles já haviam iniciado a abertura de um novo sítio que seria a moradia principal deles nos anos subsequentes. Em 2008 as duas clareiras demonstram que se mantém utilizadas pelos Yanomami. Ali já surge a casa nova do Menininho, Ayokorasipiu. Essa casa não se mantém por muito tempo, e o Yaritha permanecerá como residência principal do grupo, mesmo após a morte de uma liderança famosa, interpretada como não vítima de algum ataque externo. Assim como nas roças ativas dos Tirei/Xereu theripë, denominadas Wahapiu, Arakɨtitiopëu e Ehereximipiu, há intensa atividade nos sítios de ocupação na Venezuela dos dois grupos, enquanto retratamos uma recuperação ambiental da parte afetada pelo garimpo, na parte brasileira do Homoxi. Na imagem de 2022, o Wiramapiu ainda permanece ocupado e com roças hoje, mas que a morada principal dos antigos Homoxi Theri tornou-se o Yaritha, ao sul. Yaritha (local com muitas baixadas, com terras planas) fica na bacia do Hayathau, um afluente do Ruapëu em uma região de colinas intermediárias. Suas roças se ampliaram desde sua abertura em 1999. Ali se encontravam quatro casas comunitárias (yano): a principal, a de Menininho, a de Ceará e a de Paulo. Alcançam as terras baixas do Hayathau com várias novas clareiras, uma profusão de roças em abertura e produção.


A trajetória dos Homoxi/Yaritha Theripë demonstra que boa parte de sua mobilidade teve como objetivo a fuga das condições sanitárias e sociais criadas pelo garimpo, o que eles afirmam com clareza. E que é perceptível quando eles encontram uma bacia hidrográfica isenta de garimpo e com terras adequadas ao cultivo e à vida, e permanecem ali a um tempo muito maior, apesar das dificuldades com a atenção à saúde. As migrações das décadas abandonam o Homoxi u, e em 1993, com a ida ao Wiramapiu demonstram que o afastamento da região do Rio Uxiwau era necessário para o grupo. A insatisfação com a presença garimpeira foi claramente afirmada em vários momentos em que convivi com os Homoxi theripë. Sempre relataram esse período como de dificuldades criadas pela escassez de certos recursos. E acabaram por garantir para si a busca de uma localidade em condições de reconstruir as habitações perdidas para a degradação ambiental. Dentre tais condições, puderam abrir novas roças a cada ano, com sua habitual diversidade agrícola, caminhar pelas florestas circunvizinhas, manter as visitações dos outros grupos aliados, incluindo, dentre eles os Tirei Theripë, o povo que ficou no posto nas proximidades de onde houve garimpo e posterior atenção à saúde e agora sofre o retorno do garimpo.


Tirei e Xereu.


Os grupos do Tirei e Xereu correspondiam, em 2000 a 160 pessoas, divididas nas duas comunidades; uma, optara por viver ao lado da pista Jeremias, próximo ao posto de saúde. A outra, o Xereu já habitava a essa época o igarapé homônimo, distanciando-se da calha principal do Uxiwau, afetada demais pela atividade garimpeira. Foi no ano de 2002 a notícia que as roças que eles tinham plantado na Venezuela estavam produzindo; a maioria deles, tanto do Xereu como do Tirei, participavam das Três roças abertas que viriam a se tornar as comunidades de Ehereximipiu (Romão, Carlussi) Wahapiu (Garcia, Renato ) e Arakɨtititopëu (Bauro, Loro). Um pequeno grupo decidiu manter-se no posto, com cerca de 16 pessoas. O que levou esse grupo a essa escolha? Como teria sido pensado? Uma decisão de não acompanhar aliados co-residentes, primeira vista parecei ser. Os Tirei theripë mantinham no entanto as relações de aliança com todos os outros grupos do Homoxi, visitavam em reuniões de arihimou (em que se preparam bebidas alcoólicas fermentadas a base de mandioca) e levavam materiais de trocas adquiridos no posto. Mantinham seu uso territorial, com coletas de lagartas, de caranguejo e camarões, de larvas de cupim e de frutas e castanhas, como o Kahusikɨ e o momo kɨkɨ, a primeira, decorrência das enormes capoeiras formadas em pistas de pouso abandonadas e a segunda uma semente de uma euforbiácea que requer um preparo para torna-la comestível.


Tendo respeito pela elaboração político-territorial dos Yanomami, não se tratava de um vício como pudesse supor os profissionais da saúde. Tratava-se de uma decisão deliberada e que era melhor explicada tendo a visão de uma articulação política com os outros aliados que produziram as roças na Venezuela. A ocupação de um espaço junto aos napë, enquanto fonte de objetos preciosos e de uma aliança, de proteção à saúde, se tratava de algo fundamental para a segurança dos Yanomami. As dificuldades de ocupar um espaço deteriorado sugeriam que isso fosse feito por um grupo menor. E esse grupo passou a fazer o trabalho de obter ferramentas e outros utensílios para todas as famílias aliadas, que eram solicitadas e logo fluiam para a rede de alianças dos Yanomami. Por sua vez, os habitantes de Venezuela forneciam condições de vida melhor para o povo do posto, sobretudo com produtos da roça, atestando a relação de reciprocidade.


A mobilidade diária torna-se uma ferramenta na busca de alimentos e recursos, numa paisagem transformada pela ação garimpeira. Baseado no sistema de alianças intercomunitárias, mas tendo que se colocar como uma comunidade relativamente autônoma, os habitantes do Tirei assumem os dois lados dessa condição, da articular com outros grupos e de garantir subsistência num sistema transformado. A substituição de recursos extintos a curta distância, como as palmeira paahanakɨ (Geonoma sp.) usada na cobertura de casas e encontrada normalmente nas formações sedimentares fluviais. Parte da cobertura das casas era de lonas encontradas do garimpo, ou de telhas de metal das casas demolidas de postos de contato antigos. Na busca de alimentos em áreas transformadas pode significar longas distâncias, no caso de alguns recursos florestais. como o acesso ao naraupë (copaifera sp), que só se encontra após dada altitude e que os tirei theripë trocam com os habitantes da serra. Isso não difere tanto de processos anteriores de obtenção de alimentos, indicando que os Tirei mantiveram similar domínio sobre o território em novas condições.


A caça de veados haya pë (Mazama sp) se dá com certa frequência próximo ao posto, nas áreas abertas. Correr atrás de veado era cena comum na região da própria pista de pouso, muitas vezes com sucesso. Num dado momento exclamei que ali deveria ser o rio Hayathau, nome do rio que verte para o Orinoco e banha as casas do Yaritha, afinal ali havia muitos veados,. Os moradores explicaram que os veados que ali eles caçavam tinham origem na região de Hayathau, por isso que lá é que possuía o nome. Assim, temos que a fauna da região da pista de pouso, afetada pelo garimpo se beneficia da presença da floresta no Alto Orinoco, a cerca de cinco horas de caminhada. Os hayapë se deslocam e vêm viver na bacia do Uxiwau, com sua condição modificada de áreas abertas em plena floresta.


As condições alteradas de florestas não tornaram o Homoxi menos valorizado do ponto de vista dos seus habitantes resilientes. Para eles, deu-se uma nova condição atrativa, relacionada ao que o posto proporciona, e mantém assim, uma estratégia eficiente de aproveitar tais benefícios ao mesmo tempo em que a maior parte do povo vive alheio à degradação, só recorrendo ao posto por motivo de saúde. Mesmo a saúde não se tornou uma questão de dependência, na visão dos Yanomami: na piora do atendimento, com a saída da Urihi, em 2004, os Yanomami do Homoxi demonstraram se utilizar de soluções melhores do que as apresentadas pelos profissionais do posto: uma criança com queimaduras teve suas feridas cobertas com a resina da Couma sp. Operema axihi, que é hoje reconhecida como cicatrizante.


A polissemia do termo urihi (floresta, mas também terra, território) pode aqui assumir uma de suas acepções com maior profundidade: a de território, aqui parece se destacar, mais que as outras, definindo-se para os Yanomami do Homoxi como um lugar para ser ocupado por eles, independente de sua condição, como ipa urihi (minha floresta), mesmo quando o ambiente florestal já não justificaria utiliza-lo para definir a formação vegetal, já não mais florestal. As degradações pelos garimpeiros não lhe tiraram o caráter político de sua ocupação, mesmo tendo alterado sua ecologia ao ponto de exigir adaptações para garantir sua ocupação. O quão deprimente possa ser cobrir a casa com lonas e telhas de zinco, na aparência, não desfaz a dignidade de garantir a apropriação do território de morada. Cabe reconhecer a dívida que o Estado Nacional tem em permitir a deterioração de uma terra indígena pela exploração mineral. A reparação necessária começa por manter a terra protegida. Os recentes novos episódios de garimpagem na região do Homoxi indicam a pouca dignidade que tem sido corrente no trato com os povos indígenas, no caso do Homoxi novamente ameaçados pela atividade ilegal que os têm prejudicado.

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