PDF Cristianismo ou conservadorismo O caso do movimento anti-aborto no Brasil Camila Rocha.

Cristianismo ou conservadorismo? O caso do movimento anti-aborto no Brasil.


This article's aim is to interpret the anti-abortion movement discourses and practices in Brazil by emphasizing its conservative character to the detriment of its characterization as a Christian or anti-secular movement. The anti-abortion movement would have emerged after redemocratization as a counter-movement in opposition to the advancement of the feminist movement, and would later have held numerous disputes related to feminist, LGBT agendas and human rights advocacy in the legislature, the judiciary and in public protests and demonstrations. The main argument developed in this article, based on the review of specialized literature and on information related to the political actors involved in the struggle around the issue of abortion, is that acting as a social movement, and not only based on the actions of priests, missionaries and bishops, made it possible for anti-abortion activists to agglutinate around the same conservative discourse people who simply identified with their agendas regardless of their religious beliefs, and to do so, the movement mobilize mostly secular arguments.


Cristianismo ou Conservadorismo? O Caso do Movimento Antiaborto no Brasil.


Camila Resumo: O objetivo deste artigo é interpretar a atuação do movimento antiaborto no Brasil ressaltando seu caráter conservador em detrimento de sua caracterização como um movimento cristão ou antissecular. O movimento antiaborto teria surgido após a redemocratização como um contra-movimento em oposição ao avanço do movimento feminista, passando a realizar posteriormente inúmeras disputas relacionadas a pautas feministas, LGBT, e relacionadas à defesa de direitos humanos no legislativo, no judiciário e em protestos e demonstrações públicas. O argumento principal desenvolvido neste artigo, a partir da revisão da literatura especializada e reunião de informações relacionadas aos atores políticos envolvidos no embate em torno da questão do aborto, é de que a atuação como movimento social, e não apenas com base na atuação de padres, missionários e bispos, fez com que fosse possível para os ativistas antiaborto aglutinar em torno de um mesmo discurso pessoas conservadoras que simplesmente se identificassem com suas pautas independentemente de sua confissão religiosa, e para tanto mobilizam fundamentalmente argumentos seculares. Palavras-chave: Aborto. Movimentos sociais. Conservadorismo. Cristianismo. Feminismo. "Não reconhecemos os grupos contrários à legalização do aborto como "pró-vida". Para nós, esses grupos são pró-morte". Esta declaração integra uma nota de repúdio emitida pelo grupo "Católicas pelo Direito de Decidir" 1 publicada em virtude de um embate ocorrido entre militantes a favor da descriminalização do aborto e militantes contrários à prática. No dia 25 de setembro de 2022, um grupo antiaborto, inspirado pela campanha 40 days for life, iniciada em 2004 em uma cidade do Texas, nos Estados Unidos, resolveu acampar por 40 dias em uma praça localizada em frente ao Hospital Pérola Byington na cidade de São Paulo. O hospital é referência no atendimento de vítimas de violência sexual e realiza abortos nos três casos previstos por lei atualmente, estupro, gestação de fetos anencéfalos e risco de morte para a gestante, de modo que o intuito dos ativistas era o de fazer com que as mulheres lá atendidas desistissem de realizar o procedimento. No entanto, após integrantes do grupo terem agredido fisicamente uma vítima de estupro, militantes a favor da descriminalização do aborto, entre os quais estavam as "Católicas pelo direito de decidir", passaram a compartilhar a mesma praça, que passou a abrigar acampamentos de ambos os grupos. ciones públicas. El principal argumento desarrollado en este artículo, a partir de la revisión de la literatura especializada y la recolección de información relacionada con los actores políticos involucrados en la lucha en torno al tema del aborto, es que actuar como movimiento social, y no sólo a partir de las acciones de sacerdotes, misioneros y obispos, hizo posible que los activistas antiaborto aglutinaran en torno al mismo discurso a personas conservadoras que simplemente se identificaban con sus agendas, sin importar sus creencias religiosas, y que movilizaran así argumentos fundamentalmente seculares. Palabras clave: Aborto. Movimientos sociales. Conservadurismo. Cristianismo. Feminismo.


Disputas entre ativistas como a descrita acima começaram a ficar mais frequentes e acirradas no Brasil após o ciclo de protestos que teve início no Brasil entre 2010 e 2011 . Desde então, em um curto período de tempo, durante a vigência do primeiro governo de Dilma Rousseff, entre 2011 e 2014, ocorreram vários avanços relacionados a demandas de movimentos progressistas que ensejaram uma reação conservadora que não foi resultante da atuação de lideranças e ativistas religiosos conservadores, ainda que estes tenham sido constituintes e constituídos por esse fenômeno . Em 2011 foi criada a Comissão Nacional da Verdade para investigar os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar, e, no mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável homoafetiva. No ano seguinte, o mesmo tribunal reconheceu também o direto ao aborto em casos de anencefalia fetal e confirmou a validade do sistema de cotas raciais nas universidades públicas. Em 2013 foi promulgada a PEC das Domésticas, que amplia os direitos trabalhistas das trabalhadoras domésticas, e em 2014 a "Lei da Palmada", que proíbe o uso de castigos físicos e tratamentos cruéis e degradantes a crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, no âmbito da sociedade civil, entre 2011 e 2013 ocorreram as "Marchas das Vadias" em todo o território nacional e protestos foram realizados ao longo dos anos em resposta a avanços do movimento antiaborto, o que ajudou a popularizar as demandas feministas entre mulheres jovens e a catalisar a emergência de um novo ativismo feminista no país . Na mesma época a internet começou a se popularizar no país e a competir com a televisão como principal meio de informação, fazendo com que as mediações realizadas por veículos tradicionais de mídia na esfera pública diminuíssem seu alcance. Desta forma, a comunicação por redes sociais no Brasil se tornou amplamente disseminada exatamente quando o país experimentava uma reação conservadora e uma polarização política crescente. Isso fez com que fenômenos advindos das transformações provocadas pelo surgimento de novas formas de comunicação política se intensificassem, como a "formação de câmaras de eco (espaços nos quais se ouve o que se fala) e a emergência de situações de colapso contextual (nos quais se encontra aquilo que não se conhece o contexto)" .


Tal dinâmica fez com que as disputas entre grupos conservadores e progressistas se tornassem mais intensas em comparação aos anos anteriores e a pauta do aborto figurasse como um elemento central em ambos os lados, tanto no âmbito da política institucional como na esfera da sociedade civil. No programa do partido que o presidente eleito em 2022, Jair Bolsonaro, pretende criar, o "Aliança pelo Brasil", a questão do aborto tem lugar de destaque e a defesa de sua descriminalização é interpretada como uma "traição social" por parte de pessoas que "já nasceram". Segundo a advogada Karina Kufa, uma das idealizadoras do partido, a agremiação busca se pautar pela "conservação dos valores fundamentais da alma brasileira" 2 . No que tange à sociedade civil, a dupla conservadora "Brasileirinhos" anuncia no minidocumentário "Catarsy", veiculado em seu canal de YouTube criado em 2022, que: "Se você está tendo que debater suas ideias, você já perdeu, você só não sabe disso ainda, por exemplo, aborto não se discute, você cospe na cara do abortista e acabou, se você admite que isso é uma questão para debate você já perdeu. Tá chegando o dia que a resposta mais racional e coerente que vai ser possível dar a uma dessas opiniões é você enfiar dois dedos na goela e vomitar no sapato do seu interlocutor 3 ". Tendo isso em vista, o objetivo deste artigo é analisar o movimento antiaborto como um "movimento social conservador" 4 De acordo com artigo publicado no site JusBrasil "O Estatuto do Nascituro está intimamente atrelado à legalização do aborto, por isso é alvo de bastante polêmica e discussões de ordem política, moral e até religiosa. O nascituro é o ser humano em formação, mas que ainda não nasceu. O projeto de lei visa a proteção integral do nascituro, pois tem como base o conceito de que a vida de um ser humano se inicia no momento da concepção. Isso significa que tal projeto de lei exclui a admissibilidade do aborto em quaisquer situações, inclusive se a gestação é o resultado de um estupro. Além disso, pode proibir a pesquisa com células tronco dos embriões". Disponível em https://examedaoab.jusbrasil.com.br/artigos/412530336/estatuto-do-nascituro 5 Ver em: http://g1.globo.com/noticias/politica/0,,mul923651-5601,00-lula+diz+que+ aborto+e+questao+de+saude+publica+e+defende+debate+sobre+o+tem.html 6 Ver em https://www.acidigital.com/noticias/dizendo-se-catolico-lula-expressa-posicao-favoravel-ao-aborto-e-questao-de-saude-publica-78919 que não se reduz à atuação de um grupo de atores políticos católicos e/ou evangélicos que procuram influenciar o Legislativo, o Judiciário ou mesmo Executivo, como já foi bem mapeado pela literatura especializada 7 . Procuro argumentar que ainda que lideranças religiosas, especialmente da Igreja Católica, tenham um papel preponderante em organizações e manifestações antiaborto, o que estrutura o movimento antiaborto é o conservadorismo. Isso lhe possibilita contar com a adesão de segmentos da sociedade que não se definem por uma atuação religiosa na esfera pública. Daí a razão pela que argumentos de cunho secular sejam mobilizados por esses grupos para defender que a prática não seja legalizada.


Ao mesmo tempo, como bem aponta Edlaine , "instituições religiosas possuem posicionamentos diversos diante do aborto, embora o discurso religioso majoritário -ou pelo menos mais visível -seja o de oposição às tentativas de descriminalização e enfático quanto à "inviolabilidade da vida" . Deste modo, argumentos cristãos também são utilizados para defender a descriminalização da prática, principalmente pelo grupo "Católicas pelo direito de decidir" e pelo bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, que atualmente conta com quase dois milhões de fiéis em todo o território nacional.


Assim, a questão do aborto é defendida em decorrência do que o próprio movimento antiaborto denomina por "cultura da vida", que diz respeito à manutenção de uma ordem conservadora que extravasa a questão do aborto em si. De modo que, ainda que a dinâmica institucional seja importante para compreender a atuação política desses grupos, compreendê-los como um "movimento social conservador" possibilita vislumbrar sua atuação TOMO. N. 36 JAN./JUN. | 2022 tendo em vista a defesa de um horizonte cultural compartilhado com um arco mais amplo de movimentos sociais conservadores.


Para realizar o objetivo aqui pretendido recorri a uma análise da revisão bibliográfica sobre o tema à luz de informações recolhidas na internet sobre a atuação de grupos cristãos contrários e favoráveis a descriminalização do aborto. Na primeira seção do artigo procuro justificar a compreensão do movimento antiaborto como um movimento social conservador utilizando conceitos oriundos de abordagens teóricas que versam sobre a atuação de movimentos sociais. Já na segunda seção apresento como o repertório de práticas e discursos utilizado pelos ativistas antiaborto no Brasil possui origem no movimento norte-americano e, na seção seguinte, analiso, de forma resumida, a atuação do movimento antiaborto brasileiro considerando a existência de duas fases, uma primeira fase defensiva e uma segunda fase ofensiva. Na última seção são analisados os discursos dos atores cristãos contrários e favoráveis à descriminalização do aborto tendo em vista os enquadramentos de "vida" e "morte" mobilizados pelos ativistas antiaborto, e, finalmente, na conclusão, aponto como o conservadorismo, e não o cristianismo, é estruturante dos discursos e práticas do movimento antiaborto.


É possível falar em movimentos sociais conservadores?


Considerando a existência de três correntes principais que versam sobre as dinâmicas que permeiam a atuação de movimentos sociais , acredito que os atores antiaborto possam ser compreendidos como um movimento social a partir do entendimento proposto pela Teoria do Processo Político. Esta teoria foi utilizada de modo exitoso por Alba , Patrícia Jimenez Rezende (2022) e Marta Machado e Débora Maciel (2022) para compreender as dinâmicas de avanços e retrocessos no que tange à legalização do aborto, tendo em vista principalmente as oportunidades políticas relacionadas à dinâmica institucional e eleitoral até o ano de 2006.


Porém, acredito que essa mesma abordagem possa ainda ser utilizada para compreender os avanços e retrocessos dos movimentos conservadores também no âmbito da sociedade civil, ainda que atores conservadores, historicamente, possuam ampla presença no Estado. Para tanto, a abordagem de sobre movimentos e contra-movimentos, utilizada pelas autoras, pode ser extremamente proveitosa para compreender as dinâmicas de movimentos conservadores, dado que o conservadorismo é necessariamente reativo aos avanços realizados na esfera dos costumes.


De acordo com o filósofo conservador Roger , por conta de sua recusa à abstração, os conservadores costumam apresentar seus próprios argumentos de forma lamuriosa ao buscar conservar tradições em vista de sua substituição por algo que se julga pior. Esta necessidade de manter determinadas tradições está ancorada no entendimento de que estas que não configurariam costumes arbitrários, mas uma condensação de conhecimentos advindos de um longo processo de aprendizagem que favoreceriam a reprodução da sociedade, daí o sentimento de responsabilidade pelos mortos, pelos vivos e por aqueles que estão para nascer, na formulação consagrada pelo grande crítico da Revolução Francesa, Edmund Burke.


Tendo isso em vista, a atuação de atores conservadores como contra-movimentos contrários a avanços progressistas, ou percepção de ameaças neste sentido, vem se tornando cada vez mais comum e ganhando cada vez mais atenção por parte da literatura que enfoca a atuação política conservadora . Um contra-movimento entra em cena quando são atendidas três condições: 1) um movimento mostra sinais de sucesso; 2) os interesses de uma parcela da população são ameaçados pelos objetivos deste movimento, e 3) existem aliados políticos e elites dispostos a apostar em uma mobilização contrária . Neste sentido, o caso do movimento antiaborto no Brasil é particularmente ilustrativo da teoria, uma vez que o movimento tomou forma após os primeiros sinais de avanço do movimento feminista que ameaçaram interesses de parcelas conservadoras da sociedade, e estas contavam com aliados políticos e elites dispostas a apostar em uma mobilização contrária: lideranças cristãs, sobretudo ligadas à Igreja Católica, e políticos conservadores. Porém, tal movimento extravasa a pauta do aborto em si, na medida em que se opõe a tudo que considera se relacionar ao que os atores antiaborto compreendem como parte de uma "cultura da morte".


A opção pelo uso da Teoria do Processo Político para compreender a trajetória do movimento antiaborto no Brasil e suas recentes conquistas também se justifica por diferenças substanciais desta teoria em relação a outras duas importantes correntes teóricas que procuram explicar o surgimento e atuação dos movimentos sociais: a Teoria dos Novos Movimentos Sociais e a Teoria da Mobilização de Recursos. Diferentemente da Teoria dos Novos Movimentos Sociais, que compreende o Estado como um ator político em oposição aos movimentos sociais, (. ) a TPP opõe "detentores do poder" (os membros da polity), que têm controle ou acesso ao governo que rege uma população (incluídos os meios de repressão), e "desafiantes", que visam obter influência sobre o governo e acesso aos recursos controlados pela polity", e, ao contrário da Teoria da Mobilização de Recursos, nesta linha de interpretação os movimentos sociais não são analisados de forma focalizada e conjuntural mas tendo em vista o contexto histórico e político que os envolve ).


Assim, a Teoria do Processo Político oferece de forma conjunta o instrumental teórico tanto para lidar com a atuação do Estado na dinâmica dos movimentos sociais quanto para compreender estes movimentos dentro de um contexto histórico e político, ambas dimensões fundamentais para a inteligibilidade da tra-jetória e atuação do movimento antiaborto. Porém, também é de importância fundamental discutir os sistemas de crenças e valores promovidos por tal movimento para melhor compreendê-lo, o que não é realizado no âmbito da Teoria de Mobilização de Recursos, que enfoca principalmente os cálculos racionais relacionados à melhor utilização de recursos realizados pelos atores políticos. No caso do movimento antiaborto, porém, salta aos olhos o discurso extremamente permeado de elementos religiosos "cristãos" mobilizado pelos ativistas, de modo que, em grande medida, a literatura brasileira sobre avanços e retrocessos no que tange à pauta do aborto 8 enfatizou, de modo explícito ou implícito, a existência de um sistema de crenças "cristão" vs. um sistema de crenças "secular" como peças-chave para a compreensão do embate travado entre militantes cristãos e "feministas/seculares". No entanto, como procurarei argumentar aqui, o uso de argumentos cristãos e seculares é realizado tanto pelos ativistas a favor da legalização do aborto como por aqueles que são contra a legalização, de modo que a oposição principal recai entre conservadores e progressistas, sejam estes cristãos, sejam não cristãos, e esta característica é fundamental para compreender tal movimento de forma mais aprofundada, considerando a defesa do que o movimento antiaborto denomina de "cultura da vida". etc., possuíam uma compreensão implícita de que os movimentos sociais eram necessariamente progressistas . Tais movimentos buscavam a alteração do status quo trazendo consigo novos valores e costumes, e possuindo, portanto, uma dimensão emancipatória. Esses pesquisadores não levavam em consideração na época a possibilidade de que movimentos sociais pudessem ter como base sistemas de crenças conservadores ou reacionários, ou seja, movimentos que procurassem restaurar ou preservar a ordem e não alterá-la, como é exatamente o caso do movimento antiaborto.


Assim, de acordo com a divisão entre valores materialistas e pós-materialistas proposta por Ronald , os movimentos analisados pelos teóricos dos "Novos Movimentos Sociais" costumam ser considerados como pós-materialistas. Ainda que a compreensão das demandas dos novos movimentos sociais como pós-materialistas possa soar problemática para aqueles que defendem as "vidas" de mulheres, negros, indígenas, LGBTs e populações afetadas por catástrofes ambientais, é importante salientar que um dos elementos distintivos do pós--materialismo é a "secularidade" em oposição à "religiosidade". A oposição binária entre progressismo/secularismo e conservadorismo/religiosidade é justamente o que dificulta o entendimento tanto de movimentos progressistas que possuam um apelo religioso e/ou transcendental como o reconhecimento de movimentos sociais que sejam conservadores ou reacionários. Afinal, na medida em que atores conservadores utilizam argumentos de cunho tradicionalista para reivindicar a manutenção dos costumes, ou mesmo a regressão a um passado idealizado, é comum o recurso a uma retórica religiosa.


Tendo isso em vista, assim como o faz Patrícia Jimenez , considero que para compreender os valores e crenças que permeiam o movimento antiaborto seja mais interessante utilizar o conceito de frame como proposto por David Snow e Robert Benford e William . O uso do con-ceito de frame é compatível com a Teoria do Processo Político e utilizado por um de seus maiores expoentes, Sidney . E é também de Tarrow o conceito de repertório que utilizarei para dar conta das relações existentes entre o movimento antiaborto no Brasil e o Pro-Life Movement norte-americano.


Dos Estados Unidos para o Brasil: a disseminação de repertórios de ação.


O autodenominado movimento Pro-Life, ou "pró-vida", surgiu nos Estados Unidos na década de 1970 como oposição à conquista do movimento feminista norte-americano no que diz respeito à legalização do aborto, ou seja, um contra-movimento ao movimento feminista . No entanto, o movimento passou a atuar também em relação a outras pautas "correlatas" àquela do aborto, como direitos da população LGBT, educação sexual, utilização de métodos contraceptivos, eutanásia, utilização de material humano (células tronco, material proveniente do cordão umbilical, etc.) para pesquisas científicas, prostituição, educação religiosa, ou seja, passou a ser adversário de uma compreensão progressista de formas de ser e estar no mundo, isto é, da vida humana, como aponta a declaração da missão da Human Life International, organização central para o movimento antiaborto nos Estados Unidos:


Nós abordamos todos assuntos relacionados à vida e à família de forma fiel à doutrina social e moral da Igreja Católica, com base tanto na fé como na razão. Nós confrontamos o mal advindo do aborto, da contracepção, da eutanásia/suicídio assistido, e da redefinição do casamento por meio da defesa da dignidade humana, do casamento, da família e da castidade. Nós fazemos nosso serviço por amor e respeito a todo o povo de Deus, independentemente de suas crenças 9 . Imbuídos da missão de defender o que compreendem por "vida", ou seja, uma visão conservadora, e por vezes reacionária de padrões de reprodução e manutenção da vida humana, os militantes antiaborto norte-americanos fundaram diversas organizações para proteger seus interesses, e a maior delas -segundo os próprios militantes da organização, a maior do mundo -seria a Human Life International (HLI). Fundada em 1981, a HLI, apesar de afirmar sua ligação com a Igreja Católica, implicitamente possui horizontes mais amplos, aceitando militantes que defendam suas pautas ainda que estes não sejam católicos. Assim, a HLI defende uma espécie de "pan-cristianismo", no intuito de que juntos, católicos e não-católicos, possam defender suas pautas não apenas nos Estados Unidos, mas, idealmente, no mundo inteiro. A atuação internacional da HLI é ressaltada em sua página na internet, onde se afirma que a organização possui parcerias com afiliadas em mais de 80 países e já ajudou a formar lideranças "pró-vida" em mais de 160 países por meio de conferências, seminários de treinamento e visitas de missionários.


Assim, é possível dizer que a HLI funciona como uma instância coordenadora dos movimentos antiaborto em vários países, sendo que um dos países afiliados à organização de maior destaque é justamente o Brasil. O Brasil é um dos poucos países ocidentais que ainda possui uma legislação amplamente restrita sobre a legalidade do aborto, o que faz com que o país seja um palco dos mais relevantes para a luta contra a prática, tanto que a HLI possui uma seção lusófona de atuação e separa o Brasil da América Latina, provavelmente em uma tentativa de dar mais atenção ao país 10 . Além disso, de modo análogo ao que ocorre nos Estados Unidos, na medida em que existem grandes contingentes populacionais que se declaram "católicos não-praticantes" e evangélicos no Brasil, a atuação da HLI visa unir setores mais amplos a partir da defesa de uma concepção conservadora de vida humana.


10Cf. http://www.hli.org/index.php/mission-field/portuguese-speaking-nations Atualmente as duas principais associações no Brasil ligadas à HLI são a Associação Nacional Pró-Vida e Associação Pró-Vida de Anápolis, que surgiram, respectivamente, em 1993 e 1997. Não é mera coincidência que a primeira associação "pró-vida" do Brasil foi fundada apenas dois anos depois do lançamento do primeiro projeto de lei, de autoria de Eduardo Jorge e Sandra Starling, então ambos do PT, que dispunha sobre a obrigatoriedade de atendimento dos casos de aborto previstos no código penal pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O site da Associação Pró-Vida de Anápolis reproduz um texto que fora escrito na época em que o projeto foi encaminhado para votação, no dia 12 de dezembro de 1995, pelo Padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, principal responsável pela associação, e que dá o tom do debate ocorrido então:


As feministas, então eufóricas com a aprovação do projeto assassino na Comissão de Seguridade Social e Família, esperavam sua aprovação na Comissão de Constituição, Justiça e Redação. Aconteceu, porém, algo que as deixou perturbadas. O relator da comissão, deputado Hélio Bicudo, propôs um substitutivo que protegia a mulher estuprada, protegia a criança concebida, mas tinha um grave defeito: não derramava sangue. Defeito imperdoável, que mereceu das feministas um panfleto de protesto. (. ) Afinal de contas, qual é a diferença entre matar antes e matar depois do nascimento? Esteja o leitor certo de uma coisa: qualquer solução apresentada para os problemas da mulher e da criança, por mais maravilhosa que seja, se não incluir o aborto, será sumariamente rejeitada pelas militantes feministas. Ainda está por ser inventado algo que sacie a sede delas além do sangue 11 . O texto escrito pelo padre é bastante ilustrativo da configuração do movimento antiaborto no Brasil como um movimento que surgiu em oposição ao movimento feminista, cujos primeiros resultados em termos institucionais estavam começando a . Em menos de um ano após a Constituinte foi criada, em julho de 1989, uma das principais ONGs feministas, o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), cuja uma das principais atribuições diz respeito ao advocacy no Legislativo e no Executivo 12 . O ingresso da militância feminista na política parlamentar fez com que as pautas defendidas pelo movimento começassem a se transformar em projetos de lei que procuravam propor a legalização do aborto, a união civil para casais homossexuais, maior proteção da mulher em relação à violência doméstica, etc. Foi principalmente durante a década de 1990 que as reivindicações do movimento feminista passaram a ganhar não apenas maior visibilidade como também maior importância, afinal, uma série de novas leis, campanhas e instituições foram criadas no Brasil, consolidando a atuação institucional do movimento . Assim, é possível constatar que o movimento antiaborto brasileiro, formado por diversos grupos e entidades, se institucionalizou durante a década de 1990, isto é, exatamente no momento de conquista de novos espaços políticos no âmbito parlamentar por parte do movimento feminista.


Os militantes antiaborto possuem como suas principais adversárias as ativistas feministas, e muitas das disputas entre estes movimentos se dão no âmbito do Estado, principalmente no legislativo e no judiciário. Por esse motivo, a Associação Pró-Vida e Pró-Família disponibiliza em seu site informação destacada a respeito da atuação do CFEMEA, além de uma lista de 18 redes e articulações políticas e 42 organizações feministas atuantes no Brasil, conteúdos sobre a legislação nacional e internacional, e uma série de documentos listados como "ação parlamentar", que descreve como votaram os parlamentares de cada estado do país em relação às pautas defendidas pelo "pró-vida", quais são os parlamentares ligados a organizações feministas, quais são os projetos de lei que foram aprovados, derrubados ou que estão em tramitação no Congresso Nacional, discursos de parlamentares, entre outras informações 13 . Já o site da Associação Pró-Vida de Anápolis faz uma listagem de "amigos pró-vida" na qual figuram sites, jornais, revistas, rádios, dioceses, movimentos e organizações maiores como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Comunidade Canção Nova, a já referida Associação Pró-Vida e Pró-Família e, obviamente, a Human Life Internacional 14 .


Por meio das informações contidas nos sites das associações acima referidas, principalmente no da Associação Pró-Vida de Anápolis, é possível verificar o grande peso dos setores da Igreja Católica dentro do movimento, uma vez que é muito mais frequente a citação de dioceses, padres, bispos e veículos de comunicação católicos em relação a organizações e militantes não-católicos, como bem aponta a literatura especializada. Os militantes antiaborto preferem unir forças de forma estratégica para promover uma ofensiva mais forte no que diz respeito à defesa de suas pautas do que atuar de forma separada e dentro de marcos estritamente confessionais (Ferreira, 2010). Por conta desta "união de forças", o formato de "movimento social", ao contrário da mobilização apenas por meio de Igrejas, é mais interessante para os adeptos do movimento. Afinal, esse formato de ação política mostrou ter obtido sucesso em muitos países no que diz respeito ao contra-ataque à atuação do movimento feminista , uma vez que esta forma de organização possibilita duas formas de mobilização, uma forma mais inclusiva e outra mais restrita.


A primeira forma, mais ampla e inclusiva, procuraria atrair a sim-13 Cf. http://www.providafamilia.org.br/site/index.php 14 Para ver a listagem completa dos "amigos pró-vida" cf. http://www.providaanapolis. org.br/index1.htm CRISTIANISMO OU CONSERVADORISMO? TOMO. N. 36 JAN./JUN. | 2022 patia de militantes cristãos fracamente ligados a suas igrejas, simpatizantes pertencentes a outras religiões não-cristãs ou mesmo agnósticos e ateus. Já a segunda forma, mais restrita, mobilizaria apenas militantes cristãos com vínculos mais fortes com suas respectivas igrejas. Neste sentido, dado que, após os anos 2000, lideranças evangélicas costumam ser mais ativas politicamente em comparação com os católicos no Brasil , é possível considerar a hipótese de que as "elites" do movimento antiaborto sejam ligadas à Igreja Católica, de forma análoga ao que ocorre nos Estados Unidos , porém suas "bases" e membros intermediários não necessariamente o sejam, especialmente considerando o crescente número de evangélicos no país em anos recentes . Desta maneira, para as Igrejas, seria preferível atuar sob a forma de um movimento social mais amplo para aproveitar estrategicamente as oportunidades políticas específicas de cada país e disseminar um mesmo repertório de ativismo oriundo dos Estados Unidos e que inclui marchas, lobby, ações no judiciário, pressão midiática e o apelo de imagens chocantes: (. ) o movimento Pró-Vida (. ) possui as mesmas táticas de persuasão em países como Brasil, Porto Rico ou Estados Unidos. Assim, para convencer a opinião pública da "humanidade do feto" utilizam-se sempre de imagens de fetos em seus estágios mais avançados (quando, em geral, o aborto é proibido na imensa maioria das legislações) por possuírem maior semelhança a um bebê. São distribuídas cartilhas com fotos de abortos realizados, sempre com imagens chocantes e que levam as pessoas a associarem um aborto a um assassinato. Até mesmo miniaturas de feto são distribuídas ).


Por meio do uso de imagens impactantes o movimento antiaborto tentaria atrair simpatizantes "sensibilizando-os" para sua causa, seja "lembrando" aos cristãos que seria preciso combater políticas contrárias ao que, segundo os ativistas, seriam os desígnios divinos, seja argumentando por meio do "choque" pes-soas pouco ou nada religiosas. Além da tática do "choque", que procuraria desencadear um sentimento de "injustiça" nas pessoas, a utilização de referências a entidades e/ou autoridades transcendentes como santos e santas, Jesus, Deus, nos discursos dos militantes, apelaria para a transcendência da defesa destas questões, fazendo com que os argumentos ganhassem uma força retórica bastante poderosa e potencialmente mobilizadora (Goldstone; Perry, 2001).


Apesar da HLI ser uma instância coordenadora central dos movimentos antiaborto em vários países, e do repertório e táticas difundidas por esta entidade serem reproduzidos mundo afora, outros atores antiaborto menos centrais também conseguem disseminar seus repertórios de ação, especialmente por meio da popularização da internet que ocorreu em anos recentes. Este foi o caso descrito no início deste artigo dos ativistas texanos do 40 days for life, que ficam em frente a clínicas de aborto nos Estados Unidos para dissuadir as mulheres de realizar o procedimento, repertório que foi integralmente copiado pelos ativistas brasileiros ao acamparem do lado de fora do Hospital Pérola Byington em 2022 e em 2022.


Da defensiva para a ofensiva: oportunidades políticas e a atuação do movimento antiaborto no Brasil.


É importante ressaltar que ainda que as formas de atuação do movimento antiaborto nos Estados Unidos e no Brasil possuam muitas semelhanças, os atores procuram explorar as oportunidades políticas existentes em cada contexto específico tendo em vista a organização dos atores nas instituições políticas e os ciclos eleitorais , mas também dinâmicas existentes no âmbito da sociedade civil . Neste sentido, é possível afirmar que no Brasil os grupos antiaborto tiveram uma atuação principalmente defensiva desde a redemocratização e, após 2007, o movimento se tornou mais ofensivo. A atuação ofensiva visava impedir avanços no que tange à legalização do aborto, pois, uma vez que o aborto é de fato legalizado costuma ser muito difícil fazer com que se volte atrás, de modo que, a Polônia, por exemplo, representa um caso excepcional 15 . Já as ações ofensivas, iniciadas a partir de 2007, são aquelas que visam restringir ainda mais os casos em que a prática é permitida, ou mesmo atuar no que tange a outras pautas conservadoras relacionadas ao que se concebe como "cultura da vida", como a restrição do uso de métodos contraceptivos, do uso de células tronco para pesquisa, impedir a legalização da prática da eutanásia, restringir direitos das mulheres e da população LGBT, entre outras. Foi justamente entre 2007 e 2010, no ano de 2009, que o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH 3), decretado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi interpretado pelo movimento antiaborto como um avanço contra a "cultura da vida", recebendo fortes ataques por parte de parlamentares, juristas e demais militantes e/ou simpatizantes". Constam do PNDH 3 certos objetivos como "considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde", "apoiar projeto de lei que disponha sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo" e "promover ações voltadas à garantia do direito de adoção por casais homoafetivos" 18 . , o movimento brasileiro oscila razoavelmente no que diz respeito a um alinhamento com partidos de direita, centro ou esquerda. Muito provavelmente devido à diversidade de siglas partidárias, composição de coalizões nos governos de níveis federal, estadual e municipal, e, considerando a penetração de religiosos católicos e evangélicos em partidos de direita, de centro e de esquerda, o movimento acabou conseguindo adeptos e simpatizantes ao longo de praticamente todo o espectro ideológico-partidário, indo desde Severino Cavalcanti (PP) até Heloísa Helena e Marina Silva, ex-petistas que atualmente fazem parte do partido Rede Sustentabilidade 19 .


No entanto, apesar de apontar como adversários quaisquer partidos que em seus programas e/ou ações e discursos afirmem ser a favor da legalização do aborto, tais como PSOL, PCdoB, PSTU, etc., segundo o site "Aborto Não PT Não" 20 : "(. ) nenhum desses partidos já conseguiu representatividade política significativa -como o PT que chegou à presidência do país -para pôr em prática suas ideologias" 21 . Deste modo, o PT parece ser o partido que mais causa desconforto para os militantes antiaborto, uma vez que é o partido que historicamente concentra o maior número de militantes feministas, foi responsável pela proposição de diversos projetos de lei visando a defesa de pautas feministas e relacionadas a direitos humanos, e que nos últimos anos se posicionou de forma favorável à legalização do aborto nas resoluções oriundas do terceiro e do quinto congressos internos organizados pelo partido respectivamente em 2013 e 2022.


Outro importante partido que por vezes é tido como adversário por alguns militantes é o PSDB. O PSDB elegeu o primeiro presidente sabidamente ateu do país, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, cuja a primeira dama, a antropóloga Ruth Cardoso, já havida dado declarações a favor da legalização do aborto 22 . Além disso, a edição de uma norma técnica por José Serra, ministro da saúde no governo FHC durante o ano de 1998, para que as mulheres que tivessem abortado de acordo com os casos já previstos na lei brasileira pudessem ter acesso à assistência médica pelo SUS, foi interpretada como um ataque à "cultura da vida" 23 . Em que pesem tais tendências, considerando que a movimentação da militância é afetada pelas oportunidades oferecidas ou não pelo cenário político exógeno ao movimento , o movimento não listou o PSDB em seu rol de "partidos inimigos" 24 . Isso ocorreu provavelmente porque esse partido havia feito, na época dos governos FHC, uma aliança com setores políticos conservadores e, além da ação promovida por Serra, não deu mais nenhum indicativo de que pudesse legalizar o aborto ou outras medidas correlatas.


Assim, foi com a vitória de Lula em 2002 que o movimento passou a prestar mais atenção nas possibilidades de embate que poderiam surgir. Durante o segundo governo do petista, 2007-2011, muito provavelmente devido à tramitação do PNDH3, a militância antiaborto passou a reunir forças para o embate crítico que iria se dar durante o período das eleições presidenciais 22 "Eu acho que se deve garantir o direito às mulheres de usarem ou não essa possibilidade. Isso é um direito que as mulheres têm, mas não [deve ser] uma imposição". Ruth Cardoso, antropóloga e mulher do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, falecida em 2008, respondendo a uma pergunta sobre o aborto feita a ela no programa Roda Viva, em 1999. In http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/disseram/ruth-cardoso-falando-sobre-o-aborto 23 Cf. "Ministério da Saúde ensina a matar" por Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz -28 de dezembro de 1998 In http://www.providaanapolis.org.br/msmatar.htm 24 Os partidos listados como "inimigos" do movimento "pró-vida" além do PT são: PPS, PSTU, PV, PCdoB, PCO e PSOL. Cf. http://www.abortonaoptnao.com/outros-partidos CRISTIANISMO OU CONSERVADORISMO? TOMO. N. 36 JAN./JUN. | 2022 em 2010, momento em que a pauta do aborto se tornou central no debate público promovido entre as principais candidaturas à Presidência da República .


Após as eleições de 2010, é possível pensar na hipótese do início de um período de ofensiva aberta iniciado a partir do surgimento de um novo ativismo feminista. Como já foi referido anteriormente, feministas não alinhadas ao campo democrático-popular atuante até os anos 2000 passaram a se mobilizar nacionalmente para combater o Estatuto do Nascituro e o projeto de lei 5096/2013 , ensejando uma dinâmica que salienta a importância de embates ocorridos no âmbito da sociedade civil baseados em demonstrações públicas, como foi o caso dos acampamentos realizados em anos recentes em frente ao Hospital Pérola Byington.


Vida x Morte: um embate entre cristãos.


Na dinâmica de movimento e contra-movimento ensejada pelos ativistas a favor e contra a legalização do aborto, descrita de forma resumida acima, os sistemas de crenças e valores que guiam e legitimam os movimentos sociais e suas campanhas são fundamentais para compreender o engajamento dos ativistas pois ancoram a percepção de injustiças. Estas visões de mundo podem ser sintetizadas em palavras ou frases de ordem do movimento que podem ser compreendidas como frames ou "quadros interpretativos" . Os frames que são utilizados ou não pelos ativistas muitas vezes acabam sendo definidos na própria dinâmica dos movimentos sociais, especialmente em uma dinâmica de movimento/contra--movimento . Um exemplo disso no Brasil foi o veto judicial do uso da palavra "abortista" para qualificar as integrantes do movimento feminista, o que gerou uma reação inflamada por parte do então deputado Elimar Máximo Damasceno em agosto de 2005 25 , a despeito disto é possível afirmar que a palavra "vida" representa o frame principal da militância antiaborto.


O frame "vida" pode possuir tanto o significado mais imediato e superficial relacionado à defesa da "vida" em oposição à prática do aborto quanto um significado mais profundo, que diz respeito à vida humana compreendida a partir de uma concepção conservadora de mundo. De acordo com o movimento antiaborto existiriam duas maneiras de conceber a vida humana: uma forma de viver "errada" e outra forma "certa", a primeira estaria "contida" em um frame que os militantes antiaborto nomeiam como "cultura da morte" e a segunda no frame de "cultura da vida".


A "cultura da morte" seria tudo aquilo que, na visão dos integrantes do movimento antiaborto, é incompatível com a forma de viver "cristã", ou seja, tudo aquilo que seria contrário à manutenção da família heterossexual monogâmica concebida a partir de uma ordenamento conservador da sociedade, como a atividade sexual que não possua fins exclusivamente procriativos; o uso de contraceptivos; a realização de procedimentos definitivos de esterilização voluntária; a interrupção da vida em quaisquer de seus estágios por interferência humana, a utilização de células--tronco para pesquisas científicas; e a reivindicação de reconhecimento e de direitos por parte da população LGBT. Deste modo, o uso da palavra "vida" como frame principal do movimento pode ser compreendido como uma tentativa de expandir as demandas específicas do movimento em termos de valores sociais mais amplos relacionados à manutenção de costumes tradicionais no que tange à reprodução e conservação da vida humana , especialmente no que tange a estrutura familiar tradicional, daí a incorporação ao nome do movimento, no caso brasileiro, da frase "pró-família".


A oposição "vida" e "morte" está baseada nos três elementos formadores de um frame: 1) injustiça; 2) agency; e 3) identidade . O sentimento de injustiça se daria mais imediatamente em relação à eliminação de vidas, ou à morte dos fetos e/ou pessoas (no caso da eutanásia) e, de uma forma mais implícita, da "morte" de costumes tradicionais, considerando sobretudo a estrutura familiar tradicional. A agency estaria implícita no que diz respeito à manutenção da "cultura da vida", de um modo de vida tradicional, interpretado como "santificado", e o elemento de identidade estaria relacionado à oposição entre um "nós" que representaria a "vida" e um "eles"/ "elas" representando a "morte". Deste modo, a oposição entre "vida" e "morte" operada pelo movimento pró-aborto serviria para chamar atenção para a percepção de injustiças relacionada às ideias de morte/assassinato/crueldade, reivindicar a mobilização por parte daqueles que "defendem a vida", e valorizar e reforçar a identidade do movimento antiaborto como "defensor da vida", ao mesmo tempo em que se estigmatiza os adversários como defensores da "morte".


No entanto, o uso de argumentos cristãos relacionados às ideias de vida e morte não é utilizado apenas pelos ativistas contra o aborto, mas também para defender a legalização do aborto tanto por parte de católicos como por parte de evangélicos. O grupo "Católicas pelo Direito de Decidir", criado em 1993 em um evento feminista realizado no Dia Internacional das Mulheres, tem como objetivo desconstruir "a mentalidade conservadora e preconceituosa que impede os avanços dos direitos humanos das mulheres". Para além de argumentarem que a Igreja Católica procura interferir de modo indevido no Estado laico ao tentar fazer valer suas regulações religiosas para todos os cidadãos, o grupo afirma que mesmo para a população católica a questão do aborto seria passível de interpretação alternativa àquela defendida por setores conservadores. Afinal, a despeito de membros da Igreja Católica alegarem, como argumento de autoridade, que a proibição do aborto seria um dogma da Assim, o discurso da Igreja não seria unitário em relação à questão do aborto dado que o assunto não é dogma da Igreja. Por isso mesmo, a questão do aborto foi fruto de inúmeros embates e discussões entre católicos ao longo de séculos que é ocultado pelos conservadores, histórico este que é abordado de forma minuciosa pelo historiador italiano Adriano Prosperi (2010) a partir do caso de Lucia, uma jovem mulher pobre, residente da cidade de Bologna, que no ano de 1709 foi enforcada em praça pública. A reconstrução histórica realizada por Prosperi dialoga com o debate religioso relacionado à reprodução e manutenção da humana não apenas daquela época, mas também de tempos recentes.


O debate religioso ao longo dos séculos quase sempre está entremeado com o debate científico. À medida que a ciência passou a obter avanços significativos no campo da reprodução humana nos últimos, setores conservadores da Igreja passaram a utilizar argumentos científicos 26 para defender a ideia de que "desde a concepção se está diante de uma pessoa humana" e assim poder afirmar que "a interrupção do ato gestacional seria um ato ho-micida" . A mobilização da ciência pelo movimento antiaborto contemporâneo também se expressa em sua aproximação com cientistas para conferir maior legitimidade ao seu discurso . No Brasil, por exemplo, uma cientista passou a presidir o "Movimento Brasil sem Aborto" a partir de 2008, integrando um total de oito cientistas engajados desde então com grupos e entidades relacionados ao movimento antiaborto .


Porém, considerando que a determinação do momento em que a vida tem início é sempre fruto de uma convenção social (Bezerra, 2007), a Igreja Católica, com base na ideia de que existiria uma pessoa humana desde a concepção, elaborou um argumento "secular", que passou a embasar a defesa da proibição do aborto para católicos e não-católicos, invocando a lei natural e uma universalidade moral no que tange aos direitos relacionados à reprodução humana: Para quem acredita em Deus isso é espontâneo, instintivo, e é obrigatório por lei religiosa e transcendente; e também para quem não tem esta dita de admitir a mão de Deus protetora e vingadora de todos os seres humanos deve ser intuitivo, em virtude da dignidade humana, este mesmo sentido do sagrado, isto é, da intangibilidade própria de uma existência humana vivente .


O aborto violaria uma lei natural partilhada por todos, daí o caráter filosófico e universal conferido a certos princípios morais relacionados à reprodução humana. É justamente esse argumento "secular" e de "caráter universal", que valeria para crente e não-crentes, que fundamenta a atuação do movimento antiaborto desde sua criação nos anos 1980 no Estados Unidos e que se disseminou para outros contextos nacionais, incluindo o Brasil, de acordo com documento emitido pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1984 27 . Assim, ainda que o posicionamento contrário à descriminalização do aborto por parte de setores da Igreja Católica tenha sido hegemônico no debate público nas últimas décadas, como bem apontou , isto ocorreu como fruto de disputas internas entre setores conservadores e progressistas, sendo que os discursos progressistas a favor da legalização da prática acabaram ficando menos conhecidos até o presente momento.


Para além de mobilizarem argumentos científicos para demandar a descriminalização do aborto, setores progressistas da Igreja Católica, como as "Católicas pelo Direito de Decidir", também utilizam argumentos religiosos. O primeiro diz respeito à ideia expressa no documento da Congregação da Doutrina para a Fé de 1974 de que "não pertence às ciências biológicas dar um juízo decisivo sobre questões propriamente filosóficas e morais, como o momento em que se constitui a pessoa humana" ). E o fato de já existir um longo debate acerca da questão do aborto dentro da própria Igreja ressalta que tal discussão não só deve como pode ser feita por católicos, principalmente levando em conta as transformações da sociedade. O segundo argumento diz respeito ao entendimento de que, ainda que Deus seja a fonte última do direito à vida, como os seres humanos irão respeitar este direito e arbitrar conflitos de direitos humanos permanece em aberto, e a glória de Deus se manifestaria justamente no agir racional da humanidade. E, finalmente, não caberia taxar de imoral, a priori, todas as sociedades que elaboraram legislações em que o aborto não é um crime, bem como igrejas protestantes de outros países que realizam interpretações alternativas dos evangelhos.


27 "Por ser supremo dom natural de Deus, toda a vida humana deve ser preservada desde o primeiro instante da concepção, sustentada, valorizada e aprimorada. São inaceitáveis, como atentados contra a vida humana, o aborto diretamente provocado, o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência física, psicológica ou moral, assim como qualquer forma injusta No que diz respeito às igrejas protestantes no Brasil, de acordo com , existiriam três posicionamentos que não compartilham do mesmo entendimento de setores conservadores da Igreja Católica. A Igreja Presbiteriana não se coloca a favor da descriminalização, mas admite a prática nos casos de risco de morte materna, já o Colégio Episcopal da Igreja Metodista é a favor de métodos contraceptivos e afirma que a gravidez possa ser interrompida nos três casos admitidos atualmente pela legislação. Finalmente, o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, que reúne atualmente quase dois milhões de fiéis, afirmou em seu blog no ano de 2010, que, assim como as "Católicas pelo Direito de Decidir", é favorável a descriminalização do aborto, e, também como o grupo católico, apresenta argumentos religiosos para sustentar seu posicionamento:


Algumas pessoas têm questionado minha posição quanto à descriminalização do aborto. Um dos argumentos mais citados é quanto ao mandamento não matarás. Mas, me parece que o engano está na compreensão da totalidade do significado do termo matar. O dicionário Houaiss, entre as várias definições que apresenta para este verbo, diz: causar grande prejuízo ou dano a; arruinar. E também: causar sofrimento a mortificar, afligir; ferir. Vemos, com isso, que matar não é somente tirar a vida de alguém, mas também praticar qualquer ato que impeça que alguém tenha vida com qualidade, dignidade, felicidade. Permitir que uma criança indesejada venha ao mundo em uma família desestruturada, sem condições de lhe oferecer uma vida minimamente digna, expondo-a à violência, maus tratos, perda da autoestima e tantas outras mazelas, não significa dar um ser à luz, mas sim condená-lo à morte; uma morte social e psicológica, que vai gerar a pior de todas as mortes: A ESPIRITUAL. (. ) Não estamos fazendo apologia do aborto; estamos dizendo não à hipocrisia. As mulheres não deixam de abortar porque isso é um ato ilegal. A legalidade do aborto permite que estas mulheres possam ser atendidas clinicamente da maneira que procede, e não coloquem sua vida em risco. Isso é direito à vida 28 . Na passagem acima o bispo Edir Macedo interpreta as ideias de morte e vida a partir de uma leitura religiosa alternativa àquela proposta por setores cristãos conservadores, e não apenas com base em questões econômicas como apontara . Para tanto compreende que "a pior de todas as mortes é a espiritual", fruto de uma existência perpassada por falta de amor e violência, e que na arbitragem de direitos humanos, o direito à vida das mulheres deve ser priorizado, e por este motivo o aborto deveria ser descriminalizado e estas deveriam poder ser atendidas clinicamente de forma segura. Neste sentido, ainda que Macedo, ao contrário das "Católicas pelo Direito de Decidir", não faça parte do campo feminista, seus argumentos, especialmente seu posicionamento sobre a priorização da vida das mulheres, assim como os argumentos mobilizados pelas ativistas católicas, dialogam com aqueles defendidos por feministas seculares. Flávia , ao realizar uma análise retórica dos discursos feministas em defesa da descriminalização do aborto, enfocando os posicionamentos da antropóloga feminista Débora Diniz, aponta que "a postura política feminista, de defesa do direito de escolha, e a afirmação da anteposição da vida da gestante em relação à vida do feto, foram as principais sentenças morais argumentadas por Débora Diniz" ).


Considerações finais.


Minha intenção neste artigo foi demonstrar que o movimento antiaborto atua como um movimento social conservador e o faz com base em um discurso fundamentado em uma defesa conservadora da universalidade da "lei natural" e da defesa da dignidade da pessoa humana ao considerar que a pessoa humana já existe desde a concepção. É justamente o fato de atuar como um movimento conservador que permite aos grupos antiaborto contar com a adesão de segmentos da sociedade que não se definem por uma atuação religiosa na esfera pública, considerando que o discurso realizado pelo movimento pro-cura atingir tanto crentes como não crentes. Neste sentido, a despeito dos grupos e entidades que fazem parte do movimento brasileiro serem coordenados principalmente por atores ligados à Igreja Católica, que importam do movimento norte--americano boa parte de seu repertório de ação, não é possível reduzir sua atuação a um grupo de atores políticos católicos e/ ou evangélicos que procuram influenciar o Legislativo, o Judiciário ou mesmo o Executivo.


Ao mesmo tempo, também procuro apontar como argumentos religiosos são utilizados para defender a descriminalização do aborto, tanto por católicos como por evangélicos, a partir de interpretações alternativas das ideias de "vida" e "morte", que são amplamente utilizadas pelo movimento antiaborto para conseguir maior adesão da sociedade. Assim, na disputa acerca da descriminalização do aborto, a oposição central não estaria ancorada na díade cristãos vs. feministas/seculares, mas, sim, entre conservadores vs. progressistas. Argumentos seculares podem ser conservadores e argumentos religiosos podem ser progressistas, o fundamental é compreender qual modelo de sociedade está sendo defendido por cada lado no tocante ao tema da reprodução e manutenção da vida humana independente da confissão religiosa.

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